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Julio César Toresani, ex-Boca & River, marcou no último jogo de Maradona

Além da dupla Boca e River, Toresani também esteve no Independiente: raro nome em comum no trio mais popular do páis

Na Argentina, é comum que a palavra Huevo, que significa “ovo”, seja empregada no sentido de “raça” – mais literalmente, em “colhões”, significando a gana e dedicação tão exigida pelos passionais torcedores do país. Huevo também era o apelido do volante Julio César Toresani, exatamente em função de seu temperamento e certa coragem. Afinal, além da dupla Boca & River (e Independiente!), ele também foi vira-casaca em Santa Fe, formando-se no Unión para depois ter várias passagens no rival Colón. Foi exatamente como jogador do Colón que Toresani teve peito até para bater boca com Maradona em pleno jogo de regresso de Dieguito, para anos depois entrar para história com um gol pelo Boca no Superclásico que serviu de despedida a El Diez. Toresani, com gol famoso também pelo River, só não teve peito diante da depressão, consternando a Argentina com seu suicídio hoje. Vale relembrar sua incomum trajetória.

Nascido em Santa Fe em 5 de dezembro de 1967, Toresani foi profissionalizado em 1986 pelo Unión, que já não era o time expressivo da década anterior; as contínuas campanhas ruins do Tatengue empurravam-no para a briga contra o rebaixamento na tabela dos promedios. Os alvirrubros puderam escapar ao fim da temporada 1986-87, exatamente como a última equipe entre as não rebaixadas; um dos triunfos essenciais da reta final veio sobre o Newell’s, que disputava o título (justamente contra o arquirrival Rosario Central) e terminou derrotado por 2-1 na 29ª rodada. Esse jogo rendeu o primeiro gol do volante no futebol adulto. Seu outro gol veio no empate em 1-1 com o Talleres pela 36ª. Na temporada seguinte, de 1987-88, Toresani marcou cinco gols, incluindo sobre a dupla River (em vitória de 3-1) e Boca (2-2), mas não foi suficiente para evitar a queda nos promedios – por dois pontos a menos que o Platense.

O retorno unionista, porém, foi imediato e de gosto especial. O Tate fez uma boa campanha, a dois pontos do campeão, o surpreendente Chaco For Ever, embora terminasse abaixo também do Lanús. Só que somente o campeão tinha o acesso direto; a outra vaga na elite viria em mata-mata entre os doze primeiros abaixo do campeão. Na temporada regular, Toresani marcou quatro gols, um deles em 2-2 com Colón na casa rival. Nos mata-matas, a concorrência reuniria o vice Lanús, o próprio rival Colón e as camisas também tradicionais do Belgrano e sobretudo do Huracán, dentre outros. A boa colocação fez o Unión entrar já nas quartas-de-final, eliminando o Sportivo Italiano com um 2-1 fora e um 2-2 em casa; nas semis, o Almirante Brown perdeu em casa por 2-0 e depois levou de 3-0 em Santa Fe. Pela frente… o Colón.

Nos Clásicos Santafesinos mais expressivos da rivalidade, melhor aos alvirrubros, que venceram fora por 2-0 e dentro por 1-0. No regresso à elite, Toresani continuou alvirrubro, mas pelo Instituto de Córdoba. Fez uma boa temporada individual, com nove gols marcados em meio à péssima campanha de La Gloria. O volante vazou os grandes Boca (1-1) e San Lorenzo (2-2) e anotou nos clássicos com Talleres (em tarde de glória, conseguiu um hat trick em triunfo por 4-2) e com o Racing cordobês (derrota de 2-1), mas não impediu a lanterna de o rebaixamento do novo clube. A temporada de 1990-91 seria de nova briga contra o rebaixamento, de volta ao Unión, mas exitosa. O Tatengue terminou raspando, em último dos que se salvavam, com Toresani destacando-se sobretudo no Clausura, com cinco gols marcados; dois deles, em 3-1 sobre o Racing do goleiro Sergio Goycochea. Os bons números e a garra foram reconhecidos pelo River, que contratou-o para a temporada 1991-92.

Antes de virar a casaca no Superclássico, Toresani já era no Clássico Santafesino: formado no Unión, associou-se mais ao Colón

O Millo vinha de dois campeonatos decepcionantes, perdendo o Apertura 1990 ao cair em casa na rodada final para o Vélez (desperdiçando um pênalti na ocasião, defendido pelo lendário Ubaldo Fillol, que ali pendurou as luvas) e sem disputar a sério o Clausura. Para o Apertura 1991, então, as alegrias voltaram, no embalo do retorno dos ídolos Ángel Comizzo e Ramón Díaz. Foram oito vitórias nos oito primeiros jogos, algo inédito no profissionalismo argentino. Gordura que ao fim do campeonato significou sete pontos de vantagem para o vice, uma enormidade em tempos em que vitórias só valiam dois pontos e no contexto de um torneio de turno único. A cereja foi o vice ser o Boca, que chegava ao maior jejum doméstico de sua história, dez anos desde o maradoniano Metropolitano de 1981. Toresani limitou-se à retaguarda, sem marcar gols, mas firmando-se na titularidade com quatorze aparições.

Em paralelo, o Millo também chegou à final da Supercopa, com El Huevo decisivo para eliminar o Flamengo em pleno Maracanã: marcou o gol argentino na derrota por 2-1, que forçou as penalidades favoráveis aos visitantes. O River começou o Clausura 1992 na liderança, mas logo não manteve a solidez, terminando a cinco pontos do campeão Newell’s. No Apertura 1992, lutou até a rodada final, mas dessa vez o título não escapou do Boca. Para o Clausura 1993, o início ruim logo foi revertido e a liderança já era millonaria na sétima rodada, mas ela foi perdida na 13ª para o Vélez, que manteve a diferença de três pontos até o fim e foi campeão. Já o Apertura 1993, só finalizado em março de 1994, foi cheio de emoção: três pontos separaram o líder do oitavo colocado (curiosamente, em paralelo, Toresani voltou a marcar sobre o Flamengo na Supercopa, mas dessa vez os cariocas deram o troco e venceram nos pênaltis dentro do Monumental).

Em dado momento, a conquista parecia destinada ao Racing. O River, por sua vez, mesclava a experiência de Goycochea (que chegou após ser o melhor jogador da Copa América de 1993), Ramón Medina Bello, Leonardo Astrada, Hernán Díaz e do próprio Toresani com as revelações Ariel Ortega, Hernán Crespo, Matías Almeyda e Marcelo Gallardo. Apesar da presença dessa garotada, o desempenho não foi exatamente vistoso, mas foi eficiente. Naquela tabela embolada, a liderança apareceu primeiramente na 10ª rodada, mas foi perdida após duas derrotas seguidas ao fim da 13ª. Foi recuperada na 17ª, a antepenúltima. Na 18ª, o time de Núñez arrancou um 1-1 com o Rosario Central no Gigante de Arroyito e via o Boca ajudar-lhe com um 6-0 no Racing. Bastava um empate no Monumental com o Argentinos Jrs. E foi de Toresani o gol do título, tranquilizando a torcida local já aos 8 minutos, em uma bomba de canhota aproveitando assistência de Crespo, ainda que os visitantes empatassem aos 42 do segundo tempo.

Foi o único gol do volante na campanha, onde só esteve ausente de um jogo. Sua imagem soterrada pelos colegas estampou a capa da revista El Gráfico seguinte à conquista. A foto da comemoração também foi a escolhida pela mídia social millonaria para enaltecer hoje o ex-jogador. De ressaca, o Millo começou de modo frouxo o certame seguinte, iniciado já dali a sete dias, e embora alcançasse a liderança na 13ª rodada, não manteve o ímpeto na corrida com Independiente e Huracán. Ainda assim, o treinador Daniel Passarella foi alçado a técnico da seleção, com seu assistente Américo Gallego permanecendo em Núñez por mais um semestre. Sob El Tolo, Toresani já não foi tão absoluto no onze inicial, jogando dez partidas da campanha histórica: foi o único campeonato argentino vencido de modo invicto pela Banda Roja. El Huevo ficou mais um semestre, saindo por sentir um fim de ciclo para si e por desentendimentos com Omar Labruna, assistente do técnico recém-chegado Ramón Díaz.

Com uma camisa trocada do Flamengo, vibrando no vestiário do Maracanã a classificação sobre os cariocas na Supercopa de 1991 (marcou o gol dos argentinos) e soterrado pelos colegas ao marcar o gol do título do Apertura 1993

Toresani então virou pela primeira vez a casaca, em Santa Fe: reforçou o Colón no segundo semestre de 1995, na reestreia do Sabalero na elite após quatorze anos. Calhou aos rubronegros serem os adversários do Boca em La Bombonera na exata rodada que marcou a reestreia de Maradona no futebol argentino e no clube, passada sua suspensão por doping. Em um jogo feio e truncado, o volante, expulso, não teve pudor em peitar o astro; as trocas de ofensas pela imprensa chegaram ao cúmulo de Maradona escancarar seu endereço para que fosse procurado pelo volante a uma luta privada. Após uma temporada regular e segura para não enfrentar o rebaixamento, Toresani então revirou a casaca, contratado pelo Boca.

O passado no rival e a não-esquecida discussão com Maradona criaram uma resistência natural da torcida xeneize com Toresani ainda que Diego estivesse afastado do elenco – o astro tirara um ano sabático ao longo da temporada 1996-97 para tratar-se das drogas. Maradona não era o mesmo, mas sem ele o Boca, que disputara o título de ambos os turnos da temporada 1995-96, despencou de rendimento para o Apertura e Clausura seguintes, calhando a Toresani também vivenciar esse contexto. No Apertura 1996, ele contribuiu com três gols, dois na derrota de 4-2 para o Racing e outro em 4-1 sobre o Platense. O clube até venceu o Superclásico por 3-2 com o folclórico gol de nuca nos instantes finais anotado pelo uruguaio Hugo Guerra (outro jogador que partiu cedo demais, vitimado ano passado por um câncer), mas ao todo, mesmo treinado por Carlos Bilardo, mais perdeu do que ganhou.

Para o Clausura 1997, o Boca ousou e substituiu Bilardo com o treinador que comandara a primeira Libertadores e Mundial vencidos pelo River, em 1986: o carismático Héctor Veira, que vinha de um bom trabalho no San Lorenzo. Na reta final, o clube até contou com o retorno de Maradona, mas inicialmente não se livrou de um desempenho ainda errático, simbolizado pelo histórico Superclásico em que abriu 3-0 em pleno Monumental e permitiu o empate. Toresani marcou em outro 3-3, justamente contra o Unión, e em 3-1 no Banfield. O volante, com o temperamento e sacrifício característicos e disposição para atuar até improvisado na lateral, já começava a conquistar um respeito com a torcida: “quando estreei, saí pelo túnel e me vaiaram. Me preocupei, mas estive longe de entrar em um estado de histeria. Sabia que com boas atuações ia reverter. Agora, quando entro e me apoiam, não posso acreditar”, já dizia em março.

A mudança de percepção só aumentou em outro Superclásico histórico, no Apertura 1997. O trabalho de Veira engatara, ainda que Toresani passasse a ser um 12º jogador. O Boca disputava a liderança palmo a palmo com o River, mandante do jogo realizado em 25 de outubro de 1997, mas que sofria com um jejum constrangedor a despeito dos títulos em série: desde 1991 o Millo não sabia o que era vencer na própria casa o rival, embora chegasse a derrota-lo nesse período até mesmo na Bombonera (duas vezes, ambas em 1994) e em alguns amistosos fora de Buenos Aires. Na liderança, o River abriu o placar no fim do primeiro tempo com um gol de Sergio Berti, por sinal um vira-casaca de via inversa. Porém, a seca millonaria em dérbis no Monumental seguiria: Toresani pôde ficar cara a cara com Germán Burgos e o encobriu com categoria para empatar já aos 2 minutos de segundo tempo – o lance foi o retratado nas mídias sociais do Boca como tributo.

A famosa discussão com Maradona e o tributo de Dieguito no instagram hoje

No fim do jogo, ainda veio a virada, mediante exatamente o primeiro gol de Martín Palermo em um Superclásico. Como cereja do bolo, o 2-1 fez o Boca ultrapassar na tabela o rival. Dias depois, aquele jogo ganhou os contornos mais históricos que tem: Maradona, que saíra no intervalo ao sentir uma reiterada lesão muscular, surpreendeu a todos ao anunciar a aposentadoria, irritado com a fake news sobre a morte de seu pai (só falecido em 2015). Abalado, o Boca perdeu seu compromisso seguinte, contra o Lanús, e voltou a ser ultrapassado pelo River. Os xeneizes só tiveram essa derrota na campanha e mantiveram perseguição implacável, a ponto de só outras seis campanhas terem somado mais pontos na história dos torneios curtos (1991-2012). O problema é que uma dessas vezes foi ali, justamente: o River, mesmo com duas derrotas, somou um ponto a mais, aproveitando-se do excesso de empates dos auriazuis (três contra cinco).

Toresani, que começara a cair nas graças da torcida, não ficou: o gol histórico, seu único no Apertura, não impedira que ele continuasse na reserva, embora usado com frequência. El Huevo não pensou duas vezes em aceitar proposta de ninguém menos que César Menotti, que o requisitara para jogar no clube em que trabalhava, o Independiente. O volante, como o próprio Menotti, entrava para o grupo seleto dos jogadores que defenderam os três clubes mais populares – e internacionalmente mais vencedores – do país. Uma ciência que ele tinha na época: “não creio que haja muitos jogadores que possam contar o mesmo”; depois do volante, foram mais três jogadores (Jorge Martínez, Fernando Cáceres e o recém-aposentado Jesús Méndez) e outros dois na soma jogador e treinador (Oscar Ruggeri e Claudio Borghi). O Rojo vinha de um campeonato morno após ter sido vice no Apertura e perdido um título que parecia ganho no Clausura da temporada 1996-97.

Toresani até estreou marcando gol em um 4-1 na primeira rodada do Clausura 1998, sobre o Deportivo Español. Mas a estadia em Avellaneda só serviu para irritar ainda mais a torcida do Unión, que sofreu gol dele em um 2-2 em Santa Fe. O Independiente ficou só em 11º e no Apertura desceu para 16º. No razoável Clausura 1999 (5º lugar), esteve longe do título. Já com 32 anos, o volante estendeu a carreira por mais quatro temporadas, cada uma em uma equipe diferente: voltou ao Colón na de 1999-2000; rumou ao Chile para defender o Audax Italiano; retornou ao Colón para uma estadia entre 2002 e 2003; e então pendurou as chuteiras ao fim do Torneio Argentino A (a terceira divisão dos clubes do interior) de 2003-04, no Patronato de Paraná. Iniciou em 2005 uma carreira de técnico pouco chamativa, na qual teve dois passos pelo Colón.

El Huevo trabalhava no Rampla Juniors até fevereiro desse ano, quando levantou-se contra o presidente do clube uruguaio. Embora sempre tenha conseguido trabalhos ano a ano, sua situação financeira não era boa, algo agravado por um divórcio litigioso sem ter a guarda dos quatro filhos e a luta contra um câncer. Nesse abril de 2019, realizou uma primeira tentativa de suicídio mediante overdose de medicamentos, mas foi salvo com uma lavagem estomacal. Duas semanas depois, porém, não houve quem o salvasse no prédio da federação santafesina em que se abrigava. “E pensar que quis brigar e hoje choro por ele. Depois daquela famosa discussão, ele veio jogar no Boca, e fomos grandes companheiros. Ele era um cara muito trabalhador. Que seus filhos tenham o mesmo coração do pai”, pronunciou-se Maradona. Que sua alma encontre a paz.

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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