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Há 20 anos, o Talleres vencia a Copa Conmebol, em final com o CSA

Maidana, que jogaria no Grêmio, festeja o gol do título

Dificilmente se encontrará outra final continental tão insólita como a da última edição da Copa Conmebol. De um lado, um time já eliminado da terceira divisão brasileira. De outro, um decadente clube do interior argentino, que vivia a gangorra entre segunda divisão e campanhas medianas na elite, não mais lembrando o poder que tivera de meados dos anos 70 ao dos anos 80. Melhor para o Talleres, que, com algumas figuras que passariam por clubes brasileiros, alcançou expressão internacional, embora até hoje La T não tenha sido campeã da elite argentina. Já elegemos essa épica vitória de 20 anos atrás entre as dez maiores viradas do futebol argentino, neste outro Especial.

Naquele fim de 1999, o Brasil decididamente esnobou a Copa Conmebol. No dia da final, os jornais priorizavam a cobertura das semifinais do Brasileirão: o Corinthians já estava na decisão após vencer dois clássicos com o São Paulo e a atenção se voltava ao terceiro jogo entre o Vitória de Tuta e o Atlético de Marques e Guilherme. A Série B vivia seu quadrangular final, com expectativa para o clássico goiano naquele mesmo dia 8, entre o Goiás de Dill e o Vila Nova de Túlio Maravilha. E a Série C também chamava a atenção: um dia depois começaria o seu quadrangular final, com o Fluminense.

Até havia foco em quem já estava de fora das fases finais dos certames nacionais, o que era o caso do CSA, já eliminado da terceirona. Mas não se tratava exatamente dele, e sim de Flamengo e Palmeiras, que na véspera confirmavam suas passagens à final da Copa Mercosul. O Verdão, dez dias após perder o mundial para o Manchester United, aliás, eliminava o San Lorenzo. O hoje badalado clube do Papa teve que aguentar por dois anos não ter uma única taça continental que fosse, estando atrás até mesmo do Talleres nisso.

Astudillo, maior artilheiro internacional do clube. O goleirão Cuenca. E o principal desfalque da final: Oliva não jogou, lesionado – imagens da edição especial da El Gráfico dedicada ao centenário tallarin

Bom, a Copa Conmebol foi criada como espécie de equivalente sul-americano da Copa da UEFA, reunindo os melhores abaixo dos campeões nacionais. E, assim como ela, era só a terceira competição continental em prestígio. Na Europa, a segunda era a Recopa, por sinal também extinta em 1999 e que reunia os vencedores das Copas nacionais. Na América do Sul, era a Supercopa, que reunia os campeões da Libertadores. Como esse torneio acabava excluindo camisas pesadas ainda não campeãs da Libertadores, deu lugar em 1998 à Copa Mercosul, assumidamente caça-níquel, sem critério técnico. A Copa Conmebol, assim, minguava a cada ano e já se sabia de antemão que a edição de 1999 seria a última.

A Mercosul continuaria até 2001, quando foi substituída pela Copa Sul-Americana, embora esta tenha mais critérios técnicos – semelhantes na proposta exatamente aos da Conmebol. Os brasileiros até enviavam os melhores abaixo do campeão até 1997, em que a final entre Atlético-MG e Lanús foi marcada pela briga generalizada, com o técnico atleticano Emerson Leão levando a pior (veja aqui). Em 1998, os representantes tupiniquins passaram a ser os campeões regionais e assim o Santos, vencedor do Rio-São Paulo de 1997, entrou e acabaria campeão, sobre o Rosario Central. Mas em 1999 nem mesmo a maioria dos campeões regionais topou. Vencedor da Copa Centro-Oeste, o Cruzeiro cedeu a vaga ao Vila Nova. O Grêmio venceu a Copa Sul, mas o vice Paraná é que participou da Conmebol.

O Santos não quis defender seu título e nenhum outro do Torneio Rio-São Paulo quis participar. 4º colocado no Nordestão, o CSA só adentrou porque o campeão Vitória, o vice Bahia e o 3º colocado Sport também declinaram. A exceção foi o vencedor da Copa Norte, o São Raimundo, no auge de sua história. Os amazonenses e o CSA não tinham nada a ver com a opção dos demais e apesar de percalços logísticos pela inexperiência internacional (“depois de eliminar o Vila Nova nas oitavas, o CSA encarou a primeira viagem internacional de sua história, a Mérida, Venezuela, para enfrentar o Estudiantes. Horrorizada, a diretoria descobriu na semana do jogo que a maioria dos jogadores não tinha passaporte. Um jogador quase foi preso quando se descobriu que não tinha nem certificado de reservista”, relatou a Placar), foram longe, fazendo uma das semifinais e tendo os dois artilheiros daquela edição.

Antes do CSA, o Talleres visitou o Brasil para pegar o Paraná, ainda pelas quartas-de-final. Retiramos essa e as próximas três imagens da ótima @CulturAlbiazul

Marcelo Araxá, do São Raimundo, e o falecido Missinho, dos alagoanos, fizeram 4 gols cada e dividiram a artilharia da última Conmebol. Se a dupla do Norte-Nordeste não tinha grande expressão em seu país, o Talleres alcançara-na no seu nos anos 70 e 80, em uma era de ouro do futebol cordobês. Esteve muito perto da taça nacional em 1977, quando tinha três jogadores a mais e vencia o poderoso Independiente por 2-1, mas no fim dramático do jogo sofreu gol que tirou-lhe o títuloLa T ainda assim só cedeu menos jogadores que o River para a seleção argentina campeã mundial pela primeira vez, em 1978. Em 1980, o clube foi incluído no Torneio Metropolitano, uma conquista simbólica, pois o Metro era restrito à Grande Buenos Aires, La Plata e Rosario. Mas a médio prazo foi-lhe a ruína: os cordobeses se davam melhor no enxuto calendário do Torneio Nacional.

Nos anos 90, os alviazuis já não eram sombra das duas décadas anteriores e foram duas vezes rebaixados. À altura da Conmebol 1999, fazia só um ano que haviam voltado outra vez à elite, ao fim da temporada 1997-98 – aliás, vencendo o rival Belgrano na final da segundona. Do elenco vencedor da Conmebol, Humoller, Ávalos, Lillo, Sotomayor e Pino participaram do amistoso festivo do centenário tallarin, em 2013. Mas houve gente mais destacada: Rodrigo Astudillo, maior artilheiro internacional do futebol cordobês, fundamental ao campeão San Lorenzo justamente na primeira edição na Sul-Americana, em 2002; o goleirão e capitão Mario Cuenca, também campeão da Sul-Americana, mas pelo nanico Arsenal do jovem Papu Gómez em 2007, foram alguns. Já outros passaram pelo futebol brasileiro.

O xerifão Maidana também seria importante no Newell’s campeão em 2004, mas não repetiu o sucesso no Grêmio em 2006; o atacante Darío Gigena se eternizaria na Ponte Preta pelos três gols em clássico com o Guarani fundamentais para a Macaca não ser rebaixada em 2003; e o técnico era Ricardo Gareca, que treinou o Palmeiras em 2014 com falta de êxito inversamente proporcional ao prestígio angariado à frente da seleção do Peru. Outro ídolo da época era o artilheiro Diego Garay, mas o clube o perdeu às vésperas do torneio ao futebol francês. Isso e o fato de que a vaga na competição seria originalmente do Gimnasia LP, que a desprezou, já dariam tons erráticos à trajetória de La T.

A estreia, contra o Independiente Petrolero (à esquerda), já teve reviravolta similar à da final – à direita, imagem da partida em Maceió

E a tônica durante toda a Conmebol foi assim mesmo. A estreia, pelas oitavas-de-final, foi um baile para o Independiente Petrolero. O Talleres teve Sotomayor expulso, perdeu gols bobos e levou de 4-1, marcando apenas de pênalti. Só dois titulares daquela partida começariam jogando 15 anos atrás: Humoller e Santos Aguilar. A primeira noite de superação em Córdoba teve público fiel de 35 mil pessoas ansiosas pela estreia internacional do futebol local (os vices do Talleres em 1977 e do Racing de Córdoba em 1980 não lhe renderam vaga na Libertadores, oferecida só aos dois campeões anuais argentinos). Dessa vez, sete dos titulares da final estavam em campo, sobretudo Cuenca, Astudillo e Maidana. A fé cordobesa se fortalecia pelos 3-0 que o clube impusera ao Lanús na mesma semana, pelo Apertura.

E o resultado realmente se repetiu, apesar de um gol anulado: Silva, cabeceando ao chão cruzamento preciso de Lillo inaugurou o placar logo aos 13 minutos; José Luis Marzo, convertendo pênalti que ele mesmo sofrera (chorado: o goleiro se adiantou e acertou o canto, mas a bola passou-lhe por debaixo do corpo), fez 2-0 aos 37, reoxigenando de vez os argentinos. O segundo tempo foi repleto de chances perdidas até Nicolás Oliva, na grande área, recuar atrás de uma bola mal afastada pela defesa, girar para o chute e acertar um belo gol. Houve novas chances depois, mas o goleiro argentino dos bolivianos, Gustavo Ferlatti, impediu uma goleada maior. O que Ferlatti, ex-goleiro tallarin, não conseguiu foi salvar pênaltis, necessários pois não havia critério do gol fora de casa.

Todos foram convertendo até Cuenca salvar logo na última cobrança da série inicial o fraco chute de Alberto Illanes no canto esquerdo. Maidana em seguida selou a classificação deslocando Ferlatti para rodopiar a camisa na pista olímpica do então Estádio Chateâu Carreras. “Um prêmio aos colhões”, exaltou-se o narrador cordobês. A seguir, o primeiro capítulo brasileiro, pelas quartas-de-final, contra o Paraná. Dessa vez, o primeiro jogo foi em Córdoba. Apesar das tentativas em meio à chuva forte, como um cabeceio de Maidana na trave e uma bola salva por um paranista perto da linha, ficou-se no 1-0, gol de Silva completando cruzamento rasteiro de Marzo pela esquerda.

Maidana, Díaz, Cuenca, García, Humoller e Ávalos; Silva, Roth, Astudillo, Gigena e Santos Aguilar: os onze que iniciaram a segunda final

Os argentinos não se acuaram na Vila Capanema e tiveram bons momentos especialmente na bola parada, mas levaram gol em bate-rebate já aos 29 do segundo tempo. Em nova hora-extra, Cuenca trabalhou bem, salvando logo as duas primeiras cobranças brasileiras, de Patrício no canto esquerdo e, com os pés, a de Flávio Guilherme no meio (logo ele, que improvisado no gol classificara os paranistas em decisão por pênaltis nas oitavas). David Díaz chutou para a fora, mas em seguida César mandou a sua cobrança ao travessão e La T garantiu a classificação já na quarta cobrança, de Oliva deslocando Neneca. Em meio às duas primeiras fases, o Talleres também engatava no Argentinão: após os 3-0 no Lanús, veio o 4-2 fora de casa no Argentinos Jrs, um 3-2 no Vélez e um 4-1 fora de casa no Gimnasia Jujuy.

A seguir, a parte mais tranquila da campanha, que não deixou de ter seus sustos. A semifinal foi contra o Deportes Concepción, eliminado por um suado 3-2 no placar agregado. Os chilenos chegaram a estar vencendo em Córdoba após cobrança ensaiada de falta, mas no segundo tempo Maidana, completando de primeira cruzamento rasteiro de Pino pela direita, e Oliva em linda cobrança de falta viraram. O travessão impediu duas vezes mais gols cordobeses, em cabeceio de Cristian García e em chute de longa distância de Pino – em noite histórica por isolar Gareca como técnico com mais partidas à frente de La T, superando as 119 de Roberto Saporiti (ex-jogador do Atlético Mineiro, Saporiti era o comandante naquela epopeia reversa de 1977 e depois foi assistente de Menotti na Copa de 1978) e de José Reinaldi (rara figura querida tanto no bairro Jardín como também no rival Belgrano).

Já fora de casa, Astudillo pareceu tranquilizar os argentinos ao abrir o placar no início do segundo tempo, em belo toque sutil fora da grande área com a canhota para encobrir o goleiro, mas ainda com meia hora para o fim veio o chorado empate em insistentes chutes na pequena área após bola cruzada não interceptada em rara falha de Cuenca e Maidana na campanha. Ainda houve um duplo erro do árbitro, que assinalou uma falta aos chilenos no limite de grande área em lance inexistente que ocorrera dentro. Mas nada se comparou à epopeia da final. O foco tallarin parecia mesmo ser todo na decisão, pois desde aqueles 2-1 no Deportivo Concepción não havia mais vencido: levou em casa de 4-1 do River, empatou no Chile em 1-1, perdeu do Newell’s por 3-1 e, após o jogo em Maceió, perdeu em casa para o Unión por 3-2.

Ex-jogador do rival Belgrano, Gigena, ídolo da Ponte Preta, desafoga “La T” a 15 minutos do fim e vibra com Astudillo

Os primeiros 19 minutos do jogo em Alagoas viram logo três gols em noite inspirada de Missinho, que só ali fez três de seus quatro gols no torneio (o primeiro, de calcanhar), e do insinuante Williams Bidé, que deu a assistência ao primeiro gol e sofreu falta que Fábio Magrão converteria para fazer o segundo – curiosamente, o jogador daquele CSA a ganhar mais renome futuro, Souza (com destaque por São Paulo e Grêmio nos anos 2000), era reserva. Santos Aguilar até descontou em canhotaço de fora da área. Mas Missinho reapareceu oportunista aos 38, se antecipando a Cuenca em cruzamento fraco de Bruno Alves. No reinício, Missinho fez 4-1 em falha geral da defesa. Para complicar ainda mais, Silvio Suárez foi expulso.

Mas o “Sportivo Alagoano”, como o CSA era (e ainda é) retratado na mídia argentina, não matou o jogo e aos 43 do segundo tempo Astudillo concluiu de fora da área com um foguete rebote de jogada bem trabalhada, com a bola batendo no travessão antes de entrar. Gigena, ao vencer no mano-a-mano um arranque, ainda teve chance para diminuir mais depois. Já em Córdoba, o primeiro lance marcante foi aos 4 minutos: Santos Aguilar foi empurrado por Williams, ainda que tenha valorizado na queda. Ao exibir o cartão amarelo, o árbitro foi peitado por Fábio Magrão e mostrou-lhe diretamente o vermelho.

O CSA, que havia arriscado pouco antes em um chutão de Márcio Pereira espalmado por Cuenca, se retraiu e sua figura passou a ser o goleiro Veloso, como em cabeçada à queima-roupa de Gigena e em outro tiro cara-a-cara, de Santos Aguilar. Mas, aos 39, não teve jeito: Veloso saiu para disputar bola com García, que deu um passe acrobático para Silva completar ao gol vazio. Depois os hermanos começaram a se cansar de perder chances. O cúmulo veio aos 25 minutos: Léo interceptou lançamento curto bobamente com a mão dentro da grande área, mas Pino chutou o pênalti para fora. 

A taça desfilando com os campeões e nas mãos do jovem técnico Gareca

Mas a frustração foi amenizada aos 30, com Gigena ganhando de cabeça em escanteio cobrado por Astudillo para encaminhar momentaneamente aos pênaltis – justo Gigena, que em 1996 fora carrasco em Clásico Cordobés no qual, ainda como jogador do rival Belgrano, abrira o placar de um 2-0 que estendera mais um pouco o terrível jejum de 14 anos que acometia La T no dérbi com La B (a seca cairia em alto estilo já no duelo seguinte, um 5-0, mas naquela derrota tornou-se famosa até por motivos supersticiosos, pois os tallarines tentaram espantar o azar usando inutilmente a camisa reserva grená…). As cabeças realmente definiriam tudo: perto do fim, Williams cruzou e o CSA perdeu sua melhor chance no jogo. O castigo veio nos acréscimos, após muita insistência argentina em outro lance de escanteio.

No lance, Veloso afastou, mas a bola voltou à área e ele e Maidana disputaram a redonda e caíram. Ela ia se encaminhando para fora, mas García impediu na linha de fundo e inverteu para Astudillo. Após quase tropeçar na bola, ele a cruzou novamente à área. O gigante Maidana, segundos após perder a chance do título, erguera o punho para sinalizar a Astudillo. Recebeu e cabeceou certeiro para dar o título a La T, que experimentaria um boom: no Apertura 2000, lutou por seu primeiro título argentino até a última rodada contra o Boca de Carlos Bianchi. Na Mercosul 2001, liderou grupo com Vélez, São Paulo e Peñarol. Enfim estreou na Libertadores na edição 2002. Além disso, simbolicamente, logo no primeiro jogo após o título, saboreou um sensacional 5-4 fora de casa sobre o forte Gimnasia LP da época.

Porém, o peso das campanhas ruins subsequentes foi tamanho que o clube caiu em 2004 mesmo após um Clausura com pontuação suficiente para lhe devolver ao continente (à Sul-Americana). Até dois rebaixamentos à terceira divisão os cordobeses sofreram antes de um aguardo regresso à elite em 2016, eternizando o ídolo colorado Pablo Guiñazú na memória tallarin. Não menos importante foi o gol do ex-refugo gremista duas décadas atrás.

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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