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90 anos da lenda viva Juan José Pizzuti: na soma jogador e técnico, o maior símbolo do Racing

Em quase 115 anos de história, o Racing só teve três campeões como jogador e técnico: Saúl Ongaro, Juan José Pizzuti e Alfio Basile. Só Pizzuti conseguiu mais de um título nas duas funções. Só o fato de ser o treinador do elenco campeão da Libertadores e Mundial (o primeiro do futebol argentino como um todo) racinguistas bastaria para coloca-lo no panteão da Academia, apesar do rebaixamento conjunto em 1983. Feito que ofusca o quão notável goleador ele foi, o segundo maior dentre os profissionais (quarto no geral) do clube, com média superior a meio gol por jogo mesmo não sendo atacante. Detalhe: era torcedor do Independiente na infância. Hoje presidente honorário do Racing, El Tito, que ainda fez o gol de título da seleção sobre Pelé & Cia, chega aos 90 anos.

Pizzuti é uma das últimas lendas vivas da geração dourada que o futebol argentino teve nos anos 40 (de outros, podemos citar Santiago Vernazza e Amadeo Carrizo, ainda que o ex-goleiro, também nonagenário, só tenha adquirido regularidade nos anos 50), por vezes tida como a mais brilhante de todas, com craques abundando até em clubes pequenos. Foi em um deles, o Banfield, que Pizzuti começou no futebol profissional, marcando seus primeiros gols em 1947. Ainda com vinte anos, fez só dois, mas importantes: um no 2-2 com o Platense e o terceiro no 4-1 sobre o Rosario Central. O Taladro acabava de subir da segundona e escapou por dois pontos de voltar.

Se em 1948 os gols foram nulos, história bem diferente viria em 1949. Os alviverdes ficaram em décimo, mas Pizzuti foi a revelação do campeonato: artilheiro com 26 gols, vazando todos os cinco grandes (Boca, River, Independiente, San Lorenzo e o campeão Racing). Voltou a marcar sobre o quinteto em 1950, incluindo os três de um 3-0 sobre o San Lorenzo, além de dois em outro 3-0, no jogo em que o Racing foi (bi)campeão com essa água no chope. Desempenho que não tardou a alçar o meia-esquerda a um gigante: primeiramente, o River, em entressafra com o desmantelamento da equipe supercampeã nos anos 40, muito desfalcado com a debandada ao Eldorado Colombiano.

Em Núñez, não vingou. Pudera: seu concorrente na posição de meia-esquerda era ninguém menos que Ángel Labruna, o maior símbolo millonario. Em 1951, o Racing foi tricampeão seguido e foi nesse contexto que Pizzuti terminou repassado à equipe de Avellaneda para 1952. Quase a Academia conseguiu um tetra (algo ainda inédito para qualquer time no profissionalismo argentino), perdido para um ponto para o River. Mas o meia não contribuiu tanto. Era mais comum vê-lo no quadro de aspirantes. Em 1953, já foi artilheiro do campeonato, marcando até três vezes sobre o Independiente. 

Banfield, River e Boca viraram detalhes na trajetória de Pizzuti: à direita, seu gol no 4-3 fora de casa em 1959 no Independiente – ironicamente, o clube pelo qual torcia

Mas isso não significava tranquilidade. “Cheguei sem o amadurecimento necessário. Corria em todas as bolas, me desgastava inutilmente. Se (o volante Pedro) Dellacha pifava, as pessoas cismavam comigo e me botavam a culpa”. O desempenho caiu muito em 1954, mas Pizzuti era visto como uma joia, mesmo que não lapidada: foi emprestado ao Boca, que naquele 1954 havia quebrado seu mais longo jejum de títulos, dez anos. A única pendência da campanha: não ter vencido o River. Em 1955, El Tito foi bem nos xeneizes, que fizeram um primeiro turno arrasador, com direito a um 4-0 no River com gol do reforço – em jogo por sinal jogado no estádio do Racing.

Só que o rendimento caiu na reta final, com pilares afastados por lesões (casos de Eliseo Mouriño e José Borello, que teve a carreira praticamente encerrada). O Boca terminou só em terceiro e ainda viu o River garantir o título em pleno Superclásico na Bombonera. Pizzuti voltou a Avellaneda. Os gols não vinham no mesmo ritmo, pois agora eram tarefa de Pedro Manfredini: Pizzuti, agora na meia-direita, se dedicava a armar jogo para o goleador formidável mencionado em carta no filme O Segredo de seus Olhos. Mas deixava os seus golzinhos também, com 18 na campanha de 1958, quando o Racing voltou a ser campeão. Dentre as vitórias, um 4-1 no Independiente com gol do Tito.

Graças à campanha, o Racing, incluindo todo o seu quinteto ofensivo, foi base da seleção argentina que no início do ano seguinte ganhou a Copa América (só vencida de novo em 1991). Pizzuti enfim estreou na Albiceleste. Tinha 31 anos e dez meses, ainda sendo o sexto estreante mais velho. Estreou com dois gols em um 6-1 no Chile. Guardou seu outro gol no torneio para a rodada decisiva: contra o Brasil de Pelé, fez de peixinho o gol argentino no empate em 1-1, que deu o título aos hermanos, que contra os campeões mundiais desengasgavam um pouco a vergonhosa participação na Copa do Mundo da Suécia. Ao longo de 1959, o Racing foi vice com aquele veterano meia marcando 19, incluindo três em um 6-1 no Estudiantes e outro em um 4-3 fora de casa sobre o Independiente.

Assim, Pizzuti foi mantido na seleção para nova Copa América em 1959, esta realizada em dezembro no Equador. Fez outro gol na estreia, um 4-2 no Paraguai. Mas foi seu último. Os detentores do título passaram vergonha, levando uma de suas piores derrotas: 5-0 para o Uruguai, com Pizzuti expulso. Ainda assim, ele conseguiu voltar à seleção dois anos depois, quando já tinha 34 de idade. Foi no embalo de nova campanha campeã do Racing, em 1961, quando a Academia foi líder em simplesmente todas as 30 rodadas do torneio. “Negri no arco, Anido e Mesías, Blanco, Peano e Sacchi, Corbatta, Pizzuti, Mansilla, Sosa e Belén” era a escalação, também entoada em O Segredo dos Seus Olhos. Esse título, na época, fez do Racing o clube mais vezes campeão argentino, ao lado do Boca, incluindo amadorismo. “A melhor equipe que integrei”, segundo ele, foi a desse período 1958-61. 

O Racing que liderou TODAS as rodadas de 1961: Negri, Sacchi, Anido, Scardulla, Blanco e Mesías, Corbatta, Pizzuti, Mansilla, Sosa e Belén. Ao lado, “Tito” e Pelé

Em outubro e novembro daquele ano, vieram seus últimos jogos pela seleção: 5-1 no Paraguai e derrota no Monumental para a URSS por 2-1. Acabou não indo à Copa do Mundo do Chile, brigado com o Racing: era líder de um movimento dos jogadores que entendiam merecer direitos melhores diante de tantas glórias proporcionadas. Pizzuti terminou voltando ao Boca em 1962. Foi titular no início da campanha campeã que fez os xeneizes se isolarem novamente como maiores campeões argentinos, marcando dois gols – um deles em uma revanche pessoal contra os antigos cartolas, vencidos por 3-0. Ainda disputou um punhado de jogos até o fim de 1963 (não incluindo o vice na Libertadores).

Pendurando as chuteiras, não tardou a emendar nova carreira, inicialmente no Chacarita. Também não tardou a voltar ao Racing… o ex-clube estava bem mal ao fim do primeiro turno de 1965, com diversos técnicos passando: José García Pérez, Ernesto Gutiérrez e Remigio Irondo. A reação foi imediata. Logo no primeiro jogo sob Pizzuti, um 3-1 no River. O jogo seguinte foi perdido para o San Lorenzo, mas depois dele seriam 39 jogos seguidos de invencibilidade no campeonato argentino. Um recorde que só seria superado em 1999, pelo Boca de Carlos Bianchi (que acumulou uma partida a mais). A façanha embalou a conquista nacional de 1966. O Racing virava El Equipo de José, a equipe de José Pizzuti. Que tinha olho clínico para fuçar posições mais adequadas aos jogadores.

Foi Pizzuti quem criou a sólida dupla defensiva formada por Roberto Perfumo e Alfio Basile, outrora volantes. “Talvez tivesse jogado no Arsenal (de Sarandí)”, afirmaria Perfumo quando indagado se continuasse na antiga posição. “Os fullbacks se lesionaram e Pizzuti pôs Basile e a mim. Fomos um desastre contra o Ferro, os torcedores queriam nos matar. Disse a Pizzuti que a coisa não ia andar. O cara insistiu: ‘você vai jogar aí, vás à seleção e ao mundial’. Em dezembro, Zubeldía me chamou à seleção e não saí mais”. Tudo com muita mão de ferro de quem contratou pugilistas amadores para se disfarçarem de fotógrafos que garantissem a segurança racinguista na vitoriosa Libertadores de 1967.

Pizzuti era dos disciplinadores. Com a palavra, Perfumo: “ao lado de Pizzuti, (Daniel) Passarella é Madre Teresa. Deixas uma migalha de pão na mesa e tinhas que pagar uma multa de 50 dólares. Nos fazia ir de terno e gravata ao campo em 1966. E com o cabelo era tremendo, também. Esteve quatro anos ladrando, não cumprimentando. Mas é um fenômeno. Nunca nos concentrávamos, mas aos sábados te mandava um pesquisador. Um cara que passava às 6 da tarde na tua casa para que assinasses um papel de presença. Não havia maneira de burla-lo. Uma vez, El Panadero (Rubén Díaz) estava combinado com o pesquisador, mas ele o matou: mandou um pesquisador do pesquisador”.

Aos 34 anos na seleção (segundo agachado) antes do jogo contra a URSS em 1961. Ao centro, com Jock Stein, técnico do Celtic, contra quem comemora o Mundial Interclubes 1967 à direita

A história foi confirmada pelo brasileiro João Cardoso (que marcou na final da Libertadores) em entrevista ao Futebol Portenho: “uma vez um brasileiro que jogava no Newell’s, o Zuca (de quem Cardoso fora colega no clube rubronegro), foi jogar em La Plata. Eu estava concentrado em casa. O ônibus do Newell’s passaria a umas duas ou três quadras. Disse à minha mulher falar que se alguém do Racing chegasse, que o avisasse que saí rápido. Fiquei conversando uns cinco minutos com o Zuca. No dia seguinte, ao chegar no treino, fui multado porque não estava em casa. Falei que saí só para ver meu amigo, e o Pizzuti respondeu ‘sim, eu sei disso. Mas tu saíste de casa, não adianta'”.

O veterano Humberto Maschio, contratação de mestre de Pizzuti (atacante campeão da Copa América de 1957, voltou com passe livre da Fiorentina em 1966), era amigo de infância e trocava cartas com o técnico quando jogava no exterior, “mas ele me fazia pagar as multas como qualquer um”. Segundo Maschio, o segredo da Equipo de José era o condicionamento físico com metodologia alemã, permitindo até trocas de posições que os argentinos comparam às da Laranja Mecânica de 1974. “Pizzuti mudou as posições de vários. E todos os dias nos falava meia hora: de futebol, da vida, de tudo, menos dos rivais”. Enrique Wolff, posteriormente capitão da seleção na Copa de 1974 e jogador até do Real Madrid, fez sucesso como volante graças à Pizzuti, pois na base era goleador.

O Racing de Pizzuti ainda disputou as cabeças em 1968 (no triangular-final do Nacional, ganho pelo Vélez) e em 1969 (eliminado nos minutos finais da semifinal pelo campeão Chacarita), ano em que a era acabou. A seleção não havia se classificado à Copa do Mundo e Tito foi a solução óbvia. Foi de maior a menor, tal como jogador: estreou vencendo o Brasil de 1970 dentro do Beira-Rio, em março daquele ano. Foram dez vitórias, oito empates e cinco derrotas, sem convencer. Saiu ao fim da Taça Independência, em 1972, ainda antes das eliminatórias à Copa de 1974.

Pizzuti ainda passou por Nueva Chicago e Independiente Medellín, mas a carreira de técnico só mereceu notas ligadas ao Racing. Esteve ainda em outros ciclos na Academia: em 1974, em uma equipe que ficou a uma posição de classificar-se às fases finais do Metropolitano e do Nacional, mas que também foi derrotada de 4-1 e 5-1 (em casa) no Clásico de Avellaneda. E em 1983, como emergência em vão na campanha contra o rebaixamento, “garantido” ainda na penúltima rodada. O clube já era sinônimo de caos, chegando a dever-lhe cem mil reais à altura de 1998. Uma das últimas aparições públicas de José foi em outro momento triste: no Cilindro em tributo ao antigo pupilo Perfumo, morto ano passado. O nonagenário segue lúcido e ativo. “Sobe as escadas correndo”, afirmou Maschio em 2011 sobre os encontros dos demais remanescentes da Equipo dessa lenda.

Em um dos reencontros da Equipo de José e na homenagem a Perfumo, ano passado

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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