Primeira Divisão

Mesmo com Germán Cano no banco, há 15 anos o Lanús era pela 1ª vez campeão argentino

Publicado originalmente em 03-12-2017, um dia após o aniversário de 10 anos – e revisto, ampliado e atualizado

“Queimem os papéis. Queimem os livros. Queimem as estatísticas. Queimem tudo, porque a história é o hoje. É agora. Está acontecendo aqui, em La Bombonera, na frente dos olhos desses torcedores espremidos que dão braçadas ao céu, eufóricos, emocionados como jamais estiveram, e que mergulham em abraços imaginários com seus jogadores, esses leões ali abaixo, no gramado, começam o festejo elétrico que tanto haviam imaginado. São as 19h09 do domingo de 2 de dezembro e Sergio Pezzotta acaba de pedir a bola ao Chiquito Bossio. É o final. O Lanús é campeão. Varreu todos, envernizou seu sonho partida após partida, com entrega, com futebol fluido, com espírito de equipe. E acaba de transforma-lo em realidade. (…) O uivo dos torcedores e jogadores ressoa no céu aberto e claro, o aperta contra a estratosfera e o devolve amplificado na máxima potência. É um grito inédito. El Granate é campeão. O grande campeão do futebol argentino. E que equipe (…). Porque o Lanús não chegou a La Boca para empatar nem para ganhar tempo, e sim para referendar e sustentar a proposta que o caracterizou neste Apertura 2007. E o logrou mesclando intensidade e inteligência, já que soube manter a cabeça fria em momentos chave e também se esqueceu da frieza quando fazia falta o coração. Um mix letal para qualquer um”.

Assim começava o relato sensível da revista El Gráfico na edição especial que ela lançou sobre o primeiro título argentino do Lanús na primeira divisão. É preciso mesmo fazer esse complemento, pois as duas finais seguidas – e um título – de Copa Conmebol nos anos 90 contrastavam com as alegrias nacionais do Granate se resumirem às divisões de acesso: 2ª divisão de 1964, 1971, 1976, 1992 e a 3ª em 1981. Os grenás são justamente a única torcida que comemorou a elite argentina após já ter descido à terceirona. Venceram mesmo que o espaço a Germán Cano se resumisse ao banco de reservas, quando muito, embora a foto que abre essa matéria até o mostre com medalha de campeão e segurando a base do troféu. Dentre os membros daquela conquista histórica (ofuscada no Brasil pelo rebaixamento do Corinthians, no mesmo dia), três ainda seriam relevantes dez anos depois no elenco vice da Libertadores 2017: Lautaro Acosta, Maxi Velázquez e, sobretudo, José Pepe Sand, que no Apertura fez 15 gols em 16 partidas, incluindo naquele 2 de dezembro de 2007.

Os verdadeiros pilares do primeiro Lanús campeão argentino

O ressurgimento de um clube acostumado à segundona entre os anos 70 e 80 foi bastante pontuado ao longo daquela edição especial da El Gráfico, em especial em palavras do então presidente lanusense, Alejandro Marón: “esta equipe ficou na história e hoje há muita gente que deveria sair na foto do campeão, por isso não quero me esquecer deles, dos mais de 200 dirigentes que nestes 20 anos trabalharam para o clube e deixaram sua vida. Tudo começou em 1979, quando agarraram um Lanús quebrado, e se prolongou na militância de tantíssimos dirigentes que se foram formando, gente que está convencida de um projeto e o levou adiante. Houve gente que nos tirou do fundo e hoje nos calha a nós, por circunstâncias, estar à frente, mas sabemos bem que o grande mérito é dos jogadores e do corpo técnico. Nós tratamos de pôr as melhores condições de trabalho da linha de cal para fora para que o plantel possa fazer o que melhor sabe fazer. Isto é algo que sonhei toda a minha vida e não tenho dúvidas de que este título marcará uma virada na nossa história como instituição”.

Em 2 de dezembro de 2007, Sand carrega Acosta nas costas (sem trocadilho) e Velázquez abre a boca à direita: esse trio também estaria no time vice da Libertadores 2017

O artilheiro Pepe Sand, até então ainda visto como refugo do River, começava a se consagrar na carreira como um todo exatamente a partir daquele Apertura. E reconheceria o bom papel dos cartolas: “a decisão dos dirigentes de não desmantelar a equipe, para além das vendas de jogadores importantes nos últimos tempos, foi chave para seguir crescendo a chegar a este objetivo. Além disso, nunca tivemos um conflito de dinheiro e isto te permite estar concentrado só no teu trabalho”. E como ele conseguiu realmente se concentrar, para alguém que era o maior goleador da história das categorias de base do River para então custar a ter média de 0,3 gols por jogo na maior parte dos clubes que defendera como profissional, incluindo aí o Vitória no Brasil e até o principal rival lanusense, o Banfield. Já tinha 27 anos e chegara aos grenás para aquele campeonato. Para fazer 44% dos gols dos campeões, donos do melhor ataque do Apertura (média de 1,78 gols por jogo).

Apesar dos gols de Sand, quem na época foi visto como o nome mais diferenciado era o meia-direita Diego Valeri. El Conde destacava-se tanto por desempenhar-se bem em qualquer função do meio campo e pelos bons passes e arremates como também por mostrar-se fluente em alemão e nas obras de Nietzsche e Kafka, sendo assediado na época por Juventus e Atlético de Madrid – mas vindo a vingar no exterior somente nos EUA. Superava um período de um ano parado por rompimento nos ligamentos do joelho, para, sob a aposta do técnico Ramón Cabrero, ganhar espaço enfim naquele ano. Fez seis gols e terminou como vice-artilheiro do elenco.

Sem falsa modéstia, Velázquez, já com boa rodagem na carreira mesmo naquele momento (já estava no nono ano de profissional), classificou em 2016 (ano em que, além de um segundo título argentino com a equipe, já tinha no currículo também a Sul-Americana 2013, pontualmente sem a companhia de Sand, Acosta e Pelletieri) que o time de 2007 foi o melhor em que jogou: “nos últimos seis jogos desse Torneio Apertura, saíamos a campo e sabíamos que ganharíamos, pelo nosso futebol e nosso alto astral. Entrávamos e nos divertíamos”, afirmou o futuro recordista de partidas pelo clube. Não era exagero: nos cinco jogos finais, foram três vitórias, dois empates, 11 gols a favor e só três contra…

Na época, a grande estrela era Diego Valeri, observado pelo adversário Nicolás Bertolo e pelo técnico Ramón Cabrero

Ainda mais veterano que Maxi era Carlos Bossio, primeiro goleiro da seleção no ciclo de Daniel Passarella (1994-98), mesmo defendendo na época um time da segunda divisão (o Estudiantes). “Ver as pessoas mais velhas, sujeitos de 90 anos, chorando e abraçando a cada um que passava e lhes agradecendo. São essas imagens que te emocionam e te marcam. Incrível que me acontecesse isso nessa idade e no Lanús. Ficamos na história. Daqui a cem anos se seguirá lembrando”, exaltou o goleiro-capitão, titular da posição depois consagrada na conquista da Sul-Americana 2013 por Agustín Marchesín – ele próprio outro jogador sem minutos na campanha e ainda assim eufórico, com suas sobrancelhas arqueadas bem identificáveis à direita (logo ao lado de Germán Cano) na foto que abre essa matéria. É que El Chiquito Bossio foi justamente o único jogador a atuar em todos os 19 jogos, sempre como titular e nunca substituído; seu reserva imediato era o uruguaio Claudio Flores, que por ser o goleiro relacionado ao banco acabou aparecendo na estatística de campeões naquela El Gráfico especial. Cano, por também frequentar o banco em alguns jogos, figura nela também. Marchesín, então terceiro goleiro, não chegou a constar.

Dos demais nomes, destaque especial às seguintes promessas de um elenco cuja média de idade era de apenas 22 anos, e com 23 dos 32 componentes vindo das inferiores: o lateral Agustín Pelletieri, o outro único a estar presente também no título argentino seguinte, nove anos depois (junto de Sand, Velázquez e Acosta, mas dessa vez sem a mesma participação) e que até figurara na pré-convocação de Alfio Basile para a Copa América, embora não se confirmasse; e os meias Lautaro Acosta (por sua vez presente naquele ano no título mundial sub-20 da seleção argentina da categoria) e Sebastián Blanco, colegas de elenco desde os 9 anos e reunindo então onze anos de parceria, e cada um com dois gols, suficientes serem os terceiros na artilharia do elenco e despertarem suspiros: “nas semanas prévias à definição, saía para passear pelas ruas de Lanús e sentia a ansiedade e a tensão do povo como nunca antes. Caminhava por aí e o pessoal me dizia que não podiam dormir, que estavam como loucos”.

Se Acosta dispensa apresentações, Blanco seria por sua vez o regente da campanha quase campeã no Clausura 2009 – todos lembram de um torneio disputado por Vélez e Huracán e nem tanto que os grenás estiveram bem no páreo até a penúltima rodada. Blanco, ainda como jogador do clube, chegou a estar na lista de pré-convocados de Maradona para a Copa do Mundo de 2010 – ainda que, como Valeri, não tenha decolado como prometia (chegaram até a virarem colegas também no Portland Timbers). Por fim, duas curiosas nacionalidades na delegação: um brasileiro, Jadson Viera, que desenvolvera a carreira no futebol uruguaio; e um massagista importado do Turcomenistão (!!!!): Vasiliy Bogdanov, que chegou à Argentina nos anos 90, com passagem paga pelos agradecidos diretores de uma companhia energética local que eram argentinos e pais de crianças que Bogdanov salvara de uma tempestade de areia.

Estatística dos campeões: Germán Cano, por ter frequentado o banco em alguns jogos, foi considerado um deles, mesmo que não chegasse a entrar em campo. É o antepenúltimo na listagem

Bogdanov inicialmente empregou-se na Argentina como preparador físico de basquete, esporte ao qual se dedicava na terra natal, e nessa função havia chegado ao Granate. Em três anos, já era fluente em espanhol, repetindo com frequência “laburo” (trabalho), “quilombo” (confusão) e “viste?” para concluir suas frases, tudo segundo essa matéria da El Gráfico. Assim como ele, o técnico também era de outro continente: Ramón Cabrero nascera em Santander, mas, embora até voltasse à Espanha para defender um Atlético de Madrid “argentino” e fazer serviço militar obrigatório no regime de Francisco Franco, criou-se desde os 4 anos de idade na Grande Buenos Aires. E havia defendido o Lanús dos anos 60, no festejado elenco apelidado de Los Albañiles, “Os Pedreiros”, pelas paredes (como os argentinos chamam as jogadas de tabelas) que faziam.

Cabrero, que tinha até então como máximo logro de técnico subir o modesto Sportivo Italiano pela única vez à 1ª divisão, em 1986 (às custas do primeiro rebaixamento do tradicional Huracán), era dos mais emocionados: “isto é muito forte para mim. Com o que fizemos, já tenho minha carreira cumprida. Eu cheguei ao clube aos 10 anos, estreei como jogador, também como técnico, sempre vivi a 10 quadras do campo. Agora volto ao bairro e festejarei com os vizinhos”. Ele soube pinçar quem já mostrava capacidade na base, sobretudo do meio para a frente, e banca-los. Valeri seria muito grato e descreveu em detalhes o que aquilo representava: “ser campeão com o Lanús significa tudo. É algo muito importante, um sonho. Além disso, conseguir com o clube que me viu crescer e rodeado de amigos de infância é impagável. Isso é o mais importante de tudo. É muito difícil que uma equipe seja campeã com garotos que se conhecem desde os 10 ou 11 anos. Essa alegria e satisfação é única. Ademais, esse título tem o gostinho especial de que várias gerações de torcedores o estejam desfrutando”.

O treinador (falecido horas depois daquele épico Lanús 4-2 River pela Libertadores 2017, teria seu rosto como o retrato dos festejos dos dez anos daquele 2 de dezembro, desde 2007  tratado como “o dia do torcedor do Lanús”) também soube tranquilizar o grupo nos perrengues do semestre: “é um grande sujeito e um líder muito simples com uma grande virtude: desdramatiza tudo. Quando mais te doem as derrotas, mais tranquilo te deixa”, exaltaria Sand. “Nos disse que estávamos fazendo bem as coisas e que os resultados iam chegar. Não merecíamos perder com o Colón e tampouco levarmos um ponto com o Huracán. Então seguimos trabalhando da mesma maneira e pouco a pouco as coisas se foram dando”, destacaria o lateral-esquerdo Santiago Hoyos, um dos homens de experiência que o espanhol tratou de concentrar na retaguarda (setor para o qual Leonardo Sigali ainda era jovem demais, embora até atuasse oito vezes).

Três nacionalidades incomuns em um time campeão argentino: Jadson Vieira, do Brasil; o massagista Vasiliy Bogdanov, do Turcomenistão (!); e o técnico Ramón Cabrero, espanhol

Hoyos até tinha apenas 25 anos de idade, mas mais de 150 partidas na carreira, sabendo se sintonizar com os “tiozões” Bossio, Velázquez, Rodolfo Graieb e Walter Ribonetto – que até os 27 anos de idade jogava na várzea de sua cidadezinha cordobesa de Corral de Bustos até ser descoberto pelo ex-volante Carlos Aimar e levado aos grenás. Muitos desses veteranos chegavam a ser até mais velhos do que o braço-direito de Cabrero: em contraponto à tranquilidade e trato paternal do treinador, havia o jovem Luis Zubeldía, ex-jogador grená convertido em precoce assistente técnico – precisara encerrar cedo a carreira de jogador após a lesão incurável no joelho a qual lhe tirara do Mundial sub-20 de 2001 – antes de lançar-se em voo solo como treinador, o toque tático e de ambição por ganhar (“se complementam à perfeição”, elogiaria Pepe Sand).

A campanha até o 2 de dezembro de 2007

Aquele Lanús já havia aprontado um ano antes. Na rodada final do Apertura 2006, havia ganho em plena La Bombonera do então líder Boca, a quem o empate bastava para ser campeão, mas que acabou precisando jogar uma partida extra com o Estudiantes (na qual perderia de virada um torneio que parecia ganho). E seria na própria Bombonera que, em 2 de dezembro de 2007, os grenás garantiriam seu próprio título. Algo que parecia improvável no início: o time não venceu nas três rodadas iniciais. Na estreia, na cancha do Racing, alugada por um Independiente que ainda construía o atual estádio Libertadores de América, o futuro campeão perdeu de 5-3 para time do artilheiro do torneio, Germán Denis – autor de notáveis 18 gols em 19 rodadas e curiosamente integrante do Lanús vice da Libertadores 2017, embora formado precisamente em um rival tradicional dos grenás, o Talleres da cidade vizinha de Remedios de Escalada.

Por outro lado, aquele revés em 4 de agosto, além de mostrar um poder de fogo que resultaria no melhor ataque do torneio, foi sucedido inicialmente por um 2-0 no Estudiantes pela Sul-Americana, no dia 8, jogo que viraria histórico por render o primeiro gol grená da carreira de Sand. O problema foi que no dia 12 o futuro campeão argentino patinou em casa pela 2ª rodada, no 1-1 com o recém-ascendido Huracán do goleiro Marcelo Barovero e do treinador Antonio Mohamed; e, no dia 18, e perdeu de virada por 2-1 para o Colón do treinador Leonardo Astrada, na partida do primeiro gol de Sand no Apertura – de pênalti. O veterano Bossio era o principal bode expiatório naquela má fase e precisou aguentar muito. Na quarta rodada, em 25 de agosto, enfim uma vitória no Apertura, mas sofrida. Foi em casa, e derivada de um gol contra do Olimpo aos 43 minutos do segundo tempo matando o veterano goleiro Carlos Navarro Montoya.

Sand, ele próprio ex-jogador do rival Banfield, comemora no clássico: resultado decisivo adiante para o Lanús ser campeão e o vizinho ficar ofuscado em 3º

Quem fazia um bom torneio era justo o rival Banfield. O Clásico del Sur nunca foi tão forte como naquele período entre 2007 e 2009, em que ambos conseguiram seus primeiros títulos. A conquista lanusense de 2007 terminou ofuscado o ótimo torneio banfileño, onde os vizinhos terminaram com o bronze. Os alviverdes, após derrota na estreia de 3-0 para o Estudiantes, engataram três vitórias seguidas (1-0 fora de casa no Racing, 1-0 no Vélez e notáveis 4-0 fora no Arsenal, que naquele semestre venceria a Sul-Americana), mas no compromisso seguinte, a quinta rodada, caíram em casa no dérbi. Foi de virada – e ainda serviu para encerrar onze anos sem vencer fora de casa o principal rival: de pênalti, o goleiro Christian Lucchetti (um Rogério Ceni argentino) abriu o marcador, mas Sand fez valer a lei do ex, anotando ainda no primeiro tempo os dois gols da virada, em 28 de agosto.

Não se sabia, mas foi o ponto de inflexão da temporada: o Lanús, de um só ponto somado nas três primeiras rodadas, só perderia mais uma vez (“o clássico nos deu tranquilidade. A partir daí, começamos a levantar”, reconheceria Valeri à El Gráfico pós-título). E terminou o campeonato com seis pontos de diferença para o vizinho: na fria matemática, uma derrota ali teria feito ambos terminaram empatados na liderança com 35 pontos. Em vez disso, o Lanús acumulou 38 enquanto seu vice foi outro nanico surpreendente, o Tigre, com 34. Após vencer o clássico, o Lanús realmente ganhou do Gimnasia de Jujuy (2-0) em 1º de setembro, eliminou o Estudiantes na Sul-Americana mesmo perdendo de 2-1 no dia 5, empatou fora de casa com o Newell’s (0-0) no dia 8 e teve no dia 12 um maluco 4-3 sobre o San Lorenzo: nos dez minutos finais do primeiro tempo, abriu 3-0, com Sand, Valeri e Acosta. Depois, chegou a estar vencendo por 4-1 no segundo, mas os azulgranas, campeões do campeonato anterior, assustaram encostando no placar marcando duas vezes nos últimos quinze minutos.

Segundo Valeri, foi ali que ele realmente passou a acreditar em algo grande: “fizemos três gols no primeiro tempo ao campeão. Aí me imaginei que podíamos dar briga. Depois me enganchei quando via que em casa ganhávamos quase todas as partidas. A princípio, o Independiente mandou sozinho, parecia inalcançável, até que caiu. E o Boca tampouco pôde abrir vantagens decisivas. Essas situações nos favoreceram”. Depois dessa montanha russa, veio a última derrota no Apertura, em 16 de setembro, no 3-1 no Monumental para um River que viu o técnico Daniel Passarella mesclar no ataque o veterano Ariel Ortega com os jovens Fernando Belluschi (autor de dois gols), Alexis Sánchez (outro) e Marco Ruben. Sand fez novamente valer a lei do ex, marcando o gol de honra e pedindo silêncio às vaias que ouvia desde que pisara em campo. Nascia de vez a relação de ódio com os millonarios, a ganhar um capítulo especial dez anos depois, naquela épica semifinal em 4-2 que os clubes travaram na Libertadores 2017.

Sand no maluco 4-3 no San Lorenzo, o campeão argentino anterior

Aquela derrota para o River, ainda pela 9ª rodada, não foi lá um balde de água fria: apesar da declaração acima de Valeri, a pretensão geral em La Fortaleza era por uma vaga na Sul-Americana 2008, pois o Independiente estava simplesmente sete pontos à frente. O Granate inclusive vinha bem na edição 2007 do torneio continental secundário; após já ter eliminado o Estudiantes, sacudiu a poeira daquela derrota para o River vencendo três dias depois por um interessante 2-0 o Vasco, no jogo de ida das oitavas-de-final. Em 23 de setembro, uma formação quase reserva do Lanús então voltou a vencer o Estudiantes, agora pelo Apertura, mesmo jogando com um a menos – e com o gol da vitória mínima saindo já aos 47 minutos do segundo tempo, em jornada iluminada do peruano Roberto Jiménez, vindo dos fundos do San Lorenzo recém-campeão do Clausura; os titulares estavam poupados para o Rio de Janeiro, para o jogo de volta contra os cruzmaltinos.

E em São Januário viveu-se então a grande decepção do semestre: em 26 de setembro, o 2-0 construído uma semana antes contra o Vasco virou pó nos quinze minutos finais na Colina. Os cariocas venciam por apenas 1-0, de Leandro Amaral, e, mesmo que Romário não chegasse a ser usado por Celso Roth, puderam naquela reta final anotar mais dois gols, com Wagner Diniz aos 30 e novamente Leandro Amaral já aos 45, para avançarem diretamente com o épico 3-0. Foram dias difíceis especialmente par Bossio e Graieb, que falharam no último gol. As quartas-de-final continentais que tanto estavam no horizonte vinham sendo declaradas pelo sereno técnico Ramón Cabrero como o grande foco até então em La Fortaleza. A cruel desclassificação fez o plantel jurar fazer o impossível para terminar honrosamente no Apertura – mesmo que não necessariamente com o troféu, relembraria Pelletieri à El Gráfico pós-título.

O cansaço físico e mental foi visível no compromisso seguinte, em 30 de setembro – 1-1 na visita ao Racing do veterano Claudio López, com Sand empatando nos vinte minutos finais. Mas a partir dali veio a melhor sequência de resultados dos grenás, ainda que por placares magros: o 2-1 no Vélez (segurando um resultado aberto nos primeiros 15 minutos, com dois gols do onipresente Sand sobre o time do técnico Ricardo La Volpe) em 3 de outubro e 1-0 fora no Arsenal (segurando o resultado aberto aos 8 minutos, de novo por Sand…) em 7 de outubro já bastavam para deixar o Lanús a um só pontinho de um Independiente em queda. Após pausa no Apertura pelas eliminatórias da Copa do Mundo de 2010, veio em 19 de outubro um 2-0 no San Martín de San Juan que enfim colocou o Grana na liderança pela primeira vez, porque o Independiente levava de 2-1 do San Lorenzo.

Hoyos ganhando de Juan Mercier contra o Argentinos Jrs, na antepenúltima rodada

O campeonato foi novamente interrompido, agora pelas eleições presidenciais que viriam ainda no primeiro turno a trocar o kirchnerismo de Néstor pelo da esposa Cristina. A pausa só aumentou as expectativas pelo jogo seguinte do líder: é que em 4 de novembro o Lanús receberia justamente sua nova escolta, o ascendente Tigre, que vinha dois pontos abaixo para uma verdadeira final antecipada com quatro rodadas em aberto. E ela foi difícil: os rubroazuis empataram perto do fim do primeiro tempo o placar aberto por Sand. Mas um operário feito Matías Fritzler (normalmente carregador de piano no meio-campo, em dupla quase siamesa com Pelletieri) pôde ser o elemento surpresa que assegurou o importante triunfo, já aos 15 do segundo tempo. Com a confiança em alta, veio a grande exibição do campeão, em 9 de novembro: um 4-1 no Rosario Central. Dentro do Gigante de Arrroyito…

Blanco, Ribonetto, Sand e Valeri (esses, de forma relâmpago aos 32 e 34 do segundo tempo) anotaram os gols visitantes. Um pouco de água fria veio na rodada seguinte, ao não sair-se de 0-0 em casa com o Argentinos Jrs em 25 de novembro, especialmente porque outro concorrente, o Boca, havia perdido para o Arsenal; uma vitória faria o Granate abrir cinco pontos de vantagem para o Tigre, com apenas duas rodadas a mais – ou seis pontos – em disputa. Especialmente porque o Lanús deveria pegar como penúltimo compromisso um Boca ainda com chances, em 2 de dezembro, e depois o Gimnasia LP, uma semana depois. Àquela altura, a plateia já tinha um nome ilustre dos grenás consigo: o zagueirão José Ramos Delgado, remanescente da equipe vice-campeão 51 anos antes, em 1956, que chegara a ser apelidada até de Los Globetrotters.

Mais conhecido no Brasil como posterior ídolo dos anos finais do Santos de Pelé, Ramos Delgado faleceria pelo Alzheimer quase que três anos exatos depois (em 3 de dezembro de 2010) do tardio título do clube que o formara – mas El Negro ainda tinha naquele fim de 2007 memória e lucidez para opinar com propriedade na edição pós-título da El Gráfico: “os jogadores desse plantel não foram Globetrotters, mas jogaram muito bem. Creio que a maior virtude foi não se desesperar nunca, tratar de jogar sempre, e por sobre todas as coisas, se mover igual em qualquer campo e contra qualquer rival. Tocar de primeira e criar muitas jogadas com bola parada ou em movimento é um rasgo distintivo de ontem e de hoje. Fui assistir as últimas partidas, porque me empurrou meu sobrinho, que é fanático. E fiquei contente de ver a volta olímpica de um grupo de jogadores que praticou um futebol que me agrada”.

Valeri comemorando seu gol no 4-0 no Gimnasia LP, penúltimo compromisso do campeão

Acabou que os dois compromissos finais terminaram invertidos, o que muito ajudaria ao Grana: o Arsenal do jovem Papu Gómez e do treinador Gustavo Alfaro, que decidiriam a Sul-Americana no dia 5 de dezembro, pediu o adiamento de sua partida contra o Gimnasia. Ela seria no dia 2 de dezembro e passou para o ano de 2008 mesmo. Nem Arsenal nem Gimnasia disputavam nada, mas a AFA resolveu no pacote alterar também os jogos de quem tinha chance de título: os compromissos de Lanús e Tigre na última rodada foram antecipados para 28 de novembro. E o Tigre não se descuidou: em casa, arrancou uma virada por 2-1 sobre o Boca, com dois gols nos quinze minutos finais, o que serviu para tirar de vez do páreo o gigante azul y oro. E o Granate encantou de novo: 4-0 no Gimnasia do treinador Julio César Falcioni, com dois de Sand, um de Valeri e outro de Nelson Benítez.

Três pontos separavam vice e líder. O Tigre visitaria o Argentinos Jrs precisando vencer e torcer para o Lanús perder diante do Boca; assim, seria necessário um jogo-desempate, já pré-agendado para apenas 48 horas depois, em 4 de dezembro (dá-lhe AFA!). Treinado por um Néstor Gorosito prestes a virar filho pródigo, o Tigre havia acabado de voltar da segundona após décadas, mas não conseguiu o feito incrível de um título imediato na elite (e até hoje jamais foi campeão nela). Faltou fazer a própria parte, derrotado por 1-0. Pois o Lanús, por sua vez, de fato não venceu em La Bombonera, em ambiente hostil mesmo que o time da casa já não tivesse chances de título – havia, ainda assim, uma questão de honra que fazia La 12 vociferar que “dento de La Boca não podes ser campeão”, em referência ao grupo seleto dos times que puderam dar volta olímpica na caixa de bombons – somente os gigantes River (1942 e 1955) e Racing (1949) e o Newell’s de Marcelo Bielsa (1991) tinham tal feito.

Concluímos a história com novas sensíveis palavras da El Gráfico, com trechos da análise pós-jogo final e providenciais colchetes nossos:

Sonho feito realidade

O Lanús mantinha a calma e tratava de acomodar as fichas no campo, já que parecia que a equipe só podia ir pela esquerda, com a sociedade de Velázquez, Fritzler e Valeri, mais a eventual inclinação de Sand até essa zona, que se bem até perdia contra [Matías] Silvestre, deixava loucos todos os defensores do Boca com sua mobilidade e pressão permanente. Aos 23, chegou uma jogada que poderia mudar a partida: Ribonetto se resvalou contra Carlos Bueno, o uruguaio escapou e ficou mano a mano com Bossio, que havia saído para fechar no ponto do penal, mas incrivelmente definiu por cima. Imediatamente, o Lanús demonstrou que a passividade não o ia consumir: escanteio de [Juan] Krupoviesa, rechaço de um defensor e jogada elétrica dos baixinhos: Seba Blanco – arrancou em volume baixo e terminou ao taco – habilitou com um toque preciso Lautaro Acosta, que levou [Gabriel] Paletta em velocidade mas foi surpreendido por [Fabián] Vargas, no último gancho, quando se lambia com o golaço. Mas o importante é que a conexão dos baixinhos funcionava, e ia ser fundamental no resto da partida.

A dupla siamesa de volantes carregadores de piano: Pelletieri contra Ledesma, Fritzler contra Palermo

Um par de minutos depois, uma lesão de [Pablo] Ledesma provocou uma interrupção necessária para escorar alguns conceitos. E o Lanús terminou de se acomodar de tudo. Hoyos devorou Bueno e o obrigou a ir cada vez mais longe da área; Graieb começou a abrir sua lateral sem arrebentar nenhuma; Valeri, Sand e Acosta carregavam o Boca de faltas próximas de sua área; e um fechamento providencial de [Jonathan] Maidana, após um transborde de Acosta, provocou avalanches no mais alto e ilusões no mais baixo. Os de Miguel Russo [então treinador do Boca e ironicamente torcedor lanusense confesso, tendo treinado o time campeão da segundona no início dos anos 90] tentaram reagir empurrando algumas jogadas ríspidas, mas por esse então o Lanús já demonstrava que tinha respostas anímicas e temperamento nos corações para não se deixar envolver por ninguém, com Fritzler se erigindo em um gigante e Pelletieri limpando todas as saídas e cansando-se de dar indicações.

Aos 37 dessa etapa, outro transborde de Acosta sobre a direita terminou em um cruzamento fechadíssimo que [Mauricio] Caranta teve que mandar a escanteio para que não entrasse. Desse escanteio, executando magistralmente por Valeri, chegou o cabeceio de Sand que venceu a resistência do goleiro – sem boné, com o sol da tarde de frente e se cravou no fundo da rede. Festejo enlouquecido do Pepe, caudilho do gol e ícone das ganas da equipe. O “olê olê olê Pepé Pepé” foi impressionante em muitos sentidos: descartado por muitos técnicos, chegou ao Lanús em silêncio e devendo sobrecarregar uma dura tragédia pessoal, e demonstrou que é um atacante de primeiro nível internacional, cada dia mais inteligente. Não só terminou com 15 conquistas, cinco das quais chegaram nas últimas cinco partidas, como que além disso lutou contra todos os defensores, abrindo-lhes espaços aos velozinhos, e ainda assim engenhou para poder ficar sempre de frente em quase todas as jogadas.

No segundo tempo, o Boca (seu meio-campo tinha quatro jogadores de marcação e nem sequer estavam Ibarra ou Morel para clarificar as saídas desde os laterais) teve uma reviravolta com a entrada de [Leandro] Gracián. Bueno somou dois gols mais perdidos com grande reação de Bossio: no primeiro, uma bola chovida na área na que se deu conta de que não ia chegar a estrangular Bueno, intuiu um cabeceio do uruguaio e retrocedeu rapidamente à linha para cobrir o arco (a bola se foi a qualquer parte); e no segundo, em outra saída rápida e de frente, o atacante quis picar por cima, mas Chiquito, no ponto do penal, foi maior do que nunca e a pinçou a três metros de altura.

A taça nas mãos de dois dos veteranos: Graieb e o goleiro Bossio – ao lado dele, outro registro de Cano (com medalha e tudo, mesmo sem jogar no torneio) na festa

Mas o pessoal do Lanús já festejava de outra forma. Os números da tranquilidade definitiva? O 6, o 32 e o 47. Essa era a hora, os minutos e os segundos que marcava o relógio quando o Argentinos meteu o gol no Tigre, e terminou de sepultar qualquer resolução surpreendente de um torneio que na realidade tinha dono desde há muito. Foi o segundo gol que se gritou em La Bombonera. Houve tempo para um terceiro, o de [Martín] Palermo, que com o ingresso de [Mauro] Boselli encontrou o balanço para não ser devorado em todas as jogadas por Ribonetto e Hoyos. O 1-1 chegou quando faltavam 23 minutos, mas a expulsão de Vargas, dois minutos depois, não modificou os cenários. O Lanús jogou ao modo campeão, jamais perdeu a ordem nem a solidez, e pôde ter ganho nos últimos cinco, se não fossem pelas monumentais tapadas de Caranta ante Sand e Blanco. A essa altura, Fritzler já parecia Matthäus na Copa 1990, cortando e tocando. E a última letra que faltava ao campeão terminava de se escrever. Foi o campeão do sentido comum, preceito que vem pregado desde a direção, que faz eco nos jogadores e que encontra seu modulador ideal no condutor do grupo, Cabrero, que transmite e contagia a tranquilidade.

Uma equipe que soube lançar mão de suas divisões inferiores e que não foi desmantelada violentamente após as boas campanhas, e sim demonstrou saber suprir alguns dos bons jogadores que partiram – Gioda, Romero, Archubi, Leto, Fabbiani – como parte de um plano integral e muito bem pensado e executado.

Desde o presidente Marón até muitos dos torcedores que ontem compraram as bandeiras que diziam “campeão 07” (os vendedores não haviam tido tempo de fazê-las antes da partida com o Gimnasia), são muitos os que promovem esta equipe do Lanús como a melhor de toda a sua história. Talvez seja verdade. A solidez de Bossio, cultor do bom humor junto a Graieb e chave dentro do grupo; a solvência do próprio Graieb, as projeções de Velázquez – jogou lesionado nas últimas partidas -, a segurança da dupla Ribonetto-Hoyos; a hierarquia e o toque de Valeri, o melhor jogador do campeonato; o duplo rol de Pelletieri, o limpador de para-brisas do meio, e Fritzler, de um ir e vir mais vertical; a eletricidade de Sebastián Blanco – um talento incrível – e Lautaro Acosta; o espírito e domínio na área de Sand; as mudanças justas de Cabrero, as jogadas preparadas por Zubeldía, a solidariedade do grupo, a inserção de mais e mais garotos das inferiores que respondem… são estes e muitos mais os motivos pelos que esta equipe ficará na recordação, e sim, talvez seja o melhor Lanús de toda a sua história.

Porque a história está aqui, em La Bombonera, nesses buquês de jogadores que ainda se redemoinham ao redor de uma taça brilhante. Brilhante como o futuro do Lanús.

O Lanús é campeão. A história está aqui, e está apenas começando.

Apito final: fotógrafos tratam de captar a emoção do técnico Ramón Cabrero, um espanhol filho da casa

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Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

6 thoughts on “Mesmo com Germán Cano no banco, há 15 anos o Lanús era pela 1ª vez campeão argentino

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