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Trezeguet antes da fama

Apropriadamente vestido de marrom em uma volta, já como celebridade mundial, ao estádio Ciudad de Vicente López, sua primeira casa no futebol.

David Sergio Trezeguet, mesmo em fim de carreira, continua um dos mais célebres jogadores deste início de século. Seu sucesso no Monaco e, principalmente, na seleção francesa e na Juventus são bem lembrados, assim como sua recente aventura no River Plate. No dia em que completa redondos 35 anos, lembraremos de uma faceta não tão conhecida: seu início de carreira, também na Argentina, por um clube pequeno tradicional no século XX, mas ausente da elite desde 1999.

A própria chegada ao River já havia feito alguns descobrirem que Trezegol cresceu mais argentino do que francês, embora tenha nascido na Normandia (na cidade de Ruão) e realmente possua ancestrais gauleses. Que, da infância à adolescência, seu espanhol nome do meio (a versão francesa para Sérgio é Serge, vale lembrar) era pronunciado como “Sérrio”, como ordena o castelhano, e não como “Serjô”. Mesmo seu sobrenome francês vem de um antepassado não tão próximo, um tataravô.

Nasceu na terra das distantes origens porque seu pai, Jorge Trezeguet, jogava lá, no Rouen, entre 1976-79. Ex-zagueiro de duas pequenas rivalidades da Grande Buenos Aires – Estudiantes de Buenos Aires e Almagro, Sportivo Italiano e Deportivo Español -, Jorge, que na elite defendeu só o Chacarita, teve sua carreira na Argentina arruinada por um antidoping positivo, o primeiro no país. Ocorreu quando defendia o Estudiantes de Buenos Aires, em 1974, e uma transferência quase acertada ao Independiente terminou por não se concretizar. Sempre alegou inocência e acabaria absolvido depois.

David é torcedor do River desde pequeno, apesar de seu pai ser hincha do arquirrival Boca. A família instalou-se na cidadezinha de Villa Martelli, integrante da municipalidade de Vicente López. Trezeguet deu seus primeiros passos nos infantis do Colegiales, um dos clubes daquelas redondezas. Mas rumaria ao principal deles, o Platense, para desenvolver-se desde a primeira categoria juvenil. Vicente López é limítrofe aos bairros de Buenos Aires que outrora abrigaram o Platense: o de Núñez e o de Saavedra, este ainda um reduto calamar tradicional, ambos no extremo norte da capital federal. Em 1994, enfim, David conseguiu ainda com idade de juvenil uma primeira chance no time adulto do Tense.

O técnico do conjunto era Ricardo Rezza, antigo ídolo do San Lorenzo. Rezza viu potencial no garoto e o colocou em campo antes mesmo do atacante completar 17 anos. Foi em 12 junho de 1994, contra o Gimnasia LP (do técnico Roberto Perfumo, ídolo cruzeirense), pela 13ª rodada do Clausura, em jogo descrito como “medíocre” pela revista Solo Fútbol: “o Gimnasia de entrada teve duas situações claras de gol, mas as dilapidou. Depois o Platense começou a manobrar a partida e sobre o fim da primeira etapa encontrou com um pênalti que [Claudio] Spontón capitalizou em gol. Já no complemento o Gimnasia teve o seu pênalti, mas [Sergio] Dopazo o atirou para cima do travessão. Um pouco depois foi expulso [Carlos]  Amodeo e a partir desse momento o Platense ficou muito recuado. Os últimos minutos mostraram o conformismo dos dois pelo empate, dentro de uma partida sem muitas emoções”.

O jogo terminou em 1-1, placar aberto por Spontón aos 42 minutos do primeiro tempo e empatado por Gustavo Barros Schelotto aos 15 minutos do segundo. As notas dos jogadores dadas pela Solo Fútbol variaram entre 5 (que foi a de Trezeguet, que no decorrer do jogo deu lugar a Sebastián Villoldo) e 6, retrato de uma partida cujas emoções se concentraram para depois do apito final. Foi quando o assombro do antidoping voltou a rondar a família: por ordem judicial em razão de uma denúncia anônima de consumo de drogas nos dois times, todos os atletas da partida, mesmo os reservas que não jogaram, foram submetidos a um exame-surpresa ao fim do duelo.

Contra o Gimnasia y Esgrima La Plata, em sua estreia como profissional, em 1994. Trezeguet só jogaria outras quatro vezes pelo Platense

Sem problemas como o do pai, o jovem Trezeguet seguiu no Platense. Na rodada seguinte, foi novamente titular, em outro 1-1, na visita ao Huracán – que, treinado pelo iniciante técnico Héctor Cúper, lutava pela liderança (teria sido o campeão se não caísse na rodada final). Foi substituído aos 22 minutos, novamente por Villoldo, em um duelo qualificado como “mal” pela Solo Fútbol: “o precoce tento não beneficiou a equipe local, pois a conquista de [Pedro] Barrios fez com que o Huracán recuasse em campo e deixasse crescer paulatinamente o seu rival. Os de Rezza começaram por ajustar as marcações no fundo, controlar a bola no meio e logo se animaram a construir réplicas encabeças por [Marcelo] Epsina. Justamente, um remate deste, na saída de um tiro livre, outorgou a justa igualdade à visita. O complemento foi distinto: o Huracán teve mais decisão, mas dessa vez já não contou com ordem nem com precisão para chegar a [o goleiro José] Miguel. Platense, de outro lado, com um homem a menos, se refugiou em seu campo e celebrou o empate, reflexo de um encontro sem brilho”.

Naquele 24 de junho, o garoto recebeu outra nota 5 da Solo Fútbol, enquanto a avaliação da revista Goles lhe foi mais rigorosa, aplicando-lhe um 4, sem outras menções ao adolescente: “quando parecia que o gol precoce de Barrios serviria para ver um cotejo aberto e com várias chegadas, o tiro livre que o mundialista Chocolatín [Ramiro] Castillo acariciou para que Espina decretasse a igualdade dispôs um segundo tempo mais esquecível ainda que o já pobre primeiro. O Huracán poderia ter ganho, que nessa etapa complementar se aproximou do gol de Miguel em várias oportunidades e foi o único que buscou a desigualdade, mas, em que pese no final pareceu haver pênalti em Barrios, talvez isso não teria sido justo para um Platense que ainda com um homem a menos soube aguentar bem”.

Veio uma pausa para a Copa do Mundo nos EUA e a rodada seguinte só veio a ser disputada já em 31 de julho. Trezeguet ainda foi utilizado nela, mas já saindo do banco, substituindo Daniel Loyola em derrota em casa por 2-1 para os reservas de um Vélez totalmente poupado para as fases agudas da sua vitoriosa Libertadores – até o técnico velezano naquele dia não foi Carlos Bianchi e sim seu assistente Carlos Ischia. Roberto Pompei abriu o placar aos visitantes aos 12 minutos de jogo, Espina igualou aos 4 do segundo tempo e Patricio Camps garantiu a vitória já aos 38. Foi a última partida de Trezeguet no Clausura, que ainda teve mais quatro rodadas depois daquela. O Platense vinha sendo justamente uma das sensações daquele campeonato, tendo inclusive  liderado-o no primeiro terço de disputa.

A cidade de Vicente López abrigava naqueles dias também com os jovens Eduardo Coudet, futuro nome destacado por Rosario Central e River, e Raúl Cascini, a brilhar por Independiente e Boca; com o goleiro Rolando Cristante, titular da Argentina na Copa América de 1995 e último marrom aproveitado na seleção; e também o último jogador que representou o clube em uma Copa do Mundo, o citado boliviano Ramiro Castillo. E terminou em sexto, a apenas cinco pontos do campeão Independiente. O franco-argentino lembrou disso ao criticar recentemente o San Lorenzo, após jogo já pelo River contra este adversário, que teria usado e abusado da retranca: “meu Platense era mais ambicioso”.

Trezeguet, todavia, não chegara a ter tanta contribuição naquela bela campanha. Por uma ironia do destino, um futuro goleador da dura Serie A italiana não tinha espaço em um elenco satisfeito com a dupla ofensiva formada por Marcelo Espina e Claudio Spontón. Na época, não sem razão: Spontón foi duas vezes seguidas vice-artilheiro naquela temporada, com oito gols tanto no Apertura de 1993 quanto no Clausura de 1994. Espina, por sua vez, foi justamente o artilheiro daquele Clausura 1994 (11 gols, ao lado de Hernán Crespo), acabando por chegar à seleção em novembro daquele ano. É ele o penúltimo marrón aproveitado nela, que continuou a convocá-lo por um tempo mesmo após transferir-se para o futebol chileno, onde brilhou no Colo-Colo a ponto de servir a seleção como jogador colocolino. Espina foi inclusive o primeiro camisa 10 pós-Maradona da seleção, figurando na Copa América de 1995.

Último agachado no Platense de 12 de junho de 1994: Coudet, Mayo, Loyola, Amodeo, Maisterra e Miguel; Saraiva, Broggi, Bustos, Spontón e Trezeguet

Espina estava suspenso para o jogo contra o Gimnasia, o que fizera Trezeguet ser testado pela primeira vez. E o garoto só voltaria a campo em dezembro, no dia 3. Àquela altura, a boa fase calamar no Clausura era passado: uma derrota na 10ª rodada do Apertura, em pleno clássico com o Argentinos Jrs, fora a gota d’água para a saída do técnico Rezza, substituído por Luis Blanco para a metade final do torneio. O garoto reapareceu na 16ª rodada, contra o Gimnasia de Jujuy, substituindo Coudet no decorrer de uma derrota de 1-0 em plena Vicente López (gol de pênalti aos 43 minutos do segundo tempo, convertido por Carlos Rosas).

O quinto e último jogo oficial de Trezeguet pelo Platense se deu na 18ª e penúltima rodada do Apertura, em 11 de dezembro. Foram 26 minutos em campo no 1-1 com o Newell’s, substituindo José Gallego. Iván Gabrich abriu o placar para os rosarinos aos 22 minutos do primeiro tempo e o empate demorou até os 43 do segundo, alcançado por Arsenio Benítez. Além de não conseguir um só gol, o futuro campeão do mundo incrivelmente também não conseguiu nenhuma vitória em suas cinco partidas pelo seu primeiro clube: três empates em 1-1 e duas derrotas foram as modestas estatísticas de Trezegol no Tense.

Apesar disso, ele chegou a ser sondado para a lista de José Pekerman para o mundial sub-20 de 1995, o que não se concretizou. E naquele mesmo 1995 foi levado para a França pelo mesmo empresário que realizara a transferência de seu pai para o Rouen, Rafael Santos. A princípio, acertaria com Paris Saint-Germain, mas o negócio não foi adiante pela recusa do clube em arranjar-lhe um apartamento. Já o Monaco, do técnico Jean Tigana, topou. Em Monte Carlo, encontrou Thierry Henry, com quem faria grande dupla, e tornou-se amigo também de Marcelo Gallardo, com quem trocava conversas sobre o River. A titularidade no Principado enfim veio com a venda do brasileiro Sonny Anderson ao Barcelona, em meados de 1997.

E foi ainda em 1997 que Trezeguet tomou a decisão de tornar-se um Bleu, ao ser convocado para o mundial sub-20 do ano – dez anos depois, em 7 de fevereiro de 2007, enfrentaria a Argentina pela única vez, em derrota de 1-0 em Paris, gol de Javier Saviola. A estreia pela seleção principal da França viera em fevereiro de 1998, a tempo de estar na Copa do Mundo realizada na terra natal (e também no álbum da Panini), e vencê-la. Para completar, foi sobre o Brasil, tão rival dos argentinos. Comemorou com um gorro alviceleste cedido pela equipe do programa do apresentador Marcelo Tinelli, o mesmo empresário que hoje domina o San Lorenzo.

Foi a partir do sucesso do ex-Cabezón, agora Trezegol, que os seguidores do Platense passaram a ver seu antigo reserva como uma personalidade do clube (embora haja exaltados que o minimizem por não ter dado um jeito de voltar para onde começara). “Saí jovem do Platense, com 17 anos, a uma aventura nova, e em três anos já era campeão do mundo. (…) Me ocorreu tudo muito rápido. Teria sido muito lindo integrar a seleção argentina. E eu sempre fui muito claro com a França, que me deu tudo, me adotou, me formou e permitiu desenvolver-me profissional, cultural e economicamente, mas a verdade é que meu sangue é argentino. Eu, por dentro, sou argentino 100%”, declarou.

Comemorando o título mundial de 1998 com as cores argentinas. E recebendo homenagem do Platense: curioso caso de ídolo pelo que fez depois e não exatamente no clube

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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