Seleção

75 anos da mais tumultuada final Brasil x Argentina: a Copa América de 1946

“Foi na final do Sul-Americano de 1946, em fevereiro… uma noite de tremendo calor. Nós tínhamos 1 ponto de vantagem (havíamos ganho todas as partidas e eles empatado uma). Uma partida caliente como toda final, mas esta vinha com um agregado: dois meses antes, havíamos jogado no Rio pela Copa Roca (nos ganharam de 3-1), e a verdade é que aquilo havia sido pouco menos que uma batalha; eles bateram de qualquer jeito e… nós também. Por isso, flutuava no ar, já nesta final, a lembrança do que havia ocorrido dois meses antes”.

A declaração acima foi feita no início dos anos 70 por José Salomón, já aos 57 anos e avô de três netas. Falava sobre o mais controverso Brasil x Argentina, jogo que hoje faz 75 anos e que rompera por outros dez anos as relações de AFA e CBD. A carreira de Salomón, há 75 anos o então querido capitão e recordista de jogos pela Albiceleste (estatística essa que se manteve até os anos 70, justamente) foi bastante prejudicada ali: ele terminou a partida fraturado, lance que gerou a briga generalizada que marcou a partida. Até pôde voltar a jogar, mas no modesto Liverpool uruguaio e não mais pelo gigante Racing, muito menos pela seleção. Hora de revisar e atualizar a nota publicada originalmente nos setenta anos daquele clássico histórico.

O ar já cheirava a pólvora muito porque, no clássico anterior, outro hermano terminara fraturado, José Battagliero. Contamos uma prévia disso em nota dedicada ao tal Battagliero, na qual transcrevemos essas palavras de Paulo Vinícius Coelho: “experimente pegar um livro brasileiro para conhecer essa história. Você vai descobrir que as lesões dos dois argentinos foram absolutamente ocasionais, em lances involuntários dos brasileiros. Apanhe a coleção da revista El Gráfico e a leitura será diferente. Os brasileiros ‘criminosos’ machucaram propositadamente os jogadores argentinos”. É mesmo difícil encontrar leituras desapaixonadas para relatar aquele 10 de fevereiro de 1946.

Salomón com o técnico Stábile e de costas carregando Battagliero em 1945 e observando a disputa entre Vacca e Heleno de Freitas há 70 anos

Jornais brasileiros da época retratam que a Argentina estava bastante agitada, com O Globo Sportivo inclusive sustentando que não seria o melhor momento para um torneio de futebol. Nem tanto pela polêmica sobre a Copa Roca que fraturara Battagliero, e sim por diversas greves às portas da primeira eleição democrática em nove anos. Os anos 30, marcados por golpes, já haviam sido marcados como “a década infame” e um novo golpe havia derrubado em 1943 o presidente Ramón Castillo, que assumira o cargo em 1942 como vice do renunciado (e logo morto pela diabetes) presidente eleito em 1937, Roberto Ortiz. As eleições de 1946 ocorreram em 24 de fevereiro, exatas duas semanas após aquela final. Ali chegaria pela primeira vez ao poder o general Juan Domingo Perón.

Voltando ao futebol, a fratura de Battagliero deixara a delegação brasileira apreensiva sobre como seria recebida. O Jornal dos Sports, porém, anunciou após o desembarque que “Buenos Aires acolheu bem nosso scratch. (…) Em torno da possível maneira como seria recebido na Argentina o scratch brasileiro de football, criara-se um ambiente de exageradas preocupações”. Inclusive, foi naquele contexto que o ídolo botafoguense recebeu uma primeira proposta do Boca, transferência que ainda demoraria dois anos para se efetivar. O clima diplomático, porém, não se estendia a Battagliero. Foi noticiado que ele recusou-se a receber a visita que os brasileiros tentaram-lhe prestar.

Os argentinos chegaram à última partida após vencer todos os jogos anteriores com pelo menos dois gols de diferença. Anfitriões, começaram com um 2-0 no Paraguai, grande surpresa do torneio: a Albirroja suplantou o Uruguai e terminou em 3º. Empatou com os brasileiros, deixando-os em desvantagem para a rodada final. Seu craque era o veterano Delfín Benítez Cáceres, que brilhara por Boca e Racing (chegando a defender um selecionado argentino), e seu goleiro era Sinforiano García, depois ídolo no Flamengo. O placar foi aberto cedo, por Vicente de la Mata em jogada de Félix Lostau aos 6 minutos.

Outros registros de Salomón: caído, mas ainda em condições contra Tesourinha (junto a Fonda e, atrás, Strembel) e sua agonia no vestiário

Lostau foi o melhor em campo, aliás: “com a bola nos pés, oferecia um espetáculo pela variedade de recursos empregados. Colocou em polvorosa a defesa paraguaia, criando situações incríveis para os componentes da retaguarda guarani. De seus pés, nasceram todos os ataques do quadro argentino”, nas palavras do Globo Sportivo. Ponta-esquerda do grande River da época, seria o único titular absoluto da Argentina tri seguida da Copa América, apesar dos torneios do tri se realizarem em anos seguidos (1945-46-47).

Aos 40 minutos, um expulso para cada lado: o outro ponta argentino, Mario Boyé (um dos raros cinco convocados para as três campanhas), revidara entrada dura de Juan Villalba, até então um dos melhores paraguaios em campo. O Globo Sportivo relatou que a própria plateia argentina exigiu a expulsão de Boyé e aplaudiu sua retirada. Aos 43, Rinaldo Martino (que defenderia ainda a seleção italiana e, em fim de carreira, o São Paulo) anotou os 2-0, decretando um segundo tempo morno.

Outro muito elogiado seria o próprio Salomón: “voltou à sua forma de antes, tendo atuado ontem excelentemente”. A seguir, um massacre: 7-1 na Bolívia, a maior goleada do torneio. Substituto do expulso Boyé, Juan Carlos Salvini marcou duas vezes, assim como Lostau e Ángel Labruna, lenda máxima do River. Salvini, porém, também não duraria muito: contundiu-se em encontrão com o goleiro Lorenzo Fernández na partida seguinte, contra o Chile. Foi em um 3-1 no qual a Argentina havia sido “senhora de um padrão estético mais apurado”, segundo o Jornal dos Sports. Os chilenos compensavam na correria, mas cansaram-se após a primeira meia hora. Aos 39 minutos, então, Labruna abriu o placar. Também faria o segundo, aos 15 do segundo tempo.

A paralisação e os argentinos convencendo os brasileiros a voltar. Parece coação?

O mais elogiado, porém, foi Adolfo Pedernera, sobre quem explicamos aqui ser alguém que se notabilizara por jogar bem nos cinco postos de ataque (nas duas pontas, nas duas meias ofensivas e de centroavante) a ponto de ser o maior da história para Di Stéfano. O Globo Sportivo corroborou isso: “a saída de Salvini do gramado, contundido fortemente, e a impossibilidade de substitui-lo por outro ponteiro direito obrigou o técnico a recorrer aos bons ofícios de um centroavante. Pedernera foi o ‘homem sacrificado’, mas, inteligente jogador, deu cabo da missão com sobriedade”, tendo um “dom” que “lhe permite desempenhar-se com notável acerto em qualquer dos postos da vanguarda”.

René Pontoni, outro dos cinco presentes em todo o tri e futuro jogador da Portuguesa, havia substituído Salvini para ser o centroavante enquanto o titular Pedernera deslocara-se à ponta. Ídolo do jovem Papa Francisco e capaz de deixar os próprios Pedernera e Di Stéfano no banco da seleção, ao menos ali ele não brilhou tanto: “agiu com inteligência em algumas jogadas, mas fracassou totalmente em outras” e seria outro a não retornar. Na partida seguinte, Pedernera voltou à posição habitual de centroavante enquanto a ponta-direita teria um quarto dono: Vicente de la Mata, originalmente um meia-esquerda, foi improvisado. Ainda adolescente, ele decidira a final de 1937, também contra o Brasil, ao marcar na prorrogação os dois gols do título. Desde então, brilhava no Independiente como seu maior jogador na primeira metade do século XX, mas carecia de espaço na Albiceleste em meio à geração dourada da época.

O ataque argentino, porém, era no geral muito bem avaliado pela mídia brasileira. A defesa é que nem tanto, embora se ressaltasse a segurança de Salomón e do goleiro Claudio Vacca. Curiosamente, o que se viu na peleja seguinte, contra o Uruguai, foi o inverso. Os avantes celestes foram muito individualistas e bem rechaçados pela defesa hermana, enquanto o ataque portenho igualmente não fluía bem. Ainda assim, o Jornal dos Sports elegeu Norberto Méndez foi o maior destaque do “domínio absoluto dos argentinos”, embora o Globo Sportivo ressalvasse de forma profética que “na oportunidade, o triunfo coube aos argentinos, mas os uruguaios provaram que estão recuperando o antigo poderio e não demorará o dia em que reaparecerão novamente como os líderes do continente”.

Flagrantes das cenas lamentáveis

Após 32 minutos de equilíbrio, a lenda Obdulio Varela teria tentado alguma graça com a bola, Lostau roubou-a, correu e foi derrubado por Eusebio Tejera. Pedernera cobrou a falta, que com violência atravessou a barreira, triscou na mão de Roque Máspoli e ainda bateu na trave antes de entrar. Um gol-relâmpago aos 15 segundos do segundo tempo ampliou a vantagem argentina, com o ataque construindo bela jogada coletiva: “Pedernera deu a saída, passando a Méndez. Este estendeu para a direita, onde se encontrava De la Mata. Da direita, foi para a frente a Pedernera, que se achava deslocado. Daí partiu um passe certo para Labruna, que, sem perda de tempo, chutou na corrida”.

Os uruguaios ainda diminuiriam logo aos 14 minutos do segundo tempo e se animaram, mas aos 27 Lostau cruzou a Pedernera, que habilitou Labruna para ampliar. Ele ainda perderia um pênalti, oriundo de um toque de mão e espalmado por Máspoli. A reação uruguaia terminou de vez com a expulsão de Luis Sabatel após pontapé em Lostau. Restava a partida contra o Brasil, cuja campanha havia sido um 3-0 na Bolívia, 4-3 no Uruguai, 1-1 com o Paraguai e 5-1 no Chile. E seria a primeira vez que o clássico ocorreu no Monumental de Núñez, requisitado pelos brasileiros em razão da pista de atletismo, que até hoje afasta as arquibancadas do gramado, representar uma segurança maior; os argentinos ainda usavam bastante o Gasómetro, antigo campo do San Lorenzo – cenário daquela final de 1937, que também terminara em tumulto e no qual apenas uma grade separava plateia do campo.

Os hermanos concordaram em usar o Monumental, mas em compensação promoveram o desfile de Battagliero em uma maca para inflamar o ambiente. Tensa desde o início, a partida teve um primeiro empurra-empurra quando Labruna buscou satisfação após falta de Danilo. Mas a briga de verdade estourou aos 28. Salomón, ao ser indagado naquela entrevista nos anos 70 se achava que Jair havia sido mal intencionado no lance que ocasionou a fratura, respondeu que “isso nunca se saberá, Jair tem a verdade em sua consciência. Iam 30 minutos do primeiro tempo, nós estávamos atacando. Vem um contra-ataque do Brasil e a bola cai atrás de mim. Corremos Jair e eu. Consegui chegar antes dele para rechaçar com uma espécie de bicicleta. A bola devia estar a 80 centímetros do piso. Me atiro e quando vou chegar, desde trás apareceu a sola de Jair (…). Veio ao sanatório antes de ir-se, e depois nos vimos outra vez no Brasil ao cabo de vários anos. Mas da jogada nunca falamos…”.

Ah, houve futebol antes: o técnico Guillermo Stábile, Vicente de la Mata, Norberto Méndez, Adolfo Pedernera, Ángel Labruna, Félix Lostau e o massagista Chichilo Sosa; José Salomón, Juan Sobrero, Juan Fonda, León Strembel, Claudio Vacca e Natalio Pescia

Chico e De la Mata foram expulsos. O brasileiro terminou massacrado por vários na briga segundo os jornais tupiniquins, enquanto os jornais vizinhos ressaltaram que ele atacou por trás Natalio Pescia – simplesmente o beque que hoje nomeia o setor das arquibancadas de La Bombonera onde se reúne a temida La 12. O ponta vascaíno guardaria traumas, chegando a declarar que “odiava os argentinos”, sendo expulso “sempre merecidamente” em “nove de dez jogos” que fez contra eles, muito embora uma avó sua fosse do país vizinho. Mas se esse gaúcho ainda teria bola para ser titular no Maracanaço de 1950, o outrora herói de 1937 jamais voltaria a jogar por sua seleção. Assim foi a involuntária e amarga despedida de Don Vicente pela Argentina.

A partida se paralisou por uma hora e quinze minutos após os brasileiros fugirem aos vestiários. Estariam se trocando e comendo quando foram ordenados a regressar (cada um lado a lado com um argentino), atitude considerada “heroica” pelos jornais do Brasil, que consideraram compreensível a derrota no contexto que veio, frisando que antes da confusão os visitantes teriam dominado absolutamente a partida – visão que se fundamentaria nos quatro escanteios a zero até a briga. Mas um tanto desmentida por um relato seco do Sport Illustrado, que sugere pleno equilíbrio nas chances (veja a íntegra na última imagem).

Depois de alguns anos, talvez traído pelas peças da memória, Salomón deu uma versão diferente: “a grande confusão foi no segundo tempo, quando os muchachos ficaram sabendo no intervalo da minha fratura. Ali se armou a rosca entre os jogadores que interrompeu a partida e que fez com que terminasse perto da madrugada… sorte que o público não soube da minha lesão até o outro dia, senão creio que os negros não se iam vivos do estádio”. Algumas versões também incluem reforço da plateia e da polícia na pancadaria contra os visitantes, algo que não se vê nas fotos dos próprios jornais brasileiros – dos quais só não retiramos a imagem colorida de Salomón com o treinador Guillermo Stábile, escolhida pela El Gráfico como capa da edição pós-título (a conquista, aliás, igualou pela primeira vez a Argentina ao Uruguai como máximos campeões do torneio).

1946-05
Relato seco do Sport Illustrado. Clique aqui para ler ampliado

Segundo o tal relato do Sport Illustrado, aliás, a polícia interveio para escoltar Chico e demais brasileiros aos vestiários. Vale destacar também algumas notas de jornais da época: “nada nos parece mais ridículo do que responsabilizar o juiz por um revés, ou dizer que não se ganhou porque a violência do rival não permitiu”, de O Jornal. “O Sr. Nobel Valentini [o árbitro] foi de um modo geral um bom juiz. Não teve pelo menos a preocupação de prejudicar nenhum dos teams em campo e deu uma nota simpática indo ao vestiário dos brasileiros para pleitear a sua volta ao campo” de O Globo. segundo O Globo Sportivo, o árbitro uruguaio culpou ambas as seleções – teria declarado que “no Chile [na Copa América anterior] fui eu quem apitei o match Brasil x Argentina. Cada vez que esses dois teams se encontram, seus integrantes fazem um jogo muito duro”.

Vale ressaltar ainda que “cenas lamentáveis” daqueles tempos eram reforçadas por algumas doses de lenda em época sem televisão. A tumultuada final de 1937 foi perdida “porque eles jogaram melhor”, confessaria nos anos 70 o brasileiro Tim à revista Placar. Há fontes que sustentam que uma outra, no natal de 1925, foi classificada como “Guerra de Barracas” pelos jornais brasileiros, uma inverdade que demonstramos neste outro Especial. De fatos sobre aquela final de 70 anos atrás, porém, Brasil e Argentina só voltariam a se enfrentar em 1956. O Racing, clube de Salomón, cancelou imediatamente uma visita programada para o Rio Grande do Sul. E os hermanos, campeões também da Copa América de 1947, não viriam ao Brasil defender o título na edição seguinte, em 1949 – e tampouco estariam presentes na Copa do Mundo de 1950. Nem mandaram representantes às Copas Rio de 1951 e 1952, apesar da aura de Mundial pregada por aqueles torneios.

Como curiosidades, a final ocorreu três dias após o nascimento de um símbolo de união entre os dois países, o cineasta Héctor Babenco; o Globo Sportivo noticiou que foi aquela confusão que retardou a transferência de Heleno de Freitas com o Boca, até então dada como praticamente fechada para aquele 1946 – o botafoguense, aliás, quase foi expulso há 70 anos, após chutar uma bola em um bandeirinha. Ah, sim: os gols do título foram de Norberto Tucho Méndez. Este atacante do Huracán ainda é o maior artilheiro da história da Copa América, juntamente com Zizinho, mas com melhor média de gols (fez 17 gols em 17 jogos: saiba mais), já tendo até feito todos em um 3-0 contra o Brasil na Copa América anterior. Todos, curiosamente, de fora da área. A imagem acima detalha aquela partida de 1946, incluindo como os gols vieram daquela vez.

https://twitter.com/Argentina/status/1359502388839673857

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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