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Há 105 anos, o primeiro grande chegava à elite: o River

River 1908
Luraschi, Griffero e Priano; Messina, Morroni e Chagneaud; García, Abaco Gómez, Chiappe, Politano e Fernández. Os onze em campão 105 anos atrás

Há 105 anos, o River, clube com mais temporadas seguidas na elite argentina, chegou a ela. Fundado em 1901 (há quem diga que em 1904), ele, como os demais “5 grandes”, nascidos na mesma década, teve que começar nas divisões inferiores, criadas em 1899. A final poderia ter sido ainda mais histórica, pois poderia ter sido contra o Boca. Desde então, foram 102 anos seguidos na primeira até o inédito rebaixamento, em 2011: o Independiente caiu neste 2013 após 101 anos e o Boca, neste mesmo ano, chegou aos 100. San Lorenzo, que subiu em 1915, e Racing, em 1910, foram rebaixados já nos anos 80.

Também o maior campeão nacional, o River inscreveu-se na Associação Argentina de Football em 1905. Ainda clube do bairro de La Boca, daí surgindo sua rivalidade com o Boca Juniors, a equipe mudou-se dele pela primeira vez em 1907. Não ainda à fina zona norte de Buenos Aires, o que se daria só em 1923 (clique aqui), e sim ainda mais ao sul, para Sarandí. A autorização para jogar lá não veio sem folclore: um dos requisitos da AAF era que os vestiários deveriam ter duchas para a higiene pós-jogos.

Dois garotos passaram escondidos com baldes por três horas no telhado para que jogassem água pelos tubos vazios das duchas sincronizados ao sinal que o staff do clube lhes faria. Deu certo e a autorização veio… e, apesar da distância para seus torcedores, o time por pouco não subiu já em 1907. Na época, a segunda divisão se dividia em zonas, cujos líderes depois se pegavam em mata-matas. O River ia conseguindo, caindo só na final: 1-0 para o Nacional, time do bairro da Floresta formado por empregados da Gath & Chaves, célebre loja de departamentos que funcionou na famosa rua Florida até os anos 70. Em compensação, em janeiro de 1908 o clube voltou a La Boca.

Na época, era comum que as divisões inferiores recebessem equipes B e o River também inscreveu a sua em 1908, mas ela não ganhou e levou 39 gols em 8 jogos. Já o time A novamente liderou sua zona. A saga começou em 25 de abril: 5-2 no Continental. A seguir, 3-2 no Southern Rangers em Temperley (10 de maio), 12-0 no time B do Lomas Athletic (17 de maio) e 4-0 no Atlanta (31 de maio) puseram o time na liderança ao fim do primeiro mês, junto do time B do Estudiantes de Buenos Aires. Foi nessa época que o tal time do Nacional foi desafiliado da elite, justamente por irregularidades no seu campo.

O Nacional jogara duas vezes e vencera bem (3-1 no Reformer e 3-0 no Lomas), mas não cumprira o prazo para melhorar seu campo, que machucava os jogadores por ter eucaliptos no gramado. O River manifestou-se no sentido de ser promovido a elite, como vice do desafiliado, mas foi negado. Mas na rodada seguinte, em 29 de junho, num 5-0 fora de casa contra o Estudiantil Porteño B, o clube estava cheio de novidades: Arturo Chiappe, Franco Chagneaud, José Morroni e Julio Abaca Gómez, que estavam em campo pelo Nacional naquela final perdida de 1907. Vieram talvez por influência de Abaca Gómez, afilhado do pai de Fernando Flores, um dos fundadores do River.

Chiappe e Morroni, particularmente, se tornariam ídolos. Na época em que era comum haver só dois defensores, ser veloz e forte era fundamental. E Chiappe era, além de um marcador leal. Lealdade também foi uma marca de José Morroni, que rogou que um juiz anulasse um gol irregular do colega Elías Fernández contra o Estudiantes de Buenos Aires, em 1909. Chiappe, que antes chegara a jogar no Boca, ficaria um bom tempo no novo clube: dos campeões da segundona de 1908, seria o único remanescente no primeiro título do time na elite, em 1920.

A rodada seguinte foi em 9 de julho, 1-0 no Estudiantes de Buenos Aires B e liderança isolada. A primeira derrota veio logo depois: 3-0 para o Porteño B (12 de julho). O ainda líder recebeu quatro pontos pelo W.O. do Instituto Americano nos dois jogos seguintes e em 9 de agosto empatou em 3-3 com o Atlanta. O Estudiantes passou a ser o líder e seria o próximo oponente. Venceu por 4-3 no dia 23. Foi então que este foi considerado perdedor dos dez jogos em que escalou Ramón Lamique (que jogaria depois por Boca e River), incluindo naqueles 4-3: o jogador teria atuado pelo Comercio e se mudou para o Estudiantes sem o devido passe correspondente.

Principal beneficiado, o River ainda ganhou novamente por W.O. seus compromissos seguintes, contra Lomas B e Porteño B, e depois sapecou 11-0 fora de casa no Comercial (27 de setembro). Em 4 de outubro, venceu o Southern Rangers. E garantiu a classificação ao impor um 4-0 no Estudiantil Porteño B. Paralelamente, o Boca, que competia pela primeira vez no campeonato argentino, também venceu a sua zona. Eles poderiam se cruzar na final, se vencessem suas semis. O River fez sua parte: em jogo-único no campo neutro do Racing, fez 5-1 no Ferro Carril Oeste em 8 de novembro.

O primeiro Boca-River pelo campeonato argentino ficou para 1913, há cem anos, com ambos na elite (clique aqui), pois os auriazuis perderam sua semi para o Racing, 1-0, gol que sofreu aos 2 minutos de jogo quando atuava com dois a menos: o árbitro iniciou a partida com os atrasados boquenses Marcelino Vergara e Juan Priano ainda se arrumando nos vestiários. A final seria em 13 de dezembro. Frers pôs o Racing na frente, mas, mesmo com um a menos após a lesão de Cambón, o River empatou aos 34 do segundo tempo, com García, e virou na prorrogação, com Fernández.

Em todos os três gols, torcedores invadiram o campo, mas tais anormalidades levaram a Associação Argentina a anular a partida, não satisfazendo ninguém: o Racing esperava  receber o título e o River ficou logicamente injuriado por perde-lo temporariamente. Mas o capitão Abaca Gómez, em carta ao jornal La Argentina, embora defendesse a não-anulação, afirmou que não teria problemas em jogar de novo contra o Racing “não uma, mas quantas vezes me convide para oferecer-lhes a ocasião de comprovar quem vence quem”. Isso ficou para duas semanas depois, 27 de dezembro. Ambos foram avisados que se houvesse nova invasão, o jogo seria encerrado e o torneio ficaria sem campeão.

“Apesar do dia pouco apropriado para ver football, grande número de espectadores se congregou no field do Gimnasia y Esgrima. Este se encontrava, apesar das fortes chuvas da noite anterior, em condições aceitáveis. Contudo, de trecho a trecho, grandes poças de água dificultavam o jogo. Um forte vento soprou durante a tarde, com a consequente moléstia para os jogadores”, escreveu-se na edição de 28 de dezembro de 1908 do La Nación. O Gimnasia em questão é o de Buenos Aires (o GEBA), de futebol competitivo desativado em 1917. O River não deixou dúvidas em campo sobre o legítimo campeão. Massacrou desde cedo: aos 5 minutos, Griffero completou cruzamento de García para abrir 1-0.

Aos 22, Gómez aproveitou passe de Politano para ampliar e, dois minutos depois, o defensor racinguista Vigil marcou contra, ao tentar desastradamente afastar um chute de Politano. Revoltado, o goleiro do Racing, Raimundo Lamoure, discutiu com os colegas no vestiário e abandonou o jogo no intervalo; jamais voltaria a jogar pelo clube. Juan Ohaco se improvisou no seu lugar. A superioridade numérica fez a goleada mais do que dobrar na metade seguinte. Aos 10 minutos, Politano enfim marcou o seu. Aos 18, Chiappe fez o quinto. Aos 27, Griffero marcou outra vez, e aos 40 foi a vez de outro de Chiappe: 7-0 para acabar com quaisquer discussões.

“O match, em geral, foi muito bom. Porém, o desequilíbrio de forças que se notou desde o princípio quitou muito do brilho que se esperava. O River Plate jogou uma notável partida. Apresentou um quadro homogêneo e excelente, cuja linha de forwards trabalhou com empenho, combinando em boa forma. E quanto à defesa, atuou com todo acerto, destacando-se a linha intermédia. O match de ontem faz esperar que reforçados aqueles pontos que se notam mais débeis, o River Plate terá uma boa atuação na temporada próxima dentro da primeira divisão”, foi outra descrição do La Nación há 105 anos. Acertou: os novatos terminariam vices da elite já na estreia, só atrás do melhor time da época, o Alumni.

Dos demais jogadores do River, outros merecem menção: Francisco Priano era irmão do mencionado boquense Juan Priano e inclusive chegou a jogar um amistoso pelo Boca naquele 1908. Nasceu em Gênova, cidade de muitos emigrantes no bairro de La Boca: é por isso que as cores branca e vermelha de sua bandeira foram adotadas pelo River e que os torcedores do Boca se chamam de xeneizes, palavra derivada de zeneise, “genovês” no dialeto da Ligúria. Priano voltaria à Gênova e jogaria pelo Andrea Doria, clube que ao fundir-se nos anos 40 com o Sampiedarenese, daria origem à Sampdoria.

Bernardo Messina era o único remanescente em campo da primeira comissão diretiva do River, onde era secretário. Virou arquiteto e projetou o primeiro estádio que o time teve ao mudar-se para a zona norte de Buenos Aires, em 1923. Elías Fernández seria o primeiro do clube a jogar pela seleção, em 1909. E, naqueles tempos em que Boca e River eram só rivais de bairro, longe da magnitude nacional, Anempodisto García, como Chiappe e Priano, foi outro dos primeiros vira-casacas.

FICHA DA PARTIDA – River: Alejandro Luraschi, Arturo Chiappe e Silvio Politano, Bernardo Messina, José Morroni e Franco Chagneaud, Anempodisto García, Pascual Griffero, Julio Abaca Gómez, Elías Fernández e Francisco Priano. Racing: Raimundo Lamoure, Vigil e Firpo, Alberto Ohaco, Juan Ohaco e Viazzi, Winne, Pablo Frers, Alvear, Oyarzábal e Lacrampe.

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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