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Falece Luis Bonini, muito mais que o ex-assistente de Marcelo Bielsa na seleção

O noticiário em torno de Marcelo Bielsa ferve. Desautorizado pelo Lille, ainda assim viajou da França para reencontrar no Chile um moribundo Luis Bonini, grande amigo falecido hoje em decorrência de um câncer (que o pupilo Eduardo Berizzo tenha melhor sorte). Bonini havia sido seu auxiliar desde os tempos de Atlas (México) até o Athletic de Bilbao, passando pela seleção argentina na virada do milênio. Muito além disso, ele foi um nome seminal não só no futebol como no basquete argentino. Sobretudo, nos tempos de glória do sumido Ferro Carril Oeste, cujo sucesso poliesportivo nos anos 80 o fez ser premiado até pela Unesco.

Os anos 80 renderam os únicos títulos nacionais do futebol do FCO (em 1982 e em 1984, onde ganhou de 3-0 na final sobre o River de Francescoli no Monumental, com todos os gols nos primeiros 30 minutos), o suficiente para fazer ele superar por nove anos o título então solitário do rival Vélez, de 1968. Aliás, aquela foi a única década em que os verdolagas mais venceram do que perderam no chamado Clásico del Oeste, incluindo dois 4-0 na casa rival e o triunfo na semifinal nacional de 1981 – ano em que o time do bairro de Caballito foi o vice do Boca de Maradona no Torneio Metropolitano (por um mísero ponto) e do River de Kempes no Torneio Nacional. 

O desempenho no basquete, porém, foi ainda melhor, tendo até torcida organizada própria. Bem antes de revelar o astro Luis Scola (campeão olímpico em 2004 e cestinha da Copa do Mundo de 2010), foi três vezes campeão continental no baloncesto, em 1981, sobre o Tênis Clube de São José; 1982; e 1987, sobre o Monte Líbano. Um de seus jogadores nele, Sebastián Uranga, afirmou: “Nunca houve uma organização desportiva como o Ferro nos anos 80. Isto era sempre uma festa, inclusive até quando havia problemas”. O time foi , vice mundial em 1986 por míseros 6 pontos. “Ferro era o clube dos sonhos, em que todos queriam jogar”, assinalou outro membro do basquete verdolaga, Gabriel Darrás.

Em comum, o nome do preparador físico Luis Bonini, que esteve nos bastidores da criação da Liga Nacional de Basquete, em 1985 – até então, os torneios argentinos eram todos regionais, com o campeão portenho visto moralmente como o campeão argentino. Trinta anos depois, em dezembro de 2015, Bonini, campeão com Bielsa em 1998 no (heresia!) Vélez, teve monólogos publicados na revista El Gráfico. Eis alguns trechos, em tradução livre nossa, com pontuais observações em colchetes:

“Estudava ciências econômicas na Universidad del Sur. ‘Vou estar toda a minha vida em um escritório?’, me perguntei um dia enquanto repassava contabilidade de custos, matéria importante na carreira. Então, deixei economia. Meu velho queria me matar. Como estava relacionado ao basquete por joga-lo e ao rúgbi por meus amigos, decidi me inscrever para realizar o exame de ingresso no professorado de Educação Física, em Buenos Aires. De 400, entramos 90. É uma lembrança inesquecível”.

“O sentido amador do esporte. Esse é o maior ensinamento que levei do Ateneo. Nos anos 70, era um clube de elite e, mesmo assim, todos os esportes eram amadores, e podíamos competir. Esse sentido prolonguei depois com León Najnudel [técnico de basquete do Ferro e patrono da Liga Nacional], Carlos Timoteo Griguol [técnico do futebol do Ferro], Miguel Ángel López, Marcelo Bielsa e Miguel Ángel Russo [outros técnicos do futebol argentino]. Se o perder, o esporte seria muito entendiante, muito triste”.

“Optei pelo Ferro. O clube contratou León Najnudel para armar um projeto no basquete, e me disse se queria ir trabalhar junto dele. O Ateneo tinha problemas econômicos e estava deixando de ser um clube quase independente para transformar-se em um da cúria. Podia ir ao Obras Sanitarias [campeão mundial de 1983] ou ao Ferro. Optei por aprender. León Najnudel era um monstro, um livro aberto de basquete e da vida. Começamos uma relação profissional e terminamos com uma amizade. Que aportei a ele? Meus conhecimentos quanto a minha formação pedagógica, a minha metodologia para treinar. Foram quase cinco anos maravilhosos de trabalho junto a León”.

“A Liga nacional foi a maior mudança qualitativa que o esporte argentino teve. Agora, se pode agregar com o que sucede no rúgbi. Quando os argentinos nos organizamos competitivamente, somos potentes. Isso é tudo o contrário ao que acontece no futebol [rúgbi e basquete são justamente as modalidades em que representantes do interior argentino, com a nacionalização de um campeonato, souberam se impor mais acentuadamente sobre os times da Grande Buenos Aires].

De bigode, com os técnicos dos vitoriosos basquete (León Najnudel) e futebol (Carlos Griguol) do vitoriosíssimo Ferro Carril Oeste dos anos 80

“Carlos Timoteo Griguol foi como meu irmão mais velho. Apareceu em uma etapa de transição em minha vida, muito boêmia e de muita noite. Me ordenou e, profissionalmente, me deixou crescer muitíssimo. Sempre se manteve a favor da inovação. Nos anos 80, o Ferro foi a primeira equipe do país que começou a fazer medições antropométricas e fisiológicas de seus jogadores. O grande do Ferro é que o manteve durante seis anos. Desde o científico, era inédito. Isto, assim como também o desenvolvimento da força no futebol, Timoteo avalizava”.

“O melhor Griguol foi o dos anos 80. Foi fenomenal como o velho evoluía e fazer evoluir a equipe. o Ferro daquela época era maravilhoso; te pressionava em todo o campo. Se não houvessem minimizado o time de 1981 e de 1982, a seleção argentina teria ido um pouquinho melhor ao Mundial da Espanha. Porque encontrou uma Bélgica que fazia um jogo parecido ao do Ferro. Às vezes, desprezamos o que temos em casa devido a, justamente, ser de casa”.

“Timoteo pagou o preço pela luta que havia no jornalismo entre os que estavam a favor de Menotti [técnico campeão de 1978] ou de Bilardo [técnico campeão de 1986]. Griguol era pouco valorizado, e me deu muita bronca quando o começaram a considerar só aos 65 anos, quando dirigia o Gimnasia LP [foi vice nacional treinando os Schelotto em 1995 e 1996 e outra vez em 1998]”.

 “Marcelo Bielsa é muito mais inteligente do que louco. É cristalino e age como se sente. Por isso, o apelidaram de Louco. Quando trabalhou nos juvenis do Newell’s, não havia materiais e exigia aos jogadores que levassem um cabo de vassoura para usa-lo como estaca. Porque o clube não tinha nenhuma. Por isso tipo de questões, lhe colocaram o mote. Agora, Marcelo é brilhante, vive para desenvolver o futebol; um técnico obsessivo por atacar. Entende que o futebol se trata de danificar o rival em ofensiva e, para isso, trabalha muito a coordenação defensiva porque, se não, seria um tarado. Conheci bem perto como trabalham quase todos os técnicos do mundo. Não sei se Bielsa é o melhor, mas está entre os cinco melhores por sua capacidade de desenvolver-se e reinventar-se de maneira permanente. Jamais repetirá o que já fez. Todos os anos evolui e se questiona, o que lhe dá a possibilidade de crescer”.

“A honestidade intelectual é o que mais me surpreende de Marcelo. É um cara que não esconde anda. O que pretendo de um companheiro de viagem? Que seja honesto mesmo, comigo e com o grupo. Isso lhe valorizo.

“Na seleção argentina, tentei continuar a herança que Maradona deixou. Ou seja: que os jogadores entendessem que a única coisa importante é a seleção, que tivessem desespero por integra-la. Me preocupei, então, por alimentar essa chama. Porque vivi a época em que os jogadores não queriam ir à seleção”.

Com Diego Simeone na seleção. À esquerda, de rosto virado, aparece Eduardo Berizzo

 “A ferida do mundial de 2002 segue aberta, não cicatrizou. Tenho certeza de que acontece o mesmo com Marcelo. Me dá muita raiva a crítica desmedida que se fez, mas isso é muito do ambiente do futebol. Se analisa só para matar o da vez. Essa equipe jogou as eliminatórias de maneira fantástica. Eu desejo sair campeão cada vez que compito, mas alto lá: quero saber como vou conseguir. Está bem: nos eliminaram na primeira fase na Coreia-Japão, mas faz muito tempo que não vejo jogar uma seleção argentina como aquela. Os jogadores de boa fé lembrarão de partidas bárbaras dessa equipe, como contra a Itália em Roma [2-1 em fevereiro de 2001], como tantas outras. No Mundial, foi má sorte”.

“A medalha olímpica, a coroa e o ramo de flores são maravilhosos. Mas, sem falsa modéstia, o que mais valorizo desses Jogos Olímpicos de Atenas 2004 é o grupo. Ninguém se esquecerá do que vivemos na Vila Olímpica. Se me deixassem escolher, preferiria voltar aos Jogos Olímpicos do que a um Mundial, pelo que se respira no esportivo”.

“Quando Bielsa me disse que ia renunciar à Seleção [pouco após o ouro olímpico], me pediu que o acompanhasse na reunião com Julio Grondona e me perguntou minha opinião. ‘Sobre decisões pessoais do meu companheiro, não opino. Eu acompanho. Só devemos ter claro em mente ao que dizemos não’, lhe respondi. Porque nós deixamos de trabalhar na Espanha [após menos de dez jogos no Espanyol] para assumir a seleção. Então, que lhe quis dizer? Está bem, renunciemos. Mas saibamos que dizemos não à Seleção Argentina”.

“O Chile campeão da América herdou o protagonismo respeito do nosso. Não se meteu atrás, não jogou no erro do oponente, atacou sempre, e tentou ganhar por suas qualidades técnicas e táticas. De todos os modos, essa herança vem da mão dos jogadores, que muitos estiveram no nosso processo e outros, não”.

“Me dá vontade de chorar quando me falam de Bilbao. Ir ao Athletic foi como se tivesse voltado ao Ferro, porque regressei ao sentimento de amador. Em Bilbao, só jogam os nascidos no País Basco; e esse sentido de pertencimento faz competitiva a equipe. Ali jogam por um sentimento, à margem de que ganham muito dinheiro, como logicamente ocorre no futebol”.

“Se Marcelo me chamasse para que voltássemos a trabalhar juntos… olhe, aprendi que, no futebol, não se deve dizer nunca. ‘O futebol te leva onde quer e não onde queres ir’, me contava o preparador uruguaio Esteban Gesto, que é um craque. Então, se alguém gosta do futebol, tem que estar preparado para qualquer aventura”.

https://twitter.com/LaRoja/status/933715142520590342

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https://twitter.com/bambam9oficial/status/933718547976589312

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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