EspeciaisRiver

Carlos Peucelle: homem que fez o River ser apelidado de Millonario, mais velho a aplicar hat trick no Brasil

Se toda história tem um começo, a do River como Millonario não começa exatamente quando o time mudou-se do humilde bairro de La Boca rumo à grã-fina zona norte portenha, em 1923. E sim em 1931, quando contratou Carlos Desiderio Peucelle, que ontem faria 110 anos. Os dez mil pesos pagos renderam enfim a famosa alcunha ao clube, que acertou em cheio. Peucelle havia marcado na final da Copa do Mundo no ano anterior, e no século XX só Pelé conseguiu marcar ainda mais jovem em final de Copa. Virou um reforço duradouro, projetando La Máquina, o célebre time riverplatense dos anos 40; polindo Di Stéfano; e, à parte do River, marcando já aos 32 anos três gols em um só jogo (o chamado hat trick) sobre o Brasil.

O homem que “criou” o River Millonario tinha até pai francês, mas suas origens de chic não tinham nada. O pai era um imigrante sem estudos entre tantos que vieram “fazer a América” no Novecento argentino. Não havia opção em Buenos Aires mais condizente que o humilde bairro portuário de La Boca. Peucelle nasceu no número 1000 da ruela Pilcomayo, a uma quadra do Parque Lezama e a cinco de onde hoje se situa La Bombonera. Na época, o River era tão clube de La Boca como o rival, e Peucelle e família se afeiçoaram mais a esse time. Mas quando ele deixou o bairro em 1923, restou ao prodígio iniciar-se no rival, em 1924.

Peucelle, como juvenil do Boca, chegou a participar de jogos-treino, inclusive contra o time principal. El Barullo (apelido que ganharia por ser inquieto no ataque, sendo um jogador à frente de seu tempo como polifuncional nas cinco posições ofensivas da época) não ficou porque o prazo para inscrições nos campeonatos da categoria já haviam se encerrado. Rumou então a outros times da vizinhança, atuando simultaneamente pelo San Telmo, ainda no bairro vizinho de mesmo nome, e no Sportivo Barracas, do bairro limítrofe de Barracas – isso era possível porque ambos estavam inscritos em associações separadas.

Ele também passou pelo Nacional de Adrogué, um dos clubes que originariam o atual Brown de Adrogué. Até sedimentar-se no Sportivo Buenos Aires, que vinha usando o antigo campo que o River deixara em La Boca após mudar-se. A estreia no time principal veio em 1927, sem que Peucelle e colegas passassem de um 20º lugar em um torneio de 34 times. No de 1928, em campeonato só finalizado ao fim do primeiro semestre de 1929, o clube foi até antepenúltimo. Nesse ambiente, Peucelle se destacava: em 21 de setembro de 1928, estreou pela seleção, em 2-2 com o Uruguai em Montevidéu pelo troféu binacional Copa Lipton.

Sportivo Buenos Aires em 1928. Peucelle é o primeiro agachado

Peucelle seguiu na seleção em jogos não-oficiais que ela fez em 1929 contra visitantes europeus: na derrota de 1-0 para o Chelsea, no 2-0 sobre o Ferencváros do forte futebol húngaro da época, no 1-0 e no 4-1 sobre o Torino e no 3-1 sobre o Bologna (estes dois eram respectivamente o penúltimo e o último vencedores do campeonato italiano). Ficou para a Copa América, realizada em novembro; jogou três partidas, com um gol marcado no 3-0 sobre o Peru. Esteve em campo no 2-0 sobre o Uruguai, partida que deu o título à Albiceleste, em pequena revanche pela derrota olímpica de 1928.

O meia em seguida embarcou com o Sportivo Buenos Aires para uma excursão pelas Américas – a etapa chilena começou ainda em 1929, rendendo um 1-0 no Colo-Colo e um 5-1 no Everton de Viña del Mar como resultados mais destacados. No Peru, empatou-se em 2-2 com a própria seleção peruana. Os mexicanos se deleitaram ao verem os portenhos vencerem por 4-0 o Necaxa, por 6-0 o Asturia, por 1-0 e por 3-1 o América, por 3-0 e 3-1 o Real España. Peucelle não participou da etapa final, no Brasil, a única com retrospecto negativo, de três derrotas. Voltou à Argentina a tempo de ser lembrado para a primeira Copa do Mundo.

Ele não começou o torneio na titularidade da ponta-direita e sim Natalio Perinetti, remanescente do Racing hepta argentino entre 1913-19. Mas não saiu mais desde a segunda partida, destacando-se sobretudo na semi contra os Estados Unidos, em que marcou duas vezes no 6-1. Na decisão, empatou provisoriamente em 1-1 aos 20 minutos, recebendo do capitão Manuel Ferreira, evitando com um toque rápido a marcação de Álvaro Gestido e concluindo com um chute forte no alto do goleiro Enrique Ballesteros. Tinha 22 anos incompletos e somente Pelé (com 18 incompletos em 1958) e Kylian Mbappé (com 20 incompletos em 2018) o superariam como mais jovens a marcar em final de Copa.

O Argentina viraria para 2-1, mas o Uruguai aplicaria a contra-virada e venceu por 4-2. A seguir, o Sportivo Buenos Aires ficou em 11º de 36 times no torneio de 1930. Seu craque já tinha o rosto reconhecido, inclusive por reforçar pontualmente o Estudiantes e o Independiente em amistosos em agosto (3-1 no dia 3 e 0-0 no dia 9, respectivamente) contra o Hakoah All Stars do ainda jogador Béla Guttmann. Tanto que, em partida contra o San Lorenzo, a falta de credenciais impedia que o clube adentrasse no vestiário visitante, até que os vigias viram Peucelle, que então se encarregou: “este é Appolito, este é Agiese…”. Em campo, veio a desforra, com um 5-2 sobre os azulgranas. Em abril de 1931, ainda como jogador do clube, realizou excursão pela seleção ao Paraguai, com dois jogos contra a seleção local (1-0 com gol dele e 1-1) e o Olimpia (5-1, com dois dele).

Argentinos comemoram o 2-1 provisório na final de 1930. Peucelle é o terceiro da esquerda para a direita

Em maio, porém, a bomba estourou no futebol argentino: os dezoito principais clubes do país romperam com a associação para criar uma liga própria, admitindo só clubes economicamente interessantes para enfrentamentos. O modesto Sportivo ficou de fora do torneio fomentado por Boca, River e outros. A dupla correu atrás de Peucelle e ele escolheu com o coração – pois o River não era campeão desde o solitário troféu de 1920, enquanto o rival vencera o torneio de 1930 e outros cinco antes. No que terminou sendo o primeiro campeonato abertamente profissional do futebol argentino, a soma de 10 mil pesos que o River pagou diretamente ao jogador (pois, ao romper com a associação oficial, não precisou pagar nada ao Sportivo) rendeu o apelido de Millonario ao clube.

Honesto, o jogador devolveu ao Sportivo os 4 mil que havia recebido do ex-clube (que remanesceu no chamado “amadorismo marrom”) para todo o ano. Os 10 mil lhe permitiram comprar casa, um carro do último ano e ainda sobrou-lhe 1500 pesos. Peucelle marcou onze gols no torneio de 1931, curiosamente, cifra que ele repetiria anualmente até 1934. Um deles foi o primeiro gol do primeiro Superclásico profissional, em um 1-1 no primeiro turno de 1931. O Millo ficou em 3º, mas já sem chances de título nas rodadas finais, respondendo com novas contratações midiáticas. A principal foi a do superartilheiro Bernabé Ferreyra, que veio em 1932 por 35 mil pesos, a contratação mais cara a nível mundial pelos vinte anos seguintes. Juntos, Peucelle e Bernabé lideraram a segunda taça da história do River e a primeira dele no profissionalismo.

O troféu se decidiu em jogo-extra com o Independiente, que já havia levado de 6-1 na temporada regular, com gols da dupla. Na decisão, dois golaços de fora da área da dupla Peucelle e Ferreyra abriram 2-0 com 22 minutos de jogo. Ainda no primeiro tempo, veio o placar final de 3-0. A ressaca imperou nos dois torneios seguintes, em que o time só chegou ao 4º lugar a despeito de bons resultados aqui e ali – como o 7-1, com dois de Peucelle, no time que seria o campeão de 1933, o San Lorenzo. Em paralelo, o cisma dos clubes com a associação oficial permanecia e assim só atletas “amadores” foram à Copa de 1934, quitando de Peucelle a chance de uma nova Copa.

Em 1935, enfim a liga profissional foi oficializada, com a fusão das associações. Mas ainda não foi um bom ano ao River, 5º lugar com Peucelle diminuindo a conta pessoal para nove gols (dois deles, em um 5-2 no Racing e outro em 4-3 sobre o Independiente). Já o ano de 1936 teve dois campeonatos. No primeiro, o River ficou em 6º, mas se deu a alegria de vencer pela primeira vez o Boca fora de casa no profissionalismo. Peucelle, com 8 minutos, abriu o marcador de um jogo que chegou a estar em 3-0, mas terminou descontado em 3-2. Embalado, o clube sobrou no segundo torneio, conquistado com quatro pontos de vantagem (quando a vitória ainda valia dois, não três) sobre o vice San Lorenzo, que havia conquistado o torneio anterior.

Na seleção campeã da Copa América de 1937, ao lado do ídolo são-paulino Antonio Sastre; e entre os artilheiros Masantonio e Baldonedo na campeã da Copa Roca em 1940

Peucelle assim foi chamado à Copa América realizada na virada de 1936 para 1937, após ter se ausentado da edição anterior, do início de 1935. Enfim, conseguiu ser campeão também pela seleção, revezando-se na ponta-direita com Enrique Guaita, que havia vencido a Copa de 1934 pela Itália. Foi de Peucelle a assistência para o segundo gol no 2-0 sobre o Brasil, sacramentando o título. O ano seguiu campeão: o River terminaria emendando um bi seguido, em um ataque que acumulou 106 gols mesmo com o ídolo Bernabé baqueado de tantas lesões. O Millo foi espetacular em especial no segundo turno, computando 31 pontos de 34 possíveis. Peucelle fez 14 gols, incluindo em cada jogo com o Independiente (2-1 e 4-3), Racing (4-4), Vélez fora (2-1) e outro na partida que assegurou a conquista ainda na antepenúltima rodada, o 6-0 sobre o Argentinos Jrs.

Com o título já conquistado, veio a grande exibição do craque: três gols em um 6-1 no San Lorenzo, em jogo histórico como o último realizado de modo oficial no estádio millonario situado na esquina da Alvear com Tagle. Era o primeiro campo do clube na zona norte, em região hoje situada no bairro da Recoleta (na época, ainda em Palermo). Em 26 de maio de 1938, veio a inauguração do Monumental de Núñez. Pois foi de Peucelle o primeiro gol registrado ali, no amistoso festivo de 3-1 contra o Peñarol; foi aos 31 minutos, recebendo de Ferreyra, ganhando a corrida contra Jorge Clulow e batendo com um arremate rasteiro e cruzado o goleiro César Rivero. No campeonato, o time esteve no páreo, mas terminou a dois pontos do campeão Independiente.

Individualmente, 1938 foi o ano mais goleador de Peucelle, com quinze gols, dois deles em 8-1 sobre o Estudiantes – em La Plata. Também fez no 5-1 no Huracán, um no 3-1 em Avellaneda sobre o próprio Independiente, dois em um 5-5 com o San Lorenzo e outro em 3-0 no Vélez. Por outro lado, o extracampo voltou a impedir que Peucelle jogasse uma Copa, na edição de 1938 – dessa vez, pela irritação da associação argentina em perder a sede do torneio para a França. O bom campeonato de 1938, porém, fez o jogador de 30 anos permanecer na Albiceleste para duas partidas em janeiro de 1939, válidas pela Copa Roca, no Rio de Janeiro. Na primeira delas, os hermanos venceram por 5-1 em pleno São Januário, na pior derrota caseira do Brasil até o 7-1.

O oponente venceu a outra por 3-2. Não havia saldo de gols como critério de desempate e a posse da taça ficou indefinida. Pelo restante de 1939, o River novamente ficou no vice para o Independiente. Peucelle marcou dez vezes, vazando o Racing (duas vezes na vitória de 3-2), o próprio Independiente e o San Lorenzo dentre os grandes. Assim, no início do ano seguinte o veterano foi relembrado pela seleção, que voltaria a enfrentar o Brasil para decidir a Copa Roca ainda válida por 1939. O jogo extra em São Paulo não bastou, finalizado em 2-2, até que veio a vitória argentina por 3-0, ainda em São Paulo, na quarta partida válida por 1939. Em março, as duas seleções voltaram a disputar a Copa Roca, dessas vez referente ao ano de 1940.

Capa da El Gráfico em 1941 homenageando o aposentado Peucelle e ele como treinador, com camisa de massagista – à direita, orienta o pupilo Pedernera

No primeiro encontro, no Gasómetro do San Lorenzo, Peucelle fez o segundo e o terceiro gols da partida. Jair da Rosa Pinto diminuiu, mas Peucelle tratou de esfriar a possível reação ao marcar o quarto. O placar final foi de 6-1, complementado por Emilio Baldonedo e Herminio Masantonio, respectivamente o maior e o segundo maior artilheiros argentinos do clássico com o Brasil. Os tupiniquins foram à forra na segunda partida, vencida por eles por 3-2 no Gasómetro. O regulamento forçou jogo extra, no estádio do Independiente. Baldonedo e Masantonio então abriram o placar, com Peucelle matando ao anotar o terceiro.

Ao fim, Argentina 5-1 na despedida dele pela seleção. Peucelle segue como único jogador acima de 30 anos a marcar três gols em um só jogo contra o Brasil – os demais são o argentino Manuel Seoane em 1925, com 23 anos; o iugoslavo Blagoje Marjanović em 1934, com 26 anos; o polonês Ernest Wilimowski em 1938 (marcando quatro gols), com 22 anos; o argentino Norberto Méndez em 1945, com 22 anos; o uruguaio Oscar Míguez em 1950 (dois meses antes do Maracanazo), com 22 anos; o argentino José Sanfilippo em 1959, com 24 anos; o belga Jacques Stockman em 1963, com 24 anos; o tchecoslovaco Jozef Adamec em 1968, com 26 anos; o italiano Paolo Rossi em 1982, com 25 anos; e Lionel Messi, com 25 anos em 2012.

Peucelle ainda competiu nos torneios argentinos de 1940 e 1941, mas somando sete gols nos dois. Suas participações ficaram mais escassas, com 15 jogos na campanha de 1941, incluindo o da partida que assegurou o título, no 3-1 sobre o Estudiantes – foi o último jogo oficial do maestro, que ainda participou de alguns amistosos da pré-temporada de 1942. Ele dava espaço a jovens da base. E foi notando-os que viu que o prodígio Adolfo Pedernera, então utilizado na ponta, renderia melhor como um centroavante solidário, inventando o falso 9 décadas antes de Guardiola. A mudança de Pedernera (descrito por Di Stéfano como o maior jogador que vira) é vista como o ato criador de La Máquina, o timaço dos anos 40.

Peucelle passaria a se realizar como técnico juvenil, embora vez ou outra assumisse a equipe principal (usando a camisa de massagista, de tão low profile que era; recusava-se a ser considerado criador de La Máquina, atribuindo a autoria à mãe de Pedernera); a mais exitosa se deu entre 1945 e 1946, na qual, campeão em 1945, promoveu as estreias na equipe adulta de três jovens que polia nas categorias inferiores – Di Stéfano e também Amadeo Carrizo e Néstor Rossi. “Não gosto do futebol profissional. Ao contrário, levar um garoto das inferiores à primeira divisão é como ter um filho e cria-lo”, resumia um sábio por fazer o simples, valorizando a formação em detrimento de resultados imediatos das competições de base.

Peucelle faleceu em 1º de abril de 1990.

Discreto como último homem em pé no River campeão de 1945, treinado por ele. Foi ali que Di Stéfano (5º jogador em pé), Néstor Rossi (6º) e Carrizo (de camisa celeste) estrearam no time adulto

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

2 thoughts on “Carlos Peucelle: homem que fez o River ser apelidado de Millonario, mais velho a aplicar hat trick no Brasil

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

cinco × 2 =

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.