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Há 90 anos, os argentinos inventavam o gol olímpico

Ontem fez-se 20 anos do primeiro gol de falta de Chilavert: leia aqui. Mas 2 de outubro também viu outra novidade histórica entre as opções de gol. Nesta data em 1924, um Argentina x Uruguai reservou o ineditismo de um chute de escanteio entrar diretamente nas redes pontuar um jogo de futebol; até semanas antes, se isso acontecesse o lance seria invalidado, a não ser que a bola desviasse em alguém (a própria seleção argentina já havia marcado gols assim, “acidentalmente” olímpicos) ou fosse tocada por outrem antes da cobrança, como num tiro livre indireto. A liberação foi comunicada pela FIFA à AFA precisamente na véspera do jogo. E a honra inaugural, curiosamente testemunhada até por um paletó do Fluminense (presenteado a um dos árbitros auxiliares na Copa América de 1922, sediada no estádio das Laranjeiras), coube a Cesáreo Onzari – a pronúncia é “Cessáreo Onçári”.

Por que “gol olímpico”? Porque a seleção rival havia acabado de ser campeã mundial nos Jogos de 1924. A rivalidade com os uruguaios viveu o auge naquela década, com eles se enfrentando nas duas finais mundiais seguintes: nas Olimpíadas de 1928 e na primeira Copa do Mundo, em 1930, sempre com vitória vizinha.

Mas os celestes já tinham razões extras para tirarem casquinha em 1924: venceram sem força máxima os europeus, pois não levaram ninguém do Peñarol, que havia se desafiliado dois anos antes da associação uruguaia reconhecida pela FIFA. Venceram sem José Piendibene, o grande maestro do Peñarol e que tornara o clássico do Rio da Prata menos desfavorável ao Uruguai: estreara pela seleção em 1909, quando até então os argentinos haviam vencido oito dos treze clássicos e perdido só dois. Dali até 1912, os charruas arrancaram sete vitórias, três empates e só três derrotas.

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Os dois jogadores marcados pelo jogo de 90 anos atrás: Adolfo Celli, pela fratura, e Cesáreo Onzari (na imagem, defendendo seu Huracán), pelo gol olímpico

Piendibene jogaria em alto nível até 1926, quando chegou a iludir o já lendário goleiro Ricardo Zamora em um Peñarol x Espanyol ao fazê-lo cair para um canto após simular que lá chutaria e em seguida marcar no canto inverso. No mesmo 1922 em que deixou de jogar pelo Uruguai por causa do cisma de federações, foi eleito pelos próprios rivais como o maior jogador que já tinham visto, em enquete da principal revista argentina esportiva, a El Gráfico. E os uruguaios venciam o mundo mesmo sem ele…

As seleções rivais acertaram dois jogos pela honra. Em Montevidéu, em 21 de setembro, foi 1-1. Uma semana depois haveria a revanche em Buenos Aires, mas uma espécie de “overbooking” nos ingressos provocou caos: aos 4 minutos o público se esparramou no gramado e o cotejo foi reagendado para aquele 2 de outubro, no estádio do sumido Sportivo Barracas. Para evitar novas invasões, ali se criou o “alambrado olímico”. A rivalidade estava tão quente que vitimou o hermano Adolfo Celli, fraturado na partida. Sóbrio, o lendário capitão uruguaio José Nasazzi permitiu que Celli desse lugar a Ludovico Bidoglio – as substituições só se tornariam livres décadas depois.

Celli acabou estampando a capa da El Gráfico seguinte ao jogo. Mas o lance histórico foi outro, quando Onzari, “que esteve em um grande dia, arremeteu até o gol uruguaio e desde escassa distância dirigiu um violento tiro”, nas palavras da publicação, que detalhou que “produzido um escanteio, o ponta-esquerda Onzari o toma com tanta precisão que a bola, descrevendo uma linha curva até o arco, penetra neste sem que seja possível a Mazali detê-la”. O goleiro Mazali saiu para interceptar, mas foi detido após chocar-se com o colega Nasazzi e Ernesto Celli, irmão de Adolfo, e a bola passou livre.

Último agachado no primeiro Huracán campeão argentino, por 1921: Fontana, Vázquez, Kiessel, Pratto, Enrique Monti e Luis Monti; Ginevra, Laguna, Chiesa, Dannaher e Onzari.

A partida foi empatada por Pedro Cea, um dos poucos presentes nas três glórias mundiais uruguaias da década. Depois, Domingo Tarascone, do Boca, selaria a vitória argentina, por 2-1. Curiosamente, o primeiro gol olímpico foi o último de Onzari pela Albiceleste: totalizou 5 em 14 jogos, outros dois deles nos seus dois jogos contra o Brasil: 2-1 pela Copa América de 1923 e 2-0 pela Copa Roca no mesmo ano.

Mas quem foi Onzari? Filho de bascos, nascera em 22 de fevereiro de 1903 e começou a carreira no ignoto Sportivo Boedo. Depois foi ao Mitre, que se dissolveu em 1921, pouco após vencer no ano anterior a segunda divisão. Onzari, junto com alguns colegas de Mitre, como os irmãos Monti (um era Luis, único finalista de Copas por países diferentes: Argentina em 1930, Itália em 1934), foi então ao Huracán – que, como o clássico platino, também vivia o auge, vencendo na década quatro dos seus cinco títulos argentinos – o outro e último viria só quase meio século depois, em 1973, para pouquíssimas testemunhas do futebol dos anos 20, incluindo o ponta, falecido em 7 de janeiro de 1964.

Onzari esteve em todos aqueles quatro títulos; inclusive, sua estreia se deu exatamente no penúltimo compromisso da primeira campanha campeã, no final de 1921. E que compromisso: um 3-0 com gol dele no duelo direto pela liderança, contra o Del Plata. Aquelas quatro conquistas (as outras viriam por 1922, 1925 e 1928) colocaram o Huracán como mais campeão que o rival San Lorenzo e River e Independiente por um tempo – o grande rival era o Boca, por quem ele jogou brevemente em 1925 na histórica excursão auriazul à Europa, a primeira de um clube argentino. Foram dezoito partidas, vencendo quatorze delas e anotando quatro gols.

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Quando reforçou pontualmente o Boca para festejada excursão europeia de 1925: último agachado

Já no Huracán, Onzari ao todo fez 72 gols em 216 jogos e salvou o ano de 1924 (o time não foi bem e até desistiu de jogar contra Alvear, Sportsman e Porteño após perder chances de taça) com aquele gol. Hoje, o integrante mais famoso do clube naqueles tempos é Guillermo Stábile, artilheiro da primeira Copa. Mas na época o autor do primeiro gol olímpico foi por um tempo o mais festejado, como revelam algumas anedotas.

Em certo momento da carreira, ele precisou operar os meniscos. Ainda não estava recuperado e o Huracán enfrentaria o extinto Del Plata. Os próprios dirigentes adversários imploraram para que Onzari jogasse, prometendo que ninguém do clube tocaria no ponta. Assim foi e Onzari propiciou cinco gols, pois era um veloz ponta que adorava mais tentar converter do que se limitar a cruzar. Dias depois, o Sportivo Balcarce fez a mesma solicitação. Após levar dois gols de Onzari, um oponente, Corona, se aproximou e insinuou com bom humor que o “conto do joelho” já parecia papo furado. Os dois riram e na chance clara seguinte que teve, o ponta parou a jogada e pediu para Corona olhá-lo chutar deliberadamente para fora. Ambos se abraçaram.

Ao morrer cerca de quarenta anos depois do invento, Cesáreo Onzari foi assim descrito pela mesma El Gráfico: “nestes momentos em que evocamos a figura cristalina de Cesáreo com motivo de sua morte, não sabemos quem foi mais: se o jogador ou o homem. Foram tão grandes ambos!”.

A Argentina na tarde do gol olímpico: o bandeirinha Pedro Calomino (ex-jogador da própria seleção!), o técnico Ángel Vázquez, Segundo Médici, Américo Tesorieri, Mario Fortunato (futuro técnico do Botafogo), Emilio Solari, Florindo Bearzotti e Adolfo Celli; o massagista japonês Kanichi Hanai, Domingo Tarasconi, Ernesto Celli, Gabino Sosa, Manuel Seoane e Cesáreo Onzari.

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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