Especiais

Há 35 anos, o Independiente reinava no mundo pela 2ª e última vez – contra a terra da Rainha

Defesa em ordem: Villaverde (número 2), Clausen (4) e o goleiro Goyén deram poucas brechas ao bigodudo Rush & cia

Há 35 anos, o Independiente, sem imaginar a decadência que viveria desde então, tornava-se isoladamente o time argentino mais vencedor no mundo. Em uma final entre o Rojo e os Reds (em dia de Submarino Amarelo), o clube de Avellaneda bateu o grande time europeu daqueles tempos, o Liverpool, em um jogo que chamou muita atenção por ser um encontro anglo-argentino apenas dois anos e meio após a Guerra das Malvinas. Não foi o primeiro desses encontros (naquele mesmo ano, em agosto, o Boca enfrentou o Aston Villa no amistoso Torneio Joan Gamper, em Barcelona), mas foi tratado assim e o público japonês conferiu a primeira revanche esportiva dos hermanos.

Felizmente, a despeito de certa inflamação sensacionalista de parte da imprensa, na maior parte do jogo sobressaiu-se o futebol e não a pancadaria. O próprio Independiente chegou a Tóquio sob clima de tranquilidade, algo escancarado quando o assistente técnico Horacio Cirrincione descascou ainda no avião o salame e o queijo para o churrasco a ser preparado pelo técnico José Omar Pastoriza (maior treinador da história roja). As exaltações se resumiram a um lance aos cinco segundos de jogo, quando o lateral Carlos Enrique derrubou Craig Johnston com uma tesoura (confira a partir de 1min51 do vídeo). “Sim, queria matar os ingleses, para mim era a guerra (…). Nessa manhã contra o Liverpool, o Pato [Pastoriza] me disse o mesmo que me havia dito antes da final da Libertadores contra o Grêmio, no Brasil: ‘se parares o camisa 10, somos campeões’. Era Johnston, o motor do time, jogava pelo meu lado (…). O forte deles era fazer cruzamentos ou chutar de longe. Goyen foi a figura, mas ao (camisa) 10 meti e xinguei para que não se esqueça”.

A declaração acima é do próprio Enrique, compreensivelmente apelidado de El Loco. Ele estava no exército na época da guerra, embora não tenha ido às ilhas: “saímos as duas equipes juntas ao campo. Eu nem falava inglês, se a mim é difícil o espanhol, haha… mas alguns xingamentos eu sabia, havia perguntado ao Maranga, assim os ingleses me olhavam e eu lhes gritava fuck you y la cajeta de tu madre”. Mas em dado momento o próprio Enrique esqueceu as “cenas lamentáveis” e mostrou categoria sobre o tal Johnston ao dar-lhe um drible de chapéu (39min36 do vídeo ao fim). O time como um todo deixou o turbilhão político de lado e focou-se na bola.

Se o Independiente dera cátedra no Grêmio em pleno Olímpico na final da Libertadores, algo assumido pelos próprios gremistas, com Enrique de fato anulando na bola a Renato Gaúcho, o Liverpool também fora campeão europeu derrotando o anfitrião na final em outro Olímpico: o de Roma, sobre o time de Falcão e Bruno Conti. Mas Enrique tinha razão: a principal jogada inglesa eram os chuveirinhos, com poucas tentativas de infiltrações na defesa seja com toques ou dribles.

Bochini, Marangoni e Percudani (com o prêmio de melhor em campo), ofensivamente os principais homens do jogo

Os britânicos tiveram mais posse de bola e na maior parte do tempo jogaram no campo de defesa argentino, mas não concretizavam chances claras. Em grande dia, a defesa vermelha foi afastando cada tentativa e outro a elogiar o goleiro Carlos Goyen foi o líder Ricardo Bochini: “os ingleses atiraram uns 30 cruzamentos, mas estávamos tranquilos porque Carlitos os bloqueava com grande facilidade”. A dupla de zaga formada por Hugo Villaverde (tio materno de Papu Gómez, torcedor assumido do clube embora tenha integrado os infantis do Racing) e o capitão Enzo Trossero anulou o galês Ian Rush, artilheiro máximo do Inglesão e do continente (recebeu a chuteira de ouro europeia) naquela temporada.

Outro exemplo de como as jogadas do Liverpool não se definiam ocorreu até quando eles é que deram drible de chapéu: no fim do primeiro tempo, Wark fez isso em Clausen, mas de nada adiantou: o outro lateral do Independiente bloqueou o escocês com o corpo e a bola saiu pela linha de fundo para Goyen cobrar tiro de meta: veja aos 41min35. El Negro Clausen já havia desarmado limpamente o astro Kenny Dalglish na defesa argentina aos 11min50. Outro fragmento da solidez defensiva coletiva roja aparece também aos 1h09min15s.

Em dia onde a defesa argentina trabalhou mais que o ataque por conta do gol precocemente logrado pelos sul-americanos (em grande tarde em particular para Trossero, além de Goyen), aquele Independiente se mostrava mais estudioso e cauteloso do que de costume em vez da equipe que se habituara a envolver o adversário – Bochini já disse que o time de 1984 era muito mais habilidoso que o supercampeão elenco do início dos anos 70, tetra seguido na Libertadores. O estilo em Tóquio foi tão diferente que “tanto que parecia outro Independiente”, assumiu a cobertura da revista El Gráfico na época.

Claro que em alguns momentos a defesa falhou. E nisso o adversário ficou devendo. Aos 26min18 do vídeo, Dalglish ficou com o gol livre mas o pé murcho mandou para fora. Aos 1h01min30s, Gillespie também ficou na cara de Goyen, mas faltou-lhe ângulo e força para assustar o uruguaio. Algo parecido se passou aos 1h10min20, com Nicol sem ângulo isolando a bola. Aos 1h14min30, foi a vez de Wark, desmarcado, isolar um bom cruzamento. Rush chegou a reclamar de um pênalti aos 1h24min40, mas o árbitro brasileiro Romualdo Arppi Filho e nem mesmo os próprios colegas deram-lhe atenção.

Bochini
Bochini em passes precisos seguidos, em ambos mesmo acossado de perto por britânicos
Marangoni
A classe de Marangoni, canetando dois oponentes e lançando de trivela a Barberón

Mas se a ambição ofensiva roja foi menor, a categoria não. Maior ídolo e campeão do clube, o já trintão Bochini, único remanescente do título mundial anterior, em 1973 (com ele marcando o gol da taça, justamente), cansou-se de dar seus característicos passes e lançamentos preciosos a colegas desmarcados – jogadas que na Argentina acabaram apelidadas de bochinescas. Muitas foram inutilizadas pela defesa do Liverpool não por marcação, mas pela saída mais fácil, a da linha de impedimento. Exemplos não faltam além do gif acima: 5min47, 6min40, 19min26, 30min00, 46min20, 55min00, 57min10, 1h12min50…

El Bocha coordenava um meio-campo luxuoso. Um quadrado mágico com Ricardo Giusti, com Jorge Burruchaga e com Claudio Marangoni, o único do quarteto a ficar de fora da Copa 1986, por pura opção do técnico Carlos Bilardo (pois o volante era ídolo e espelho para ninguém menos que Fernando Redondo, apaixonado torcedor rojo), com quem não se entendia e preferiu Sergio Batista e Marcelo Trobbiani, bons mas sem a mesma habilidade. Marangoni era o Maranga ao qual Enrique se referira como seu “professor” de inglês: havia jogado uma temporada no Sunderland em época onde não era comum a terra da Rainha se abrir a jogadores de fora do império.

E foi de Marangoni o passe preciso para o gol, aos 8min5s do vídeo. A linha de impedimento britânica falhou e o jovem José Percudani disparou, inalcançável para os lentos Neal e Gillespie, tocando na saída de Grobbelaar. Percudani pouco havia jogado na Libertadores por estar no serviço militar obrigatório e virava o símbolo da conquista, eleito pela Toyota o melhor em campo. Foi uma aposta de Pastoriza no lugar de Sergio Bufarini, que ocupara a vaga na Libertadores. O garoto chegou a desfilar uns dribles aos 13min45s e teria proporcionado outro gol se não fosse fominha aos 1h15min30. Burruchaga também teve boa chance, mas foi apressado ao definir uma chance inesperadamente surgida de um passe errado de Gillespie.

Mas Marangoni também jogou demais e por diversas vezes tentou repetir a jogada do gol: aos 10min40, 53min01, 1h17min20… Tão infernal que as coisas se inverteram aos 17min47: ele, um volante, foi derrubado pelo atacante Rush e não o contrário. O troco viria aos 39min20, com ele deslocando o galês com um drible. Ao fim de um jogo sem incidentes, a ponto de Grobbelaar e Dalglish visitarem o vestiário argentino para retribuir as congratulações de Pastoriza ao colega Joe Fagan, o volante conversou com Dalglish sobre uma oferta do Southampton. E o escocês lhe respondeu: “Claudio, melhor ficares na Argentina que ali tem sol”. Maranga ficou e sua saída do Independiente só veio em 1988, ao Boca, causando grande consternação nos rojos. No breve tempo em que esteve na seleção, enfrentou três vezes o Brasil. Venceu em casa e não perdeu as duas fora.

Marangoni com a taça Toyota, Trossero com a Intercontinental: semblantes mais serenos que empolgados

Se a política não influenciou na partida, pesou no pós-jogo. Pois, sobre a conquista, Maranga destacou que “não a festejamos. Foi o primeiro choque entre argentinos e ingleses depois da guerra. Enquanto os torcedores se abraçavam, o vestiário estava em silêncio. Havia muita gente lastimada, ou morta, e festejar algo que todos relacionavam com o que havia passado era uma falta de respeito. Ninguém sentia como uma vitória esportiva exclusivamente, o faziam algo nacional, e na realidade não tinha relação”.

Desde então, o clube precisou de meia década para voltar a ser campeão, em 1989, justamente sobre o Boca de Marangoni no Argentinão. O que já era uma eternidade à torcida, mal acostumada, continuou por outros cinco anos dali: após perderem ainda em 1989 dentro de casa a Supercopa (no troco do novo clube do Maranga), o título seguinte demorou outros cinco anos, em 1994, quando levantou-se o Clausura e em seguida venceu-se a Supercopa no “contra-troco” sobre os auriazuis. Em 1995, vieram coroações na Recopa (contra o Vélez recém-campeão mundia, aliás) e com um bi na Supercopa, essa sobre o centenário Flamengo de Romário no Maracanã, mas desde então veio escassez de vez: novas taças só em 2002, no Apertura de melhor ataque da década; em 2010, com um pálido elenco sofrendo para bater o rebaixado Goiás na Sul-Americana; em em 2017, em novo Maracanazo imposto ao Flamengo com um bom futebol, embora a torcida àquela altura já possuísse cicatrizes de um inédito rebaixamento, em 2013.

De qualquer maneira, o Independiente tornou-se até 2000 o único clube argentino com dois mundiais, só sendo superado pelo terceiro do Boca, em 2003. O zagueiro Pedro Monzón, que entrou no decorrer da partida para o lugar de Villaverde, resumiu bem o que era jogar no Independiente daquela época pré-PlayStation após ser indagado se temia enfrentar o tão falado Liverpool: “nervos eu não tinha, eu pensava que era o melhor do mundo porque a camiseta era a melhor do mundo”.

FICHA DA PARTIDA – Independiente: Carlos Goyén, Néstor Clausen, Hugo Villaverde (Pedro Monzón 29/2º), Enzo Trossero e Carlos Enrique, Ricardo Giusti, Claudio Marangoni, Ricardo Bochini e Jorge Burruchaga, José Percudani e Alejandro Barberón. T: José Omar Pastoriza. Liverpool: Bruce Grobbelaar, Phil Neal, Alan Hansen, Gary Gillespie, Alan Kennedy, Craig Johnston, John Wark (Ronnie Whelan 31/2º), Jan Mølby, Steve Nicol, Kenny Dalglish e Ian Rush. T: Joe Fagan. Árbitro: Romualdo Arppi Filho (BRA). Gol: Percudani (6/1º).

https://www.youtube.com/watch?v=P98RPV3Jnt4

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

3 thoughts on “Há 35 anos, o Independiente reinava no mundo pela 2ª e última vez – contra a terra da Rainha

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

9 + vinte =

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.