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Há 50 anos, o Bangu, treinado por um argentino, festejava o último Cariocão não ganho pelos 4 grandes

Por Emmanuel Do Valle, do Flamengo Alternativo. Com colaboração de Caio Brandão

Foi uma final argentina no Rio de Janeiro aquela travada em 18 de dezembro de 1966, que ontem completou meio século. Embora o título da nota já seja bem autoexplicativo, não expõe que o treinador vice-campeão há cinquenta anos também era um hermano. Do lado derrotado, dois brasileiros com passagens marcantes – para o bem ou para o mal – por grandes clubes do país vizinho. Ao fim, quem sorriu mais foi o único argentino do outro lado, curiosamente com passado pelo vice.

O título do Bangu em 1966 é o ponto culminante da ascensão que o clube alvirrubro vinha experimentando. Em 1963, dirigido por Tim (nome brasileiro que virou lenda no futebol portenho: falamos aqui que treinou o primeiro campeão argentino invicto no profissionalismo, o San Lorenzo de 1968 – clube do qual pinçou Doval para o Flamengo), liderou o Campeonato Carioca da primeira à antepenúltima rodada, quando perdeu para o Flamengo por 3-1 e acabou saindo até da briga pelo título, mas terminou em terceiro, apenas três pontos atrás dos rubro-negros.

Foi ali em 1963 que Tim pôs em prática a estratégia que ganhou do cronista carioca Jacinto de Thormes o apelido de “Raposa”. O time ficava encolhido no meio-campo e, quando roubava a bola, o meia Roberto Pinto ou o ponta de lança Parada se encarregavam de lançar às costas dos zagueiros adversários os pontas Paulo Borges e Mateus, que jogavam bem abertos e eram excelentes finalizadores. Já em 1964, dirigido primeiro por Martim Francisco e depois por Plácido Monsores, o Bangu terminou empatado com o Fluminense na primeira colocação após turno e returno. Mas acabou derrotado pelos tricolores nos dois jogos extras que decidiram o título.

Em 1965, comandado por Zizinho, o Bangu novamente ficou com o vice, morrendo de véspera, num sábado à noite, com outra derrota para o Fluminense dando o título de bandeja para o Flamengo. Zizinho continuou no comando em 1966, mas acabou pedindo demissão após as campanhas irregulares no Torneio Rio-São Paulo e na Taça Guanabara. Alfredo González, o argentino vencedor da história, entrou em seu lugar e estreou na rodada de abertura do Carioca, com goleada de 5-0 sobre o Madureira dentro do alçapão do Tricolor Suburbano em Conselheiro Galvão.

González como jogador de Flamengo, Vasco e Botafogo e como técnico do Bangu. Dois anos depois, em 1968, foi vice da Libertadores treinando o Palmeiras

Como jogador, Alfredo González ironicamente tinha sido campeão carioca pelo Flamengo em 1939, na meia-esquerda de um ataque lendário do rubro-negro: Sá, Valido, Leônidas, González e Jarbas. Foi inclusive o artilheiro do clube naquela campanha com 13 gols, um a mais que Valido e três a mais que o Diamante Negro. Já lembramos que aquele Flamengo, além dele e do célebre Agustín Valido, tinha outros três argentinos, todos com passagem pela seleção: o meia Carlos Volante, ex-Lanús, e os consagrados Arturo Naón, maior artilheiro do Gimnasia LP, e Raimundo Orsi, campeão da Copa de 1934 (com gol na final) pela Itália e vice olímpico de 1928 pela Albiceleste.

Se Naón e Orsi são os mais bem cotados na terra natal, os demais três tiveram mais sucesso. Volante chegaria a ser o estrangeiro recordista de jogos no Mengão. Valido, semi-aposentado, faria o gol do primeiro tricampeonato flamenguista, em 1944. González, ex-reserva do Boca como Valido, também seria campeão em 1944, mas pelo Palmeiras. Antes de tornar-se alviverde, havia passado também por Vasco e Botafogo, com um desempenho bom mas sem títulos. A carreira de González como treinador, desenvolvida quase inteiramente no Brasil, começou em 1950 já levando o Internacional ao título gaúcho. Depois viraria a casaca e comandaria o Grêmio, sem o mesmo êxito.

González seria também campeão em Pernambuco dirigindo o Santa Cruz e o Náutico, tendo ainda passagem pelo Sporting Lisboa antes de chegar à Moça Bonita. Mais tarde, treinaria ainda o Fluminense e o Palmeiras, a quem levaria à decisão da Libertadores de 1968, perdida para o Estudiantes. Dois anos antes, no Bangu, ele descartava o título de “estrategista”. Em entrevista ao Correio da Manhã logo nas primeiras rodadas, dizia apenas que seu time jogava um futebol solto, ofensivo, livre de amarras táticas. Era mais do tipo “boleiro”, de ajeitar o time na base do papo. A maior “ousadia” que cometeu foi a escalação do meia Ocimar como falso ponta-esquerda no jogo do turno contra o America, para dar mais mobilidade ao time, antes de Aladim se firmar por aquele setor.

Mas o Bangu se completou mesmo quando a posição mais problemática daquela equipe, o comando do ataque, foi solucionada com a chegada do centroavante Ladeira, trazido do América-SP na virada do turno, depois de nem Ênio nem Norberto (este, vindo do Bragantino) terem agradado ao treinador. O resto da escalação variou pouco ao longo do torneio: Ubirajara no gol; Fidélis (que havia ido à Copa do Mundo), Mário Tito, Luís Alberto e Ari Clemente na dura linha defensiva; Ocimar e Jaime no meio-campo, Paulo Borges e Aladim pelas pontas e Cabralzinho na ponta-de- lança.

Mário Tito, Ubirajara, Luís Alberto, Ari Clemente, Fidélis e Jaime, Paulo Borges, Cabralzinho, Ladeira, Ocimar e Aladim: contexto do título traria Sanfilippo em 1968

A campanha banguense foi irretocável do ponto de vista dos resultados: foram 15 vitórias, dois empates e apenas uma derrota, justamente para o Flamengo, por 2-1, na rodada derradeira do primeiro turno. O time marcou 50 gols em suas 18 partidas, e em metade delas venceu por três ou mais gols de diferença – incluindo o jogo do título. Do outro lado havia o Flamengo, que se colocou ao longo de todo o campeonato como o principal rival do Bangu na briga pelo título – ou o contrário, já que, é bom lembrar, o rubro-negro era o atual campeão carioca.

A disputa ficou polarizada entre os dois times, com o Fla fazendo campanha igualmente irretocável: chegou invicto à última rodada, embora somando um ponto a menos, registrando até ali 12 vitórias e cinco empates (todos em clássicos). E tinha sido o único time a bater o Alvirrubro da Zona Oeste, numa partida memorável, vencida de virada com um homem a menos e decidida com um gol épico de Almir Pernambuquinho, que, caído, aproveitou um rebote de Ubirajara arrastando o rosto na lama para empurrar a bola além da linha. Em meio à campanha, o Flamengo havia ainda arrancado honroso empate contra a própria seleção argentina em Avellaneda: falamos aqui.

Aquele eficiente Flamengo também era comandado por um argentino que havia atuado no Brasil como jogador e agora levava por aqui uma rodada carreira de treinador. Era Armando Renganeschi, ex-zagueiro de Fluminense, Bonsucesso e São Paulo nas décadas de 30 e 40 e técnico com carreira baseada no interior paulista, com bons trabalhos na Linense e no XV de Jaú – além de, como González, também ter levado o Palmeiras a um vice-campeonato na Libertadores, em 1961, derrotado pelo Peñarol. Renga chegara à Gávea para substituir o veterano Flávio Costa, de saída para o Porto. Vinha indicado por um ex-presidente do Guarani ao diretor de futebol rubro-negro, o sueco Gunnar Goransson, depois que a contratação de Aymoré Moreira, o preferido da diretoria e então na Portuguesa, complicara-se.

Ao chegar, em agosto de 1965, Renganeschi começou a implantar um estilo de jogo moderno, com as linhas defensiva e média atuando bem adiantadas, marcando no campo do adversário, e com o ataque girando em deslocamentos e trocas de posição. Os pilares daquele time se situavam em três duplas: os laterais Murilo e Paulo Henrique, ambos de estilo também moderno para a época, com grande capacidade física e técnica para apoiar constantemente o ataque e voltar para cobrir o setor; os meias Carlinhos “Violino” e Nelsinho, que combinavam a técnica primorosa na organização do jogo do primeiro com a combatividade e a dedicação do segundo. E, por fim, a dupla de frente formada pelos experientes Almir e Silva – dois jogadores com passagem no futebol argentino. Era outra dupla que combinava características distintas e complementares.

Pernambuquinho (Boca) e Batuta (Racing): dupla de ataque vice-campeã com o Flamengo teve passagem marcante na Argentina. Almir, sempre polêmico; e Silva, brilhante

Almir “Pernambuquinho” era mais raçudo e catimbeiro, mas um jogador inteligente, que se movimentava abrindo espaço nas defesas, cavava faltas, e em muitos momentos era o desafogo da equipe, prendendo a bola na frente. Havia passado pelo Boca em 1961, trazido por Vicente Feola (então técnico dos xeneizes, que tinham contratado uma legião brasileira), mas brilhando mais em amistosos do que em jogos oficiais: no campeonato, jogou só quatro vezes, sem marcar – no último, foi expulso contra o Chacarita na única participação do brasileiro no vitorioso campeonato de 1962, ainda no início. Já em amistosos (foram dezesseis), Almir deixava seus gols, como um 2-2 com o River, 2-0 no Independiente, 4-0 no Estrela Vermelha iugoslavo e dois em um 5-0 no Corinthians.

Foi pouco: “um jogador sujo, que se fazia expulsar, embora muito dotado tecnicamente. Não rendeu o esperado”, resumiu seu perfil no completíssimo site estatístico Historia de Boca. Já Silva “Batuta”, presente na Copa de 1966, era um camisa 10 de muita classe e elegância na condução da bola, além de também saber marcar muitos gols, especialmente de cabeça e em cobranças de falta. Iria ao Barcelona no início de 1967 (terminou jogando só amistosos pois o time catalão não conseguiu inscrevê-lo) e também ao Santos de Pelé. Havia um mês e meio, no início de novembro de 1966, fizera o gol flamenguista naquele 1-1 contra a Argentina em Avellaneda, cidade onde voltaria a brilhar em 1969 ao ser contratado por um Racing ainda cheio de prestígio. Em passagem curta mas fenomenal, tornou-se o único brasileiro artilheiro do campeonato argentino: detalhamos aqui.

O Flamengo, ainda que com um ponto a menos, havia chegado invicto à decisão. O árbitro seria Airton Vieira de Moraes, o mesmo da partida em que os rubro-negros haviam causado a única derrota dos alvirrubros – por outro lado, ele havia expulsado polemicamente Silva na comemoração do gol do empate. Renganeschi arriscou ao usar o ponta Carlos Alberto, ainda não totalmente recuperado de lesão. Não foi feliz: logo no primeiro minuto, o jogador perdeu qualquer condição após choque duro com o adversário Ari Clemente. Não eram permitidas substituições e o rubro-negro precisaria ganhar jogando praticamente a partida inteira com um a menos. E ficaria com dois a menos aos vinte minutos, após Nelsinho romper os ligamentos do joelho em outra dividida.

Três minutos depois, a torneira se abriu de vez aos comandados de González: Bangu 1-0, gol de Ocimar. Mais três minutos, outro gol alvirrubro, dessa vez marcado por Aladim. O 3-0 foi assinalado no início do segundo tempo, por Paulo Borges. Sem suportar as naturais provocações, Almir roubou o protagonismo da decisão para si, tornando-a mais conhecida pela pancadaria generalizada que originou. Nem isso nem o apadrinhamento de Castor de Andrade tira os méritos do timaço do Bangu de González. O clube em 1967 ficaria entre os três primeiros (foi vice) pelo quinto ano seguido. Foi ainda sob esse contexto que em 1968 o alvirrubro contratou o maior artilheiro do San Lorenzo e de grande média de gols na seleção, José Sanfilippo. Mas isso é outra história…

Clique aqui para conhecer os argentinos da história do Bangu – e o desfecho de Sanfilippo

Da Redação

Perfil utilizado para colunistas convidados a escrever no site FutebolPortenho.com.br

2 thoughts on “Há 50 anos, o Bangu, treinado por um argentino, festejava o último Cariocão não ganho pelos 4 grandes

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