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25 anos do primeiro grito de Simeone com o Atlético de Madrid: a dobradinha Copa e Liga de 1996

No último domingo, Simeone se tornou o primeiro homem em muito tempo a ganhar três vezes o campeonato espanhol pelo Atlético de Madrid (na soma jogador e treinador, é superado apenas pelos quatro da lenda-mor Luis Aragonés), e, de fato, o único presente nas últimas três conquistas do time em La Liga. Técnico nas temporadas 2020-21 e 2013-14, festejou também a de 1995-96, cujo desfecho histórico completa hoje 25 anos: além de encerrar um jejum de 19 anos (similar aos 18 quebrados exatamente em 2014), segue sendo a única em que o Atleti conseguiu o Doblete, pois faturara ainda a Copa do Rei.

A importância argentina no auge anterior do Atlético

A equipe tivera seu auge entre 1964 e 1977, seu período mais continuamente vencedor: foram três títulos na Copa e quatro na Liga, além do Mundial Interclubes mesmo tendo perdido nos suspiros finais a primeira final da Liga dos Campeões disputada – e a única até 2014. Tempos recheados de sul-americanos, que fizeram os Colchoneros serem apelidados também de Los Indios, o que até 1974 incluía até um espanhol crescido no Brasil feito José Ufarte; e o treinador Juan Carlos Lorenzo, o técnico vice naquela dramática final europeia de 1974 que se recuperaria ganhando as duas primeiras Libertadores do Boca, no bi de 1977-78.

Já o título espanhol de 1976-77, com os argentinos Rubén Ayala (herói do curioso Mundial Interclubes contra o Independiente, honrando a vaga herdada do desistente Bayern) Rubén Cano, José Gárate (ambos aproveitados pela seleção espanhola, com Cano a classificando à Copa de 1978), Ramón Heredia e Rubén Díaz (um vencedor nos sofridos Racing e Atlético…); os brasileiros Heraldo Bezerra (também utilizado pela Espanha, vinha do Newell’s e seguiria ao Boca), Leivinha e Luís Pereira – e o paraguaio Domingo Benegas -, fez as vitrines do Vicente Calderón terem somente uma conquista a menos que as do Barcelona no torneio. Veio então um tri seguido de um Real Madrid também abastecido de argentinos, casos de Enrique Wolff, também de Carlos Guerini e ainda de mais um hermano da seleção espanhola, Roberto Martínez.

A temporada de 1980-81, então, viu o suspiro final de uma grande década rojiblanca. O já decadente Cano era o solitário remanescente da geração anterior de Los Indios, que agora abrigavam o argentino Luis Cabrera, o uruguaio Eduardo Belza e o saudoso curitibano Dirceu. E, similarmente à temporada atual, o Atleti acumulou gordura o suficiente para ter ares de campeão (e igualar o Barcelona). E, tal como na atual, também desmoronou na reta final. A diferença crucial é que o final foi mesmo infeliz: sem nenhuma vitória nas últimas sete rodadas, onde no máximo conseguiu três empates. A gordura era tanta que ainda manteve o time na liderança até a 31ª das 34 rodadas, mas a equipe já não tinha sequer chances de título na última, que premiou pela primeira vez a Real Sociedad.

Simeone e Redondo recém-chegados aos rivais de Madrid, após a parceria dos volantes na Copa de 1994: “o Príncipe e O Guerreiro”. O visual à paisana já indica quem é quem…

O Barcelona então abriu dois títulos de distância na temporada 1984-85. Não faltaram argentinos no Vicente Calderón, mas nem técnicos do porte de César Menotti (temporada 1987-88, onde o técnico vencedor da Copa de 1978 não durou até o fim), Iselín Ovejero, José Omar Pastoriza, o citado Ramón Heredia, Jorge D’Alessandro e Alfio Basile (argentinos que treinaram o time entre 1992 e 1995; Basile havia vencido as duas Copa América anteriores com a seleção enquanto Pastoriza segue sendo o último treinador campeão de Libertadores e de Mundial com o Independiente, em 1984) davam jeito na seca vivenciada também pelo goleirão Ubaldo Fillol (temporada 1985-86) e pelo habilidoso José Luis Villarreal – que, ídolo do Boca campeão de 1992 após o pior jejum doméstico do clube, durou só o primeiro turno da de 1992-93, voltando à Argentina para se queimar no River.

Em paralelo, o Barcelona encerrava um pentacampeonato madridista para viver um inédito tetracampeonato catalão entre 1990 e 1994, período em que enfim ganhou também sua primeira Liga dos Campeões. A reação da dupla da capital espanhola para a temporada 1994-95 foi tirar Redondo do Tenerife e Simeone do Sevilla. A revista El Gráfico reuniu a dupla de volantes da seleção na Copa de 1994, com o sugestivo título “O Príncipe e O Guerreiro”. Foi após um dérbi entre o Real de Redondo (e do técnico argentino Jorge Valdano) e o Atlético de Simeone (e do citado técnico argentino D’Alessandro), onde já se diagnosticava que “Simeone é o líder do Atlético de Madrid. Quando o sangue de todos se esfria, o dele se esquenta ainda mais. E, na falta de ordem e sócios para sair, o redemoinho de sua paixão emparelha as coisas. A pede sempre, e, quando não a tem, se mata para recupera-la”.

Os blancos venceram aquele clássico por 4-2 e foram adiante campeões após cinco anos. Os rojiblancos brigaram para não cair, terminando um ponto acima da repescagem, mas desengasgaram outro ano depois. Curiosamente, o grande concorrente nas duas frentes domésticas foi outra camisa tradicionalmente ligada a argentinos  que estava permeada por jejum, a do Valencia – seu apelido de Ches não é à toa. Os morcegos teriam mesmo de suportar a espera que datava desde a epopeia de 1971 do time do técnico Alfredo Di Stéfano e do meia Oscar Valdez (naturalizado pela seleção espanhola) até nova panelinha argentina no Mestalla (Pablo Aimar, Kily González, Roberto Ayala e Mauricio Pellegrino) dar jeito em 2002 – ano em que Simeone, por sua vez, voltava do futebol italiano a um pálido Atlético, recém-saído de duas temporadas na segunda divisão.

Em 2004, El Cholo foi entrevistado pela El Gráfico e cravava aqueles títulos de 1996 (os seus primeiros por um clube) como um dos três que mais desfrutou na vida, junto da Copa América de 1991 (o primeiro da carreira) e a dobradinha italiana com a Lazio em 2000. “Se ganhou após 19 anos, e ver as pessoas do Atlético zombando ao menos uma vez as do Real foi fabuloso”, resumia. E até lembrava de ter criado o apelido de Príncipe dado a Redondo, dizendo que “era um príncipe com o cabelinho cortado, por como se move, pela sua maneira de gostar. Ele é vistoso, alto. Ou seja: o Real Madrid lhe caiu bem”.

Simeone em 1994, na sua primeira temporada no Atlético, e dez anos depois

Já veterano, Simeone foi incapaz de, sozinho, desatolar o Atleti de campanhas de meio de tabela. Preferiu viver a emoção de jogar no Racing do coração em 2005, quando quase foi campeão argentino no Clausura. No torneio Apertura da temporada 2011-12, então, o time de Avellaneda começaria brigando para não cair na tabela de promedios e recorreu a seu famoso torcedor, já um treinador de altos e baixos. Se a disputa séria pelo título não existiu frente um Boca feio mais muito eficiente, El Cholo fez da Academia o vice-campeão do Apertura. O suficiente para o Atlético, em similar briga para não cair naquela mesma temporada 2011-12, o chamasse de volta na época natalina. O resto é a sequência de uma história que teve seu primeiro capítulo encerrado 25 anos atrás.

Resumo do Doblete

Simeone começou a temporada com duas companhias: o filho Giovanni nasceu em Madrid em julho, enquanto o clube acertava a vinda de outro argentino: Leonardo Biagini, que vinha do Newell’s para ser mais protagonista na fase áurea do Real Mallorca vice continental anos depois, embora viesse a ser um bom reserva naquele Atlético. Os cartões de visita foram instantâneos: El Cholo fechou um 4-1 sobre a Real Sociedad na 1ª rodada de La Liga, em 3 de setembro. Na sequência, 4-0 no Racing em plena Santander (Simeone fez o terceiro) e 2-0 no Athletic dentro de Bilbao e então um 2-0 no Sporting Gijón em casa fecharam um mês inicial perfeito. Entre esses dois jogos, a única derrota no mês para o volante foi pela seleção, no dia 20. Foi na noite em que o argentino Juan Antonio Pizzi, atual técnico do Racing, marcou sobre a terra natal na vitória de 2-1 da sua Espanha de adoção.

A invencibilidade rojiblanca se manteve em outubro: 0-0 em casa com o Sevilla no dia 1º e o 2-1 no Espanyol antecederam um 3-0 com placar aberto pelo volante sobre o Celta em Vigo. O caudilho argentino esteve com tudo, marcando depois os únicos gols que bastaram nos triunfos sobre La Coruña e (fora de casa) Real Valladolid, já em 21 de outubro. A campanha na Copa do Rei, por sua vez, começou em 25 de outubro, um 4-1 fora de casa no Almería pelos 32-avos-de-final. Um mês quase perfeito terminou com um certo tropeço, o 1-1 no Vicente Calderón com o futuro vice-lanterna Mérida.

Mas Simeone, novamente, marcou o único gol do triunfo fora de casa sobre o Real Zaragoza, em 5 de novembro, antes do retorno protocolar contra o Almería pela Copa (2-1 no dia 8; El Cholo foi um dos titulares ausentes, mas não poupados: naquele mesmo dia, perdeu pela Argentina para o gol de Donizete na última vitória que o Brasil conseguiu até hoje no Monumental de Núñez). Na sequência, dois dérbis madrilenhos esquecíveis: 0-0 em casa com o Rayo Vallecano e a primeira derrota, de 1-0, para o carrasco Raúl na visita ao Real. A recuperação veio com Simeone anotando o segundo gol de um 3-0 sobre o Real Oviedo no dia 26 – para, 48 horas depois, o Mérida ser surrado de 4-1, agora pelos 16-avos-de-final da Copa.

https://twitter.com/Atleti/status/1397113488758169600

Em 3 de dezembro, o Real Betis impôs a segunda derrota aos colchoneros, por 2-1 em Sevilha. Mas, no dia 9, os escombros do Barcelona de Cruyff só diminuíram no finzinho o 3-1 no Calderón. A movimentada volta contra o Mérida pela Copa (4-4 no dia 13, com o argentino Biagini impedindo a derrota aos 47 do segundo tempo) foi o penúltimo compromisso oficial de 1995; depois, veio um 3-0 (Simeone, novamente, fez o segundo) sobre o Compostela no dia 20 e um amistoso de réveillon em Alicante entre os reservas de Atlético e Real, com direito até a gol do recém-chegado Dejan Petković no triunfo merengue por 3-2 sem Simeone em campo. Só que, na tabela de La Liga, o poderoso vizinho estava incríveis 14 pontos abaixo…

O ano de 1996 começou com duas vitórias por 3-1: sobre o Salamanca fora de casa no dia 3 e sobre o Tenerife no dia 6. No dia 9, pelas oitavas-de-final da Copa do Rei, o Betis ameaçou, arrancando um 1-1 no Calderón. O primeiro turno de La Liga, por sua vez, encerrou-se com Simeone achando aos 44 minutos do segundo tempo o gol do empate em 1-1 fora de casa com o Albacete, no dia 13; 72 horas depois, o susto bético passou, com dois gols antes de meia hora de jogo em Sevilha a forçar os alviverdes a acharam três gols – só conseguiriam um. Na sequência, a Real Sociedad venceu de 1-0 em San Sebastián, mas o Atleti nunca emendou mais de uma derrota naquela temporada: bateu por 2-0 o Racing Santander e Biagini fechou a surra de 4-1 sobre o Athletic no dia 28. Janeiro terminou com um 0-0 na visita ao Tenerife pelas quartas-de-final da Copa, no dia 31.

Em fevereiro, o líder começou batendo por 2-1 o Sporting Gijón fora de casa no dia 3 e então perdeu para o novo time de Petković, o Sevilla, por 1-0 fora de casa no dia 10. O compromisso seguinte foi o jogo da volta contra o Tenerife pela Copa: um triplete do búlgaro Lyuboslav Penev resolveu tudo no dia 15. Três dias depois, Kiko e o mesmo Penev fizeram os trabalhos no Sarrià na visita ao Espanyol. E, em 21 de fevereiro, começaram as semifinais da Copa do Rei, precisamente contra o mesmo Valencia que tanto lutava por La Liga. Dentro do Mestalla, o time da casa abriu 2-0. Em incrível reação, o argentino Biagini marcou o da virada provisória de 3-2 aos 28 do segundo tempo. Ainda haveria tempo para mais e o Atlético foi premiado com um 5-3 cardíaco. Então, no dia 25, Simeone fez o segundo de um 3-2 no Celta, e o mês bissexto terminou com derrota não muito amarga no dia 29: o brasileiro Viola abriu o placar de um 2-1 dentro do Calderón insuficiente ao Valencia na segunda semifinal da Copa.

O mês de março teve folga de Copa do Rei e o líder da liga então ficou no 2-2 na Galiza com o La Coruña mesmo estando duas vezes à frente do placar no dia 3. Uma semana depois, o Valladolid conseguiu um 2-0 no Calderón, compensado com o 1-0 na visita ao Mérida no dia 17. Entre 24 e 30, uma sequência de regular para baixo: 1-1 em casa com o Zaragoza, um 3-0 aberto por Biagini na visita ao Rayo Vallecano e nova derrota no grande clássico de Madrid, com o Real do interino Arsenio Iglesias (o técnico tempão entre Valdano e Fabio Capello) prevalecendo por 2-1 na casa rojiblanca. Abril começou já com a expectativa pela final da Copa. Antes, o líder ficou no 1-1 na visita ao Oviedo, para então comemorar no dia 10 contra o canto do cisne do Barcelona de Cruyff.

O primeiro troféu da temporada: a Copa do Rei sobre o Barcelona do ainda volante e cabeludo Guardiola, em 10 de abril de 1996, teve um uniforme ligeiramente diferente

Simeone esteve nos 120 minutos, pois o gol solitário da final, do sérvio Milinko Pantić, só veio já na prorrogação na neutra Zaragoza. Sem deixar a peteca cair após a festa copeira, o Atleti seguiu na liderança de La Liga mesmo só ficando no 1-1 em casa com o Betis no dia 14. No dia 20, nem o gol de Jordi Cruyff abrindo o placar na Catalunha impediu o fim de ciclo do ilustre pai (que seria demitido na penúltima rodada): Biagini fechou uma virada de 3-1 em pleno Camp Nou sobre um Barcelona que ainda se punha matematicamente no páreo pelo campeonato.

Mas, no dia 27, o Valencia pôs certo fogo na disputa, arrancando um 3-2 no Calderón – Simeone jogou sob efeito de viagens transatlânticas após o 3-1 sobre a Bolívia pelas eliminatórias da Copa de 1998 três dias antes. Com mais quatro rodadas, a tabela mantinha o Atleti na frente com 77 pontos, com os Ches em 74 e o Barça, com 71, ainda correndo por fora. O surpreendente Espanyol, com 66, puxava a fila dos que só aspiravam alguma vaga continental, onde um irreconhecível Real Madrid aparecia em 8º, vinte pontos atrás do líder.

Em 4 de maio, El Cholo fez o segundo de um 3-1 na visita ao Compostela e no dia 12 o líder pôs uma mão no título ao arrancar no fim uma vitória de 2-1 sobre o Salamanca. A taça poderia ver na penúltima rodada, mas o Tenerife fez jogo duríssimo nas Canárias no dia 18: o hispano-argentino Pizzi, outrora carrasco do Real Madrid nos famosos Tenerifazos seguidos em 1992 e 1993, abriu o placar só igualado por um gol contra aos 43 do segundo tempo. Era preciso secar o Valencia, que jogaria no dia seguinte com aquele Espanyol bem interessado numa vaga europeia: se o concorrente perdesse, o Atleti seria campeão. Os catalães tentaram, com direito a gol anulado do argentino Mauricio Pochettino, mas foram incapazes de impedir que um Mestalla abarrotado festejasse nova vitória seguida, colocando os vice-líderes a 82 pontos – dois a menos que Simeone e colegas.

Para contar o desfecho daquele sábado espanhol de 25 de maio de 1996, onde a cabeça de Simeone (premiado ao fim da temporada com uma das três vagas dadas a veteranos na seleção que embarcou às Olimpíadas de Atlanta, após ter integrado o papelão da Albiceleste no pré-olímpico para 1992) abriu aos 13 minutos o placar completado por Kiko aos 31, recorremos à tradução integral da matéria publicada na época pela revista El Gráfico (que, curiosamente, deu ao volante somente uma nota 7 pelo desempenho naquele dia – o carismático atacante Kiko, com um 8, foi apontado como o melhor em campo…) mantendo-se negritos, maiúsculas e aspas do original – com eventuais notas de contexto do Futebol Portenho:

A imagem que abre a matéria que traduzimos abaixo

EL CHOLO, O DONO DE MADRID

É domingo, o domingo inesquecível para Diego Pablo Simeone. Vem de dormir às sete da manhã, após um festejo inesquecível: pela primeira vez é campeão com um clube. Apesar disso, se levanta com um sorriso e desfruta a intensa jornada que lhe espera: almoço em De María, um dos mais típicos restaurantes argentinos de Madrid, vistoria pelos jornais esportivos, viagem a Buenos Aires com destino de Seleção em horário noturno…

Antes, o encontro com EL GRÁFICO. “Já foi, já é história”, diz El Cholo como para encerrar a lembrança dos momentos de sofrimentos. “Fomos campeões com o Atlético de Madrid…” é sua seguinte frase e sabe que não necessita agregar adjetivos. Leva seis anos na Europa, os dois últimos no Atlético, e apenas tem 26…. “Fui subindo escalões pouco a pouco: primeiro o Pisa, o Sevilla e agora o Atlético, mas nunca estive em equipes que têm a necessidade de serem campeãs sim ou sim, esse protagonismo. Custa o dobro, mas me sinto identificado com este estilo, o de brigar desde baixo, assim é também minha forma de ser”.

Leva as cores metidas no corpo, as pessoas o sabem e lhe reconhecem: “Viste o que era o campo? Quando entrei, disse: saímos campeões ou morremos aqui dentro. Quando terminou, me coloquei a olhar as pessoas, comecei a respirar… que lindo!”.

Lhe brilham os olhos, fala todo o tempo sem esperar a pergunta: é um Cholo legítimo e dessa vez reforçado. Acaba de finalizar a melhor temporada de sua carreira, termina de meter-se na história do Atlético de Madrid (na temporada jogou 37 partidas, 3.230 minutos) e não para de falar… “Eu digo que às vezes passa o trem e há que subir, mas ademais tens que estar preparado para tudo o que venha. Isso aconteceu conosco: para que uma equipe saia campeã, vários jogadores devem estar em seu momento. Molina foi um fenômeno, Penev fez 16 gols, Pantić arrebentou, Kiko também… E eu? Bem, meti 12 gols e estou vivendo meu melhor momento futebolístico. Me fui fazendo jogador na Europa, mas com a malandragem argentina. Sou muito diferente do Cholo que jogava no Vélez: mais pensante e mais completo”.

O Atlético de 25 de maio de 1996: Juanma López, Molina, Vizcaíno, Kiko, Caminero, Geli e Penev; Simeone, Santi, Pantić e Toni. No 2º tempo, também entraram Roberto (27 minutos) no lugar de Kiko, o argentino Biagini (28) no de Penev e Tomás (34) no de Geli

Tem 26 anos, parece mentira. Há muito tempo pela frente… “Me sinto muito cômodo aqui, sonho jogar a Liga dos Campeões da Europa, mas também reconheço que me ficou uma espinha na Itália. Ademais, não fecho portas, nunca. Se falou da Fiorentina, da Roma. Me orgulha que queiram me levar e também que Gil y Gil diga que vou morrer no Atlético. De todas as formas, não quero pensar em longo prazo…”.

El Cholo mete a pausa, levanta seu filho Giovanni Pablo, de dez meses e meio, olha sua mulher Carolina e põe os óculos escuros. Hoje é um dos donos de Madrid e sabe disso.

“Ole-ole-ole, Cholo Simeone!”

Uma parte de Madrid está em festa. Talvez o quarenta por cento de sua população futebolística. É a Madrid com menos ginástica nisto de saber-se dona da Espanha. São, de alguma forma, os oprimidos na corrida de êxitos e fracassos. Aqui, no Vicente Calderón, às margens do rio Manzanares, são 60.000 os que gritam e desfrutam com a sensação de estar vivendo um momento único. Têm razão…

O “Atleti” acaba de ganhar um título depois de 19 anos. E, ademais, pela primeira vez em sua história, logra o doblete: aa Liga e a Copa do Rei em um mesmo ano. O estádio, cuja capacidade é a metade do Santiago Bernabéu, se move, treme e o Manzanares descobre ondas que antes não conhecia. Ali abaixo, no campo, um argentino passeia ao largo dando saltinhos, com os braços no alto e lágrimas nos olhos frente a tribuna oficial. Sua aparição faz com que os torcedores deixam de cantar o hino do Atlético de Madrid para mudar o tom de voz e soltar um decidido “¡Ole-ole-ole, Cholo Simeone!

El Cholo é ídolo e é culpado de que esta festa não tenha roçado sequer o sofrimento: faz o mais difícil, desativar a corrente de temores com seu gol, o primeiro da equipe ante o Albacete Balompié. Seu cabeceio, aos treze minutos, descontraiu os músculos dos jogadores, torcedores, dirigentes, fez apagar as rádios e acabou com as especulações das matemáticas. O que ficou para depois foi fácil, um cômodo 2-0.

El Cholo é parte desta gente e é parte destas cores que até o arranque da temporada só ofereciam penúrias.

O gol que abriu a festa em 25 de maio de 1996 veio logo aos 13 minutos neste cabeceio de Simeone, à esquerda. Outra foto da revista El Gráfico pós-jogo – a foto que abre a matéria é a da comemoração desse gol

Ademais, é parte da festa. A mesma que protagoniza com especial carisma Kiko, o melhor jogador da equipe, despojado por vontade própria de sua camiseta. É o único que não a tem posta, para substitui-la por uma camisa negra com o desenho de seu ídolo Bart Simpson. Kiko encabeça a fila que corre até a popular onde habitam os barras mais fortes e se atira de peixinho. Nesses dois grupos (“Frente Atlético” e “Ultra Fondo Sur”) se nota uma crescente “infiltração” argentina; algumas cantoriazinhas os delatam.

Mas a festa é limpa, magica: durante vinte minutos, os jogadores recorrem o terreno de jogo e colhem ovações. A festa é de todos, cada um em seu lugar: os jogadores em campo, rodeados de fotógrafos e câmeras, sim, mas sem necessidade de lutar para proteger suas camisetas contra intrusos; as pessoas, na tribuna. Limpa, mágica, e que a ninguém se lhe ocorra sugerir que aqui não há paixão!

É o tempo do “Atleti”. Algo assim como o Boca madrilenho, por paixão e sofrimento [nota do Futebol Portenho: os auriazuis estavam distantes da Era Carlos Bianchi, com dois solitários títulos argentinos nos vinte anos – 1977-1996 – anteriores, algo piorado considerando-se que na Argentina quase sempre se havia dois campeonatos por ano], embora a proporção de torcedores que o diferencia do Real Madrid – o River – não coincida com a relação entre os dois grandes argentinos. É o tempo de desfrutar, sobretudo se antes houve que transpirar tanto.

LIGA DE FANTASMAS

Parece o selo do Campeonato da Espanha. Finais apertados, surpresas de último momento e, como consequência, desconfiança e temor. A temporada anterior foi a exceção, o Real Madrid resultou campeão sem particulares contratempos. Mas nas anteriores aconteceu de tudo: na 1993/94, o La Coruña perdeu o título no último minuto, quando Djukić desperdiçou um penal; na 91/92 e 92/93, o Tenerife condenou o Real e beneficiou o Barça de Cruyff. Razões não faltavam para imaginar um final não apto para miocárdios frágeis. Sem o Barcelona na briga, com o Atlético de Madrid necessitado de apenas um ponto, de local e frente o Albacete (a equipe número 20 entre 22), e sempre e quando o Valencia ganhasse sua partida de visitante contra o Celta, o panorama parecia fácil. Mas sempre há um mas…

Mais duas fotos pós-jogo da revista El Gráfico: Simeone com o outro argentino daquele Atlético, Biagini. E com a família: o ainda bebê Giovanni nasceu em Madrid, logo antes daquela temporada, em 5 de julho de 1995

O Atlético decidiu concentrar-se dois dias antes do habitual, e por terceira vez na temporada, a 71 quilômetros da cidade. Ali, no Club Náutico Náyade de Los Angeles de San Rafael, um complexo urbanístico residencial paradisíaco, os garotos de Radomir Antić viveram sua espera. O estado anímico do plantel o definiu Simeone: “Não aguentamos mais, que se termine este campeonato. Não se pode sofrer tanto…”.

A pressão, futebolisticamente, chegava desde o Valencia (equipe conduzida por Luis Aragonés, o último técnico campeão do Atlético, em 1977) com seus seis últimos triunfos consecutivos. A história do Atleti marcava uma tendência para o infarto: das oito Ligas ganhas, sete se haviam definido na última rodada. Só a imediata anterior – 1976/77, com os argentinos Rubén Andrés Cano e Rubén Hugo Ayala na equipe – foi a exceção. Impossível, então, afiliar-se à comodidade. Ademais, como disse Caminero, uma de suas grandes figuras: “Estamos diante da partida de nossas vidas”. Não se equivocou.

RADOMIR E JESÚS

Com estilos diferentes, os dois condutores viveram seus momentos máximos de glória.

Para Radomir Antić, um sérvio de 46 anos que foi volante ou lateral-esquerdo do Partizan da Iugoslávia, Fenerbahçe da Turquia, Luton Town da Inglaterra e finalmente zagueiro central do Zaragoza da Espanha, onde foi companheiro de Jorge Valdano, se tratou da grande revanche. Em janeiro de 1992 o Real Madrid o trocou por Leo Beenhakker: pôs o holandês como técnico e o sérvio como secretário técnico. Seu pecado? Diziam que a equipe não jogava bem, que Butragueño era o caubói solitário… apesar disso, o Madrid era líder, passado o primeiro turno. Resultado? Com Beenhakker no banco, o Tenerife lhes arrebatou a Liga e a obsequiou ao Barcelona.

Para Jesús Gil y Gil, um dos personagens mais insólitos da história do futebol, foi seu grande momento de sanidade. Quando na semana passada sua equipe poderia consagrar-se campeã, disse: “Quero ganhar a Liga, mas me dá igual que seja em Tenerife ou na Groenlândia”. Quando o Barcelona ficou fora da briga, comentou: “Nos chamam os índios do Calderón, pois agora fica uma tribo a menos”. Quando surgiu o tema da mala preta, subtraiu: “Não paguei nem me pagaram por ganhar, se a equipe está bem não influirão nem malinhas nem baús…”.

Uma última foto da edição pós-jogo da revista El Gráfico: Simeone ao meio nessa imagem da festa da liga de 1996, na fonte de Netuno

Radomir Antić é todo o contrário de seu presidente. Diplomático, amável, um grande sorridente. Manobrou todas as situações com precisa cintura, mas sem perder a perspectiva: “Tenho claro que jogamos pela história”. Uma história que o tem como grande protagonista: armou o campeão a partir de um conjunto que nos dois últimos anos paquerou perigosamente com o rebaixamento. E o fez de forma artesanal. Trouxe José Francisco Molina, um goleiro que começou no Valencia e que nas últimas partidas da Liga anterior, jogando para o Albacete, recebeu nada menos que catorze gols. Molina foi um dos melhores e já está na seleção. Trouxe Lyuboslav Penev, a única compra importante, e o búlgaro foi o goleador do campeão, com 16 gols. Trouxe Milinko Pantić, um desconhecido volante sérvio que vinha sem antecedentes desde a Grécia, e sua pegada foi uma arma fundamental, tanto que cada vez que vai cobrar um escanteio a torcida lhe faz reverências com os braços. Trouxe Leonardo Biagini e, apesar de jogar pouco, o outro argentino da equipe fez gols importantes. Ademias, Antić recuperou Kiko, um atacante cuja quotização estava em franco declínio.

Gil y Gil prometeu muito e agora deverá cumprir. Os jogadores se teriam assegurado 100.000 dólares por ganhar a Copa do Rei, e a isso lhe somarão os 200.000 pela Liga. Cada um, é claro. Mas Gil não é homem de números, sim de palavras: lhes havia prometido um relógio Rolex por boneca e ante a insistência das esposas e namoradas duplicou a oferta. Não foi o único: a Caminero, terá que presentear um cavalo puro sangue “para sua filha Lidia”, tal como explicou Jesús com ternura, para logo esclarecer: “Mas que não se inteire Kiko, que me pede de tudo…”.

O PLANETA NETUNO

Diz a tradição do futebol madrilenho que o Real festeja na fonte de Cibeles e o Atlético, na de Netuno. Também dizia que os Merengues eram os que ganhavam e os Colchoneros, os que perdiam. Desta vez, o Real Madrid ficou de fora da Copa da UEFA e o Atlético meteu 40.000 pessoas nas ruas próximas a Netuno na noite de sábado. Até ali foram os jogadores, o corpo técnico e, como ia perder!, dom Jesús Gil y Gil…

Era o tempo do Atleti, gente muito distinta, segundo explica El Cholo Simeone: “Eles são mais finos, nós somos índios. Mas aqui há mais paixão, é algo assim como o Boca ou melhor, como o Racing…”. É o tempo do Atleti, gente muito sofrida, alguns famosos como Joaquín Sabina ou as Azúcar Moreno. E de outros, anônimos, que agora passarão pelo Santiago Bernabéu, no pleno centro madrilenho, com um sorriso enorme. Desta vez, depois de esperar nada menos que 19 anos, a festa é deles.

https://twitter.com/Atleti/status/1397120000662593539

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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