Primeira Divisão

José Battagliero, o defensor que fez CBF e AFA cortarem relações por dez anos

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Battagliero no fatídico ano de 1945, no Independiente

“Experimente pegar um livro brasileiro para conhecer essa história. Você vai descobrir que as lesões dos dois argentinos foram absolutamente ocasionais, em lances involuntários dos brasileiros. Apanhe a coleção da revista El Gráfico e a leitura será diferente. Os brasileiros ‘criminosos’ machucaram propositadamente os jogadores argentinos”. Este trecho está no prólogo de Os 55 Maiores Jogos das Copas, da enciclopédia Paulo Vinícius Coelho. O jogo em questão nem de mundial foi, mas PVC sentiu a necessidade de usá-lo para demonstrar como uma mesma partida tem percepções diferentes. Um dos argentinos lesionados mencionados foi José Pedro Battagliero, que teria feito ontem cem anos.

Battagliero nasceu na cidade de Cañada de Gómez naquele 1 de janeiro de 1916, no interior santafesino. Lateral-esquerdo ou volante, era um “defensor com muita vontade, difícil de ser ultrapassado”, segundo seu perfil no livro Quién es Quién en la Selección Argentina 1902-2010, de Julio Macías. Destacou-se inicialmente no Atlanta, clube tradicional ainda que não figure desde 1984 na elite. Ele era o grande destaque da equipe de Villa Crespo, a ponto de estrear pela Argentina quando o Bohemio fazia uma de suas piores campanhas. Foi em 15 de agosto de 1940, de forma auspiciosa: um 5-0 no Uruguai.

Paralelamente, seu time, ainda jamais rebaixado, lutava para não cair. E a primeira grande polêmica a envolver Battagliero se deu em razão exatamente da salvação do clube. Foi um ano complicado para o Clásico de Villa Crespo, que envolve Atlanta e Chacarita e é o terceiro mais expressivo em Buenos Aires (atrás de Huracán x San Lorenzo e, claro, Boca x River). O lanterna Chaca, até então também incaível, foi rebaixado por antecipação. E na última rodada o Atlanta precisava vencer o vice-campeão Independiente e torcer para um tropeço do Vélez, que pegaria em casa o San Lorenzo.

Battagliero e colegas fizeram em cheio a sua parte, terminando o primeiro tempo vencendo por 6-0. Os rojos diminuiriam para 6-4. Mas, como o Vélez perdeu por 2-0, quem caiu foi ele, pela única vez. Os velezanos voltariam em 1943 e até hoje possuem o time há mais tempo seguido na elite desconsiderando-se o único ainda incaível, o Boca. Apesar do Independiente ter diminuído o vexame, o fato de ter adquirido Battagliero sem custos no ano seguinte reforçou as suspeitas de que entregara a partida para o Atlanta. Especialmente porque o Vélez, rodadas antes, atrapalhara as pretensões de título do Rojo, em uma partida na qual vencera por um dramático 5-4.

Ainda como jogador do Atlanta, Battagliero fez mais cinco jogos pela Argentina no início de 1941, incluindo um no título da Copa América. Ele deveria ter ido também à Copa América de 1942, junto de dois colegas de Independiente, Carlos Aldabe e o craque Antonio Sastre. Mas, como ambos estavam em excursão com o clube, foram cortados e substituídos por Mario Morosano (Newell’s), Oscar Montañés (Gimnasia LP) e Gregorio Esperón (Platense). A Albiceleste ficaria com o vice e Battagliero só retornaria à seleção naquele fatídico 1945. Afinal, naquele ano o Independiente, a cinco pontos do campeão River, voltou a disputar acirradamente a taça pela primeira vez desde a polêmica de 1940.

Na campanha, Battagliero marcou seu único gol na elite, em um 2-2 com o “velho rival” Chacarita. Os argentinos vieram em dezembro ao Brasil para uma nova edição da Copa Roca, onde até então tinham supremacia. Mas os brasileiros, armando a grande geração que quase seria campeã mundial dali a meia década, responderam com dois passeios inapeláveis: um 6-2, placar que os hermanos não estavam acostumados a sofrer, e um 3-1 – na única partida em que Battagliero não foi titular pela seleção. Os tupiniquins, que haviam sido goleados por 5-1 em 1939 em pleno São Januário, desengasgaram anos de outras derrotas elásticas, tripudiando no Jornal dos Sports.

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Recortes de jornais brasileiros da época: na versão unânime daqui, a fratura de Battagleiro foi acidental (clique para ler ampliado)

“Apesar da sua gordura, não o descobrimos em campo e, note-se que nos esforçamos para ver jogar este crack de fama” foi a avaliação sobre o mito Adolfo Pedernera, considerado por Alfredo Di Stéfano o maior jogador que vira (entenda). “O comandante argentino só tocou na bola no justo instante de dar o pontapé inicial” foi a zombaria sobre René Pontoni, ídolo de infância do Papa Francisco (saiba mais). Ezra Sued “foi a única pessoa que assistiu o jogo de dentro do campo com o consentimento da polícia”. E José Ramos “levou um ‘baile’ estonteante da ala Lima-Zizinho, sendo substituído por Battagliero, que, logo ao dar o primeiro passo de swing, fraturou a perna casualmente”.

Todos os jornais brasileiros foram unânimes em descrever o lance como acidental, em uma disputa de bola entre Battagliero e Ademir de Menezes, e notaram que o rendimento de Ademir decaiu após tomar ciência do ocorrido. Alguns até colheram supostos depoimentos do próprio Battagliero isentando o atacante. O argentino não teve a carreira interrompida, em uma época na qual a recuperação de fraturas era muito mais complicada: chegaria a ser titular do Independiente enfim campeão novamente, em 1948, um torneio saboreado especialmente porque o rival Racing liderava-o antes da famosa greve que, não atendida, levaria muitos grevistas (como Di Stéfano, Pedernera e Pontoni, por sinal) à Colômbia.

Battagliero, porém, já não jogaria mais pela seleção, pela qual fizera dez partidas. Aquelas duas derrotas foram as suas únicas pela Argentina. Mas teve participação no título da Copa América de 1946, realizada apenas dois meses depois daquela trágica Copa Roca. Os hermanos não engoliram que a fratura do jogador havia sido casual, e ele tampouco ajudava: jornais brasileiros noticiavam o clima desfavorável e que o volante teria recusado visita da delegação vizinha e um presente dela (um cigarreiro de prata). Veio a última rodada, a opor novamente as duas seleções, as únicas com chances de título. Foi a primeira vez que o Brasil atuou no Monumental de Núñez.

“Antes do início desse jogo, os argentinos promoveram o desfile do zagueiro Battagliero, em cima de uma maca, com a perna quebrada. Diziam que o brasileiro Ademir o havia lesionado dois meses antes, numa partida em São Januário. Dez minutos de partida e o argentino Salomón teve a perna fraturada numa dividida com Jair Rosa Pinto” é como Paulo Vinícius Coelho começa o livro que mencionamos. Se a lesão de Battagliero já causara rebuliço, a de José Salomón, o querido capitão da seleção (e recordista de jogos por ela, marca que só perderia nos anos 70) foi a gota d’água para uma briga generalizada.

A Argentina foi campeã com um 2-0. Os jornais brasileiros inflamaram para que seus jogadores não retornassem mais a Buenos Aires. A recíproca foi verdadeira: a Albiceleste não viria ao Brasil para a Copa América de 1949, onde defenderia um recordista tri seguido (1945, aquele 1946 e 1947); os tupiniquins se aproveitaram e, em casa, quebraram jejum de 27 anos, desde os idos de Arthur Friedenreich.

A confusão de 1946 teria sido uma das razões para os argentinos não virem também à Copa do Mundo de 1950, ainda que o êxodo de muitos craques para a Colômbia após greve de 1948 tenha pesado também. O fato é que um novo jogo entre os dois países só ocorreria em março de 1956, pelo Campeonato Pan-Americano. Battagliero, por sua vez, ainda retornaria ao Atlanta e o elegemos para o time dos sonhos do Bohemio em 2014, quando o clube de Villa Crespo fez 110 anos: clique aqui. O ex-volante faleceria em 11 de março de 1976, em Buenos Aires.

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Battagliero no Atlanta (em 1950). Protegendo no Independiente o goleiro brasileiro Tadeu (ex-America-RJ) de Ángel Labruna, contra o River. E carregado pelos colegas após a fratura

 

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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