Especiais

Dez anos “daquela final” entre o Huracán e Vélez: promessas, granizo, drama e polêmicas

Moralez prestes a tirar a camisa (e ser expulso por isso) após o gol, Domínguez se virando para reclamar ao árbitro, Toranzo e Bolatti em choque: o drama de um título definido nos minutos finais

“Meu velho era muito torcedor do Vélez e vivi a situação sonhada por ele. Eu sei que meu velho sempre esteve aí durante o campeonato, eu percebia sua presença; nas situações-limite, quando me complicava o jogo, sei que ele estava e me dava tranquilidade, senti a cada instante sua presença. Tinha 13 anos e fomos ao campo, de mandante íamos sempre e de visitante uma vez ou outra. (…) Lembro que o Huracán não tinha nada a perder essa tarde e que o Vélez antecipou o festejo do campeonato, já tinha toda a festa pronta. Isso é complicado. E não me esqueço mais de como as pessoas rompiam os carnês de sócios. É uma imagem muito forte”.

A declaração acima foi feita em 2009 por Ricardo Gareca. Sem imaginar os feitos que acumularia na seleção peruana, desfrutava em parte outra conquista: haviam se passado alguns meses do título do Clausura treinando o time do coração, o Vélez, definido em 5 de julho de 2009. Mas estava pessimista: sua declaração “sou campeão e não sei se continuo até o fim do ano” acabou nomeando a matéria. Não só ficou como durou até 2013, ganhando outros três títulos sem que o Fortín voltasse a ser campeão desde que El Tigre, o técnico mais vitorioso abaixo de Carlos Bianchi no clube, saiu. Nenhum troféu se comparou ao primeiro, pois ela também cicatrizou algumas feridas: como jogador, Gareca passou pelo clube no fim da carreira e teve bons momentos, mas não conseguira taças. E deixou-o justamente no semestre em que o Fortín passou a ser uma máquina de títulos, em 1993.

Outra ferida durava desde 1971: então time de expressão restrita a seu bairro de Liniers, o líder Vélez, campeão pela primeira vez em 1968, tinha tudo para faturar seu segundo título argentino. Na última rodada, pegaria em casa um irregular Huracán. E abriu o placar no primeiro minuto. Só que o improvável aconteceu para o então goleador Carlos Bianchi (autor de 41 gols naquele ano) e colegas. O Huracán virou o jogo, em grande desempenho de Narciso Doval, emprestado pelo Flamengo. Paralelamente, o segundo colocado Independiente venceu o seu e foi campeão. O vídeo abaixo mostra bem o desespero dos velezanos; era a esse trauma que Gareca se referia na declaração que abre a matéria. A ascensão teria de esperar mais de vinte anos, com a segunda taça só vindo mesmo em 1993, com Bianchi já de técnico.

Depois, os títulos não pararam: hoje são dez nacionais, uma Libertadores, uma Supercopa, uma Recopa e uma Intercontinental, tornando-o mais do que postulante a “sexto grande”. Posto que era justo do Huracán, em história que remonta décadas. Oficialmente, a AFA considerou nos anos 30 que grandes eram Boca, River, Racing, Independiente e San Lorenzo. Quem mais se aproximava de ser um sexto era o Huracán, pelos numerosos títulos no amadorismo e que vez ou outra ameaçava brigar por mais. Por muito tempo ele foi visto mesmo como sexto grande, mas o jejum de 45 anos entre 1928 e 1973 atrapalhou, assim como títulos de “pequenos” cada vez mais atrevidos. O Huracán, como um nobre decadente que não se adaptou à modernidade, se especializou em viver do passado.

Pequenos trocos não faltaram ao Vélez. Em 1998, o time, na última conquista da carreira de Marcelo Bielsa no futebol adulto, chegou a seu quinto título (mesma quantidade arrecadada pelo Huracán até hoje) vencendo justamente o estraga-prazer de 1971. Um ano depois, empatou fora de casa e praticamente condenou-lhe ao rebaixamento, o segundo da história huracanense; nenhum grande caiu duas vezes na Argentina até hoje. Mas nenhum foi tão cruel como aquele de dez anos atrás. Diferentemente de 1998, aquele ex-rico vinha reaprendendo a ganhar. E não só ganhava como encantava.

Mas o campeonato não se disputou só entre o velho e o moço. O Lanús, emergente do novo século, também esteve no páreo na maior parte, já embalado pelo eterno artilheiro José Sand (que chegou a marcar quatro gols em um 5-1 no Independiente), a talentosa dupla de armadores formada por Diego Valeri e Sebastián Blanco (inserido por Maradona na pré-lista de convocados à Copa 2010), alguns gols de Eduardo Salvio e o último brasileiro de sucesso na Argentina, Jadson Vieira. Campeão argentino pela primeira vez dois anos antes, o Granate foi o líder do trio da 4ª à 8ª das 19 rodadas e a retomou entre a 14ª e a 16ª. Porém, se atrapalhou na reta final. Levou de 4-1 do San Lorenzo na antepenúltima rodada, sendo ultrapassado pelos outros dois. E já na rodada seguinte o outrora líder deu adeus às chances de título ao empatar em casa um confronto direto com o Vélez.

La V Azulada chegara a ser líder da 9ª à 13ª rodada e tinha no seu forte a boa regularidade: raramente tropeçava, perdendo uma única vez: um 3-1 fora de casa para o Gimnasia LP exatamente na 14ª rodada, quando perdeu a liderança para o Lanús. Só que os comandados de Gareca empatavam demais: foram sete igualdades. Venceram 11, uma a menos que Huracán e Lanús, por exemplo. O Globo, por sua vez, começou com tudo, com duas vitórias seguidas, com a segunda sendo um 4-1 fora de casa no Racing (dois gols de Matías Defederico). Só que naquele início de campeonato, cambaleou: perdeu duas seguidas após a goleada e perdeu as três entre a 7ª e a 9ª rodada. Àquela altura, ficou a 6 pontos do líder Vélez e a 5 do Lanús. Foi então que os comandados do técnico Ángel Cappa embalaram. Da 10ª à 18ª e penúltima rodada, os Ángeles de Cappa só não venceram uma, em empate fora de casa com o Estudiantes em 1-1 – ironicamente, sofreram gol de Christian Cellay, cria e torcedor do Huracán.

Essa série de vitórias incluiu um 4-1 no Argentinos Jrs, um 1-0 fora de casa no Tigre (vice-campeão no saldo de gols do torneio anterior), 3-2 no Godoy Cruz, 4-0 no River, 2-1 no Rosario Central fora de casa, 2-1 no Banfield, 1-0 no clássico com o San Lorenzo fora de casa e 3-0 no Arsenal. O 3-0 no Arsenal na penúltima rodada aliado ao empate entre Vélez e Lanús repôs o Huracán na liderança que abandonara após a 3ª rodada. Os gols foram marcados por alguns dos destaques daquele belo elenco: Mario Bolatti, Patricio Toranzo (que marcaram também nos 2-1 no Banfield) e Matías Defederico. Todos eles puderam estrear pela seleção argentina ainda como quemeros, no embalo do estilo tik-tik. Bolatti, inclusive, fez o gol que encerrou jejum de décadas contra o Uruguai no Centenário e garantiu a Argentina na Copa de 2010.

Pastore, Blanco e Moralez celebrados como os armadores do trio que ficou no pódio do Clausura. À direita, Pastore celebra seu primeiro gol no 4-0 do “tik-tik” sobre o River

O Huracán não era representado na Albiceleste desde antes dos rebaixamentos de 1998 e 2003 e sua torcida de repente via também nos meses seguintes a estreia do bom zagueiro Paolo Goltz pela seleção. Ele fez o da vitória sobre o San Lorenzo, que não perdia o clássico desde 2001 – isso porque só usara reservas naquela ocasião, por estar paralelamente focado na final da Copa Mercosul com o Flamengo. E a derrota azulgrana anterior à de 2001 como mandante havia sido em 1991. Bolatti e Toranzo marcaram também nos 4-1 sobre o Argentinos Jrs e Goltz e Defederico fizeram os seus no 3-2 sobre o Godoy Cruz. Mas a grande revelação era Javier Pastore. Fez os dois gols da vitória sobre o Central em Rosario e outros dois no impiedoso 4-0 no River: um cruzado de fora da área e outro tocando na saída do goleiro após receber de Defederico e driblar de caneta Nicolás Sánchez.

El Flaco também deu o passe para o gol do estreante Medina após triangulação com Toranzo, que marcou o último ao emendar de fora da área um rebote. Pastore, que só estrearia pela Argentina já como jogador do Palermo, em 2010, ainda deixou outros dois gols em um 3-0 no concorrente Lanús, ainda no início do campeonato; e outro naqueles 4-1 no Racing. Mas o que marcou foi mesmo os 4-0 sobre Radamel Falcao García e colegas, que tiveram a misericórdia do árbitro Sergio Pezzota: o juiz encerrou o massacre antes dos 45 minutos regulamentares. Se já não era huracanense quando apareceu na seleção, Pastore encerrou um “jejum” de quinze anos sem que algum jogador do clube aparece na capa de uma edição regular da principal revista argentina, a El Gráfico, juntamente com os armadores do trio principal do Clausura: o lanusense Blanco e o velezano Moralez.

Por acaso, a última rodada opôs os dois times com chances de título. O Vélez vencera os quatro jogos anteriores àquele empate com o Lanús na rodada anterior. Mas a série impressionante do Huracán o credenciava como favorito. Especialmente porque não perdia havia onze jogos, a única hipótese em que perderia a taça. E porque, no semestre anterior, ganhara do mesmo Vélez por 3-0 (um de Defederico, um de César González e, claro, um de Pastore). Tinha o melhor ataque, com 35 gols. Só que, além do fator casa e ter mais fogo sagrado em decisões, o Vélez tinha a melhor defesa, com 13. A revelação nesse sentido foi Nicolás Otamendi, que acompanharia Bolatti e Pastore na Copa de 2010.

O Vélez só venceu uma vez por mais de dois gols de diferença naquele torneio, um 4-0 no Godoy Cruz com dois de Maxi Moralez e um de Joaquín Larrivey, justamente os protagonistas velezanos daquela épica tarde de 5 de julho de 2009. Mas também teve seus episódios de destaque, como quando virou para 4-2 um jogo que perdia fora de casa por 2-0 para o Colón (gols do futuro palmeirense Jonathan Cristaldo, dois de Hernán López e outro do futuro corintiano Juan Manuel Martínez); ou quando, também perdendo por 2-0, soube empatar com o Racing (gols de outro ex-Corinthians, o zagueiro Sebá Domínguez, e Víctor Zapata). E o jogo com o Huracán também seria uma tarde tremenda.

Bolatti, Toranzo, Defederico e Otamendi foram outras revelações do campeonato. Todos estreariam em breve na seleção, embora só Otamendi tenha sido mais duradouro

Se Moralez e Larrivey foram os protagonistas velezanos, foi porque infelizmente o protagonista geral da partida foi o árbitro Gabriel Brazenas, desde cedo: aos 8 minutos, após cobrança de falta, anulou um gol legal de Eduardo Domínguez (ex-Vélez, mas huracanense apaixonado e futuro técnico do elenco vice da Sul-Americana 2015) para o Globo; os velezanos alegam que, por outro lado, seu jogador Zapata sofreu nessa jogada falta não marcada ao querer adiantar-se para deixar Domínguez impedido. O impedimento foi pela posição realmente irregular de Goltz, mas ele não participou da jogada. Dez minutos depois, veio uma chuva de granizo que, longe de esfriar a tensão, só serviu para interromper o jogo por meia hora. Quando a partida pôde ser retomada, o Vélez teve um pênalti a seu favor. Mas Gastón Monzón pegou a cobrança de Hernán López. 

Ambos os times tiveram suas chances depois: o velezano Leandro Velásquez teve até gol (bem) anulado. Por outro lado, Otamendi, que já havia sido amarelado, merecia o vermelho em uma falta forte sobre Goltz no início do segundo tempo. Com o tempo se passando e nada do placar ser aberto, o Huracán passou a cozinhar o empate. Aos 35, Carlos Arano entrou com os dois pés no joelho de Fabián Cubero dentro da área, mas Brazenas não deu pênalti ao Vélez nem advertiu Arano. Mas aos 38 minutos do segundo tempo veio a polêmica maior. Moralez lançou Larrivey, um ex-Huracán considerado ídolo lá: quando o Clarín publicou livro em 2008 sobre o centenário huracanense, pôs Larrivey como o mais recente dos cem maiores ídolos da clube, pois fora o goleador da campanha que recolocara o Globo na elite em 2007.

Um ano depois, a obra do Clarín já estava desatualizada. Foi após Larrivey chocar-se com o goleiro Monzón, que nisso soltou a bola. Brazenas não interrompeu, Moralez pegou a sobra e marcou com o gol vazio. Em seguida, por tirar a camisa, foi expulso. O Huracán, mesmo com um a mais e com a partida tendo quatorze minutos de acréscimo, se desestabilizou. As demoras dos gandulas de Liniers em repor de bolas que saíam do campo foram o estopim final para o sereno Ángel Cappa (que nunca mais faria um trabalho daqueles, assim como boa parte de seus comandados) também perder a calma. Larrivey quase fez 2-0 e terminou agredido por ex-colegas. O golpe não foi superado ali nem depois: apesar do vice, o Huracán não se classificou à Libertadores nem à Sul-Americana seguintes.

O Globo murchou a ponto de nem a ótima pontuação daquele Clausura livra-lo de um promedio a rebaixa-lo pela quarta vez apenas dois anos depois, em 2011, ao mesmo tempo em que o Vélez somava novo título. Antes de reerguer-se por um tempo com a emocionante conquista da Copa Argentina de 2014, do acesso à elite semanas depois e do bom desempenho também em 2015 (com o título da Supercopa Argentina e o vice na Sul-Americana), ainda penaria por três longos anos na segunda divisão, além de nunca ter chegado tão perto do título que segue fugindo desde 1973 do bairro de Parque de los Patricios – em jejum que já superou a própria seca de 45 anos encerrada naquela ocasião. Em 2009, os anos de espera já eram 36, suficientes para comover até José Sanfilippo, maior artilheiro do rival San Lorenzo (e do clássico entre os dois). Falamos a respeito em link fornecido abaixo, assim como outros que o Futebol Portenho publicou na época.

Afinal, se o Huracán preferiu ignorar em suas redes sociais aquele 5 de julho de 2009 – diferentemente do Vélez, claro -, aquele Clausura traz uma nostalgia especial também por isso: foi o primeiro campeonato argentino coberto pelo FP, criado em abril daquele 2009.

Diretorias de Vélez e Huracán divergem com relação a final

Torcida do Huracán esgota entradas em menos de 2 horas

Vélez e Huracán definem o campeão em grande jogo

Vélez é campeão do Clausura 2009

Assim o Vélez chegou ao título

Cappa: “Se equivocou em dois lances que nos tirou o título”

Brazenas não viu falta no lance do gol

Brazenas admite que errou na final

“Se ficar impune, o futebol argentino não terá remédio”, diz Cappa

Torcedores do Huracán armam protesto contra Brazenas

Sanfilippo quer 18 meses de punição para Brazenas

Sequência da grande polêmica: Larrivey e Monzón se chocam; o goleiro pede falta e não é atendido; e Moralez, apesar dos esforços de Arano (3) e Domínguez (25), marca observado por Toranzo (18)

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

4 thoughts on “Dez anos “daquela final” entre o Huracán e Vélez: promessas, granizo, drama e polêmicas

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

doze + 11 =

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.