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Félix Loustau, o Chaplin do Futebol

Há exatamente 10 anos, em 5 de janeiro de 2003, faleceu um dos maiores ponta-esquerdas do futebol. Neste especial, relembraremos dele, Félix Loustau, nascido há pouco mais de 90 anos, no dia de natal de 1922 em Avellaneda. Ele ficou eternizado na mais célebre linha ofensiva do grande River Plate dos anos 40, conhecido como La Máquina. Loustau (apesar do sobrenome francês, ele dizia-se descendente de bascos e era pronunciado como “Loustáu” mesmo, e não “Lustô”) foi a última peça a se juntar.

Surgiu no decorrer da campanha do título de 1942. Vinha das categorias de base, depois de ter tentado o futebol também no Racing, de sua Avellaneda natal, e no Sportivo Dock Sud. Neles, ainda se considerava um defensor. O físico esmirrado (que, juntamente com um bigode que ostentou certa vez, lhe apelidou para sempre como Chaplin) não convenceu o especialista Renato Cesarini, que lhe diagnosticou no River: “você tem que jogar de wing esquerdo, ouça-me que será um fenômeno”. Loustau acatou a ordem do técnico, cumprindo-a com maestria. Não se restringia ao ataque: roubava a bola do volante adversário e se mandava adiante, dosando piques com freios para confundir rivais.

Alfredo Di Stéfano, seu futuro colega, disse que “Félix foi completo. Tinha capacidade, temperamento, sacrifício, força, técnica. Era um jogador do campo inteiro”. De fato, os companheiros lhe recordam por colaborar na defesa e também ao servir um colega livre no ataque. “Por isso”, já disse Loustau, “rio quando escuto dizerem que antes éramos vagos, que não corríamos. Sempre terminava as partidas com 3 ou 4 quilos a menos”. O próprio técnico Cesarini lhe dava um dia extra de folga para recuperar o peso. “Joguei com jogadores que viveram todas. Por exemplo, fui só um par de vezes a um cabaré, algo que naqueles tempos era um ritual inevitável. Mas não para mim, que com meu físico pequeno tinha que me cuidar muito. Não poderia me permitir nenhum excesso”.

“Gostaria que hoje em dia existissem mais pontas. (…) Grande parte da culpa é dos técnicos, que dão prioridade somente ao resultado. (…) Só para ganhar pontos, mandam seus jogadores ficarem na marcação em vez de obriga-los a olhar o gol de frente. Essa velha frase de que não há melhor defesa do que um bom ataque é a pura verdade” e “Quase não há lugar para a parte criativa. O objetivo parece ser um só: destruir (…). Prefiro ir pescar” foram outras declarações do Loco ou Pistola, outros apelidos.

Quando estreou, na 11ª rodada de 1942 (1-0 no Platense), o ataque millonario estava consolidado desde o ano anterior, onde também fora campeão: Juan Carlos Muñoz, José Manuel Moreno, Adolfo Pedernera, Ángel Labruna e Aristóbulo Deambrosi. E foi logo Deambrosi quem sugeriu uma chance ao reserva “por um par de partidas, para ganhar uns pesos”. Quem menos jogava, naturalmente, era pior remunerado. Ao menos na época. “Meu bom gesto significou ver os jogos de fora (do campo). De qualquer forma, Félix não me fez ficar mal”, Deambrosi diria bem-humorado. Ali a linha Muñoz-Moreno-Pedernera-Labruna-Loustau atuou pela primeira vez junta, mas o novato teria que aguardar até a 21ª para nova chance.

A mais famosa imagem do quinteto, na célebre ordem Muñoz, Moreno, Pedernera, Labruna e Loustau. Ela também é utilizada na entrada do museu do River

A reestreia foi um 1-1 com o San Lorenzo. Loustau também foi usado na 22ª e o Racing aplicou um sonoro 6-1 diante de um ataque “remendado”, com Deambrosi, Moreno, Roberto D’Alessandro (sem parentesco com Andrés), Labruna e Loustau. A capacidade ambidestra de Deambrosi permitiu-lhe manter alguma assiduidade na vaga habitual de um lesionado Muñoz, pois Loustau praticamente já não sairia da ponta-esquerda: na 24ª, quem goleou foi o River, 4-0 no Chacarita, com um primeiro show particular do novato. Foram duas assistências (para o próprio Deambrosi, no segundo gol, e para D’Alessandro, no último) e um primeiro gol, convertendo um pênalti para assinalar o terceiro.

Na 24ª, o Millo não saiu do 0-0 com o Ferro, mas já na 25ª rodada o garoto terminou carregado, na imagem que abre essa matéria. O River vencia o Banfield por 2-1 (seria 5-2) e o ponta, a partir dos 21 minutos do segundo tempo, matou o jogo: anotou o 3-1 com um chute forte e, aos 35, forneceu assistência para Moreno marcar o 4-1. Na imagem, ele aparece rodeado por José Ramos, Joaquín Martínez (tio-avô do corintiano Burrito Martínez, está quase escondido), Muñoz, Bruno Rodolfi, Eduardo Lettieri (também quase escondido), Luis Ferreyra e Ricardo Vaghi. E o ponta seguiu em todo o restante da campanha. A taça se garantiu em pleno Superclásico em La Bombonera, na antepenúltima rodada.

O ataque foi Deambrosi-Moreno-Pedernera-Labruna-Loustau, mas o Boca abriu 2-0. Pedernera anotou o empate, igualdade que veio a nove minutos do fim graças ao rebote de uma tentativa prévia de Loustau. Além desse rebote, o novato gerou outros oito gols em suas onze partidas (ainda em contraste às 28 de Deambrosi, que ocasionalmente era escalado na outra ponta diante de alguma ausência de Muñoz): três próprios e cinco através de assistências, normalmente por seus cruzamentos. Em 1943, o Chaplin já figurava em 27 jogos, deixando onze gols (incluindo no Superclásico, vitória por 2-1) e cinco assistências. Em 1944, foram mais 28 jogos, com oito gols e cinco assistências – uma delas, no Superclásico encerrado em 1-1.

A famosa linha Muñoz-Moreno-Pedernera-Labruna-Loustau, porém, só viria a jogar apenas dezoito vezes junta na história do campeonato argentino. A maioria delas, ironicamente, entre 1943 e 1944, justamente quando o campeão foi o Boca – ainda em 1944, Moreno, às turras com a cartolagem, foi ao México. Ainda assim, em janeiro de 1945 chegou a ver de Loustau estrear na seleção, em amistosos preparatórios contra o Paraguai para a Copa América que começaria naquele mesmo mês. Foi sua primeira conquista como titular; só se ausentou da segunda partida. Outro atestado de qualidade é que seu reserva na posição era Manuel Pelegrina, até hoje o maior artilheiro do Estudiantes.

Ao longo do ano, o River também sorriu, reconquistando a liga argentina, ainda que sem o mesmo encantamento do início da década: as vitórias magras renderam até o apelido de Los Caballeros de la Angustia ao elenco. Em 29 jogos, o absoluto Loustau contribuiu com dez gols (um deles, olímpico, no 2-0 contra o Atlanta), incluindo um cheio de categoria no Superclásico (recebeu de Pedernera, driblou o lateral Alberto Pascal e acertou sem ângulo um chute entre a trave e o goleiro Claudio Vacca para anotar o único gol do duelo), além de oito assistências e um pênalti cavado. Seu gol no Super inclusive serviu para o River tomar a liderança do arquirrival ao fim do primeiro turno.

“Félix Loustau, jovem ponta do River, que está se desempenhando com muito acerto”, diz a El Gráfico da esquerda, de novembro de 1942, quando ele se afirmou. A outra é de 1946

Em 1946, houve nova Copa América em janeiro e Loustau esteve em todas as partidas do título, conquistado em casa. Loustau também estaria dessa vez em todas as partidas do campeonato argentino. Chegou a ser novamente herói no Superclásico do primeiro turno, marcando os dois gols que, outra vez, tiraram a liderança do rival para dá-la ao River. Em meados do ano, Moreno até voltou do México, mas, contra a teoria, o Millo acabou não mantendo o gás na disputa com o Terceto de Oro do campeão San Lorenzo. O ponta contribuiu ao todo com nove gols (incluindo um olímpico, no 2-1 no Vélez) e oito assistências em 30 jogos, no último torneio a reunir o famoso quinteto: para 1947, o maestro Pedernera aceitou proposta chamativa do Atlanta. Menos mal que acabou muito bem substituído pela revelação Alfredo Di Stéfano.

O River foi campeão com sobras em 1947 no embalo da artilharia de Di Stéfano. Loustau também teve temporada das mais produtivas, com treze gols (cinco deles, como cobrador oficial de pênaltis, é verdade), gerando ainda outro por rebote (aproveitado por Francisco Rodríguez para abrir um 5-1 no Platense) e doze assistências – três delas em um só jogo, no 4-1 no Newell’s. Pelo terceiro ano seguido, houve Copa América, dessa vez em dezembro. Loustau novamente foi recrutado e, novamente, campeão. Nenhuma outra seleção conseguiu ser tri seguida no torneio e qualidade era tanta que apenas cinco jogadores estiveram presentes em todo o tri. E desses cinco, a honra maior foi de Loustau, como único titular nas três conquistas.

Em 1948, então, ocorreu uma greve de jogadores que paralisou o futebol argentino. Não-atendidos, muitos foram ao exterior. Do River, saíram Moreno (Universidad Católica), Di Stéfano, Néstor Rossi, Hugo Reyes e Luis Ferreyra (Millonarios de Bogotá, que também levara Pedernera). Loustau esteve bem perto de ir para o atrativo futebol colombiano da época, recebendo em mãos 20 mil dólares – quantia das mais tentadoras para um jogador, ali – do Deportivo Cali, que já levara os riverplatenses Roberto Coll, Manuel Giúdice e Eduardo Rodríguez.

“Os tive em minhas mãos, os contei centenas de vezes”, referiu-se aos dólares. Mas, sem se sentir na melhor forma física na época, negou. “Outra das causas foi que eu era uma espécie de patrimônio do River. E a terceira foi que Nicolini – ministro do governo peronista -, que era interventor da AFA, teria movido céu e terra para impedir que emigrasse um cidadão de Avellaneda…”. Loustau ficou e, junto com Labruna, foi o remanescente dos anos 40 na ainda mais dourada década seguinte. Mas ainda foi preciso suportar uma entressafra de cinco anos sem títulos na liga. Isso e a crise resultante da greve fizeram Loustau ausentar-se por mais de dois anos da seleção, reestreando já em março de 1950.

Eficiência não faltava: até a greve estourar em 1948, Loustau anotara oito gols em 21 partidas, fornecendo ainda nove assistências (três delas, incrivelmente, não adiantaram: o futuro campeão Independiente venceu por 4-3). Em 1949, o Millo concorreu com o Racing muito por conta dos onze gols em 34 jogos do Chaplin, fornecedor de quinze assistências (uma delas, em Superclásico vencido por 1-0). Em 1950, foram 24 jogos, nove gols e três assistências, sem impedir o bivice para o Racing, tricampeão em 1951. Ali, foram 24 jogos, quatro golzinhos, pênalti cavado e, principalmente, seis assistências, incluindo a do segundo gol em um 3-0 no Boca em plena Bombonera. Foi também a quarta vitória seguida da Banda Roja sobre o arquirrival.

O título enfim voltou a Núñez em 1952, ano marcado também pela pré-temporada que rendeu o primeiro triunfo argentino em terras inglesas (4-3 no Manchester City) em meio a uma exitosa turnê europeia (uma só derrota em 14 jogos, com direito a um gol de Loustau no 3-3 contra um combinado milanês de Inter e Milan). La Máquina dera lugar a La Maquinita. Inicialmente, com Santiago Vernazza, Eliseo Prado, Walter Gómez, Labruna e Loustau no ataque, além do mítico Amadeo Carrizo afirmado desde 1948 entre as traves. Na reconquista, Loustau jogou as trinta rodadas e deixou seis gols – incluindo mais um olímpico na carreira, em pleno Superclásico, para abrir um 3-1 – e dez assistências, uma delas naquele mesmo Super.

Pela seleção e pelo Estudiantes

Gradualmente, a idade foi pesando. Em 25 jogos, Loustau anotou apenas dois gols (um deles, no Boca, mas em derrota de 3-2) e registrou somente quatro assistências em meio ao bicampeonato em 1953, não voltando a defender a seleção desde um 3-1 em Lisboa sobre Portugal ainda em dezembro de 1952. Em 1954, o Boca encerrou um jejum de dez anos na liga enquanto Loustau ainda seguia titular: foram 23 jogos, seis assistências e três golzinhos do veterano, que acabou limitado a 18 jogos em 1955 por conta de uma doença. O River foi novamente campeão e Loustau até deixou quatro gols e sete assistências, mas começou a perder lugar para a ascensão de Roberto Zárate.

Um bicampeonato veio em 1956 com Loustau já atuando apenas dez vezes; pôde marcar dois gols e deixar duas assistências. O primeiro tricampeonato millonario veio em 1957, e o ocaso de Loustau só não foi mais escancarado porque sua única partida foi precisamente o Superclásico, na 10ª rodada (2-2). Afinal, o concorrente Zárate voava com 22 gols em 28 jogos – Zárate teria ido à Copa do Mundo de 1958 se não fosse uma lesão já nos amistosos europeus de preparação.

Depois de uma década e meia, era a hora de Núñez despedir-se do ídolo de 365 jogos oficiais e 101 gols (seis no Boca). O mais folclórico deu-se em Tucumán. O estádio estava tão cheio que a cavalaria de segurança estava praticamente nos limites do campo. “Em uma jogada, passei por debaixo de um cavalo que havia entrado, chutei no arco e marquei”. Com oito títulos argentinos (1942-45-47-52-53-55-56-57), foi por muito tempo o segundo maior campeão com a banda roja, só superado pelo colega Labruna, que venceu também o de 1941. Nacionalmente, apenas um os superou: Leonardo Astrada, também do River, com dez, mas a maioria obtida na era dos campeonatos curtos (com dois torneios por ano), introduzidos nos anos 90.

Loustau prosseguiu a carreira no Estudiantes, em 1958. O ataque até foi bem decorado em La Plata: Perfecto Rodríguez, Rubén Koroch, Ricardo Infante (mundialista em 1958), Héctor Antonio e ele, mas o veterano só vestiu a camisa pincharrata em nove partidas, sem chegar a marcar gols – embora contribuísse com sete assistências, incluindo no Clásico Platense, ainda que sem evitar a derrota de 2-1 para o Gimnasia. Parte da quantidade pequena de partidas deveu-se a problemas de pagamento; deixaria o Estudiantes ainda naquele ano.

O astro ainda se manteve ativo no pequeno Cemento, da liga regional de Azul, vencida por três anos seguidos por um dos ícones da geração de ouro que o futebol argentino teve nos anos 40, marcada por ausentar-se de Copas do Mundo por fatores extracampo: a presença de Loustau na de 1942 seria improvável, mas era nome certo para a de 1946, também inviabilizada em função da Segunda Guerra Mundial.

Como se não bastasse, depois da guerra o presidente Perón vetou a participação nas eliminatórias para as de 1950 e 1954, temendo um vexame sem os astros exilados com a greve de 1948. Ainda assim, a passagem de Loustau pela Albiceleste foi um fenômeno: 27 partidas, 10 gols e só 2 derrotas, ambas fora de casa – uma delas, em virada arrancada apenas nos minutos finais pela Inglaterra em Wembley. Marcou na estreia (5×2 no Paraguai, em 1945) e no último jogo (3×1 em Portugal, em Lisboa, em 1952). E esteve invicto nos 17 jogos em que participou do tricampeonato seguido na Copa América.

Em Wembley, cumprimentando Jules Rimet antes de Inglaterra 2-1 Argentina em 1951: só perdeu aquele jogo e outro em 27 jogos pela seleção

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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