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50 anos da Revolução Tricolor: o título argentino do Chacarita Juniors

Marcos, Puntorero, Recúpero, Orife e Neumann, Petrocelli, Abel Pérez, Poncio, Jorge Gómez, Frassoldati e Bargas

Dali a duas semanas o homem pisaria na lua e talvez este seja o equivalente do título do Chacarita Juniors no futebol argentino. O título do Estudiantes, dois anos antes, a quebrar o oligopólio dos “cinco grandes” (Boca, River, Racing, Independiente e San Lorenzo), vigente desde 1930, podia ser comparado ao homem no espaço. O Chaca terminou de confirmar que o melhor, mesmo quando pequeno e sem exatamente um timaço memorável, podia ser campeão – sensação já reforçada pelo primeiro título nacional do Vélez, no semestre anterior. Que um time que soubesse superar anos e anos de luta e sacrifício na metade inferior da tabela e se organizasse poderia ter seu dia de lugar ao sol. Superando inclusive dois grandes na reta final para tornar-se “símbolo dos humildes, dos poetas e dos últimos românticos”, na definição do Clarín publicado em 7 de julho de 1969. Na véspera, a Argentina se tornara tricolor.

Além de superar dois grandes, o Chacarita também reverteu um déficit em sua rivalidade, com o sumido Atlanta: no início daquela década, o rival vencera a Copa Suécia, torneio oficial que a AFA iniciara ainda em 1958 enquanto o campeonato se paralisou por conta da Copa do Mundo, e fazia se intrometia entre os grandes nas primeiras colocações. Já os funebreros (apelido herdado do Cemitério do bairro da Chacarita, o maior da América Latina e onde jazem Gardel e Piazzolla, embora o clube se enderece desde os anos 40 na cidade de San Martín) ficaram simplesmente em último em 1965, 1966 e 1967. Só não caíram por não haver rebaixamento nos dois primeiros e por haver uma repescagem em 1967. O time também jogou a repescagem em 1968, mas já após uma colocação ligeiramente melhor, sob o trabalho de Argentino Geronazzo.

“Com ele fomos consolidando a identidade de um jogo”, defendeu ontem ao Clarín o capitão Ángel Marcos sobre o trabalho de Geronazzo. Embora o time campeão já fosse treinado desde a primeira rodada de 1969 por Federico Pizarro, antigo ídolo tricolor como jogador, o volante Franco Frassoldati (apelidado de El Tano por ter nascido na Itália) já havia declarado na mesma linha em 2004: “entre Ernesto Duchini e Argentino Geronazzo foram os responsáveis em começar a delinear a equipe a partir de 1967. E creio que havia muitas coisas no ar que eles começaram a unir. Sempre disse que a virtude de um técnico é otimizar o jogador, e aqui conseguiram, porque armaram um time que possuía inteligência, técnica, velocidade, força e muito amor próprio”. Pizarro, inclusive, desligou-se após o penúltimo jogo da primeira fase. Marcos complementou ontem: “seríamos campeões do mesmo jeito se Pizarro seguisse. Mas foi uma decisão do momento, já passou, não vale a pena entrar em detalhes nesta celebração”.

Petrocelli, García Cambón, Bargas e Marcos reunidos ontem pelo Clarín. À direita, o capitão Marcos na poética capa da El Gráfico sobre aquele título

Pizarro foi substituído interinamente por Juan Manuel Guerra (depois técnico funebrero nos acessos de 1983 à elite e de 1994 à segunda divisão) antes de Víctor Rodríguez assumir nos dois mata-matas. De fato, a maior parte do time-base foi formada entre 1967 e 1968. Só Frassoldati, o goleiro Eliseo Petrocelli e o zagueiro Ángel Bargas estavam desde antes. As únicas mudanças na equipe titular incorporadas em 1969 foram três: Rodolfo Orife, sem relevo no forte Estudiantes da época; Abel Pérez, desconhecido no Boca; e Juan Carlos Puntorero, ex-Newell’s e sobretudo brilhante no bom momento recente do rival Atlanta, sendo rara figura querida no Clásico de Villa Crespo. Rivalidade cujo maior goleador estava naquele elenco: Carlos García Cambón, promovido dos juvenis funebreros exatamente naquele ano antes de tornar-se a pessoa que mais marcou gols em um único Boca-River. Em 1969, porém, García Cambón não passou de um reserva útil.

E pensar que o futuro campeão de 1969 ainda começou levando de 7-1 do Lanús na segunda rodada… de fato, não parecia uma grande equipe: só os Ángeles Bargas e Marcos, tricolor desde 1967, iriam à seleção. Outra ironia: Bargas havia sido dispensado pelo Racing quando o lendário Juan José Pizzuti assumiu o time de Avellaneda e não o levou em conta, e anos depois seria Pizzuti o técnico a convoca-lo à Albiceleste. O defensor não teve êxito duradouro pela Argentina, mas fez história: foi ele o primeiro que a seleção usou do futebol europeu, pelo Nantes (que abrigaria o próprio Marcos também) e ele é também o jogador mais vezes usado por ela a partir do Chacarita, 16 vezes. Pôde ir à Copa do Mundo de 1974, onde foi novamente treinado por Víctor Rodríguez e acompanhado por Daniel Carnevali, goleiro titular igualmente revelado nos funebreros e segundo “europeu” na seleção (pelo Las Palmas).

Já no jogo seguinte, houve uma boa reação, com um 5-0 no Colón. O goleiro Petrocelli esclareceria em 2004 que o 7-1 marcara tanto que, mesmo após já vencer por 3-0 o Colón, “seguíamos atacando porque queríamos mais gols”. Na mesma ocasião, Orife explicou: “a maior virtude dessa equipe foi que havia uma linha de jogo e todos eram fiéis a ela. E uma vez que a equipe começou a funcionar, os resultados vieram sozinhos, e chegamos com uma fé bárbara às semifinais e à final”. Bargas, a seu lado, deu outra visão sobre como os resultados mudaram tanto sob os mesmos (pouco badalados) nomes: “sempre me lembro de uma matéria da El Gráfico que dizia ‘se quer ver bom futebol, vá ver o Chacarita’. E haviam publicado essa nota na metade do campeonato, assim que se via que esse time jogava bem de verdade. Era muito parelho em todas as suas linhas e tivemos a sorte de não ter lesionados. No Chacarita começávamos todos os torneios com a ameaça do descenso, mas nesse ano a sensação era diferente, porque tínhamos muita confiança”. Aí, para Neumann, havia méritos de Pizarro mesmo: “Geronazzo era um estudioso e nos ensinou muitas coisas que uma vez assimiladas foram chave desde o ponto de vista estratégico. E Federico Pizarro era um técnico que nos dava uma confiança bárbara”.

Na semifinal, o adversário era o Racing recém-campeão mundial reforçado com o artilheiro brasileiro Silva. Ficou a desolação do goleiro Cejas e a festa dos tricolores com a camisa dos vencidos

Aquele Metropolitano foi dividido em dois grupos, a separar rivalidades: no A, ficaram Boca, Independiente, San Lorenzo, Gimnasia LP, Rosario Central, Banfield e Colón. No B, os respectivos rivais River, Racing, Huracán, Estudiantes, Newell’s, Los Andes e Unión. Completavam o B Argentinos Jrs, Deportivo Morón, Quilmes e Platense. E completavam o A Lanús, Vélez, Atlanta e o Chacarita, única dupla rival junta. Após turno e returno e dois jogos intergrupos normalmente reservados aos clássicos, os dois primeiros de cada grupo fariam semifinais prosseguida de final em jogos únicos. O Chacarita realmente reagiu bem: engatou oito jogos de invencibilidade após o 7-1 para ser o segundo time que mais venceu – 13 vezes em 22 jogos, com destaque especial para um 3-0 no Lanús e duas vitórias magras em trincheiras fora de casa: 1-0 no Colón no Cementerio de Elefantes e no Boca em La Bombonera, onde os visitantes receberam um raro reconhecimento em forma de ovação por parte da torcida da casa. Marcos recordaria que ali sentiram pela primeira vez que poderiam ser campeões.

No clássico com o Atlanta, o Chaca empatou fora (com García Cambón marcando pela primeira vez no dérbi) e venceu por 1-0 em casa. Mas ao arrefecer nos dois jogos finais com a classificação já assegurada por antecipação, perdeu a liderança do grupo para o Boca. Como consequência, seria preciso encarar o líder da outra chave, que era o Racing. Ainda respirando o auge de 1967, quando venceu Libertadores e Intercontinental, a Academia havia sido justamente quem mais vencera até então, 14 vezes. E tinha o artilheiro do torneio, um brasileiro: Silva “Batuta”, ex-Flamengo e Vasco e que fora à Copa 1966. Silva marcara simplesmente 14 gols em 22 jogos, média altíssima que lhe faria admirado eternamente em Avellaneda mesmo não passando de trinta jogos como racinguista. Como se não bastasse, embora jogassem na neutra Bombonera (que não encheu; houve boatos de suspensão da partida após o assassinato do sindicalista Augusto Vandor), aquele Racing teria a vantagem do empate por ter a melhor campanha.

Parecia que a igualdade ia prevalecer mesmo. O jogo rumava no 0-0 até que, a quatro minutos do fim, o racinguista Juan Carlos Rulli pôs a mão na bola a um metro da grande área em jogada de Recúpero. Marcos cobrou um virtual escanteio na cabeça do próprio Recúpero emendar no canto esquerdo do goleiro Agustín Cejas, futuro ídolo no Santos de Pelé. E no pouco tempo restante quase os tricolores marcam outro, com Marcos elevando a bola a Orife, que chutou e Cejas salvou com os pés, embora Petrocelli ainda precisasse intervir para impedir que Silva acertasse um tiro livre no ângulo. Já a outra semi foi nada menos que um Superclásico, mas foi bem menos emocionante. No estádio do Racing, um retranqueiro River jogaria pelo empate e se aferrou a manter essa vantagem enquanto o Boca, treinado justamente pelo ex-ídolo rival Alfredo Di Stéfano, não tinha ideias ofensivas apesar de melhores jogadores e de ter goleado por 4-1 o Independiente quatro dias antes. 90 minutos arrastados para trinta intermináveis de prorrogação ficaram no 0-0.

Festejos da semifinal com o Racing, então o grande time argentino da década: gol da classificação a 4 minutos do fim

O River se classificou, mas para a grande final ficaria marcado pela ausência de dois jogadores que passariam pelo Brasil nos anos 70. A mais sentida foi a agressividade de Carlos Chamaco Rodríguez, suspenso da decisão ao ser expulso no último minuto da prorrogação da semifinal. A outra foi a do substituto de Rodríguez para a decisão: o jovem Hugo Dreyer, também expulso. Ele passaria pelo futebol paranaense, jogando tanto no Coritiba como pelo Athletico e ainda no Colorado (clube que daria origem ao Paraná em 1989) e Londrina, brilhando sobretudo no Coxa. O River não era campeão desde 1957. O último baluarte dos bons tempos, o veteraníssimo goleiro Amadeo Carrizo, saíra no ano anterior. Sob maior pressão psicológica, o Millo começou a final desencontrado. Logo aos 3, Dreyer havia dado um passe errado. Aos 4, Gutiérrez cometeu falta violenta em Recúpero. O Chacarita, do seu lado, trabalhava tranquilamente a bola e abriu o placar já aos 12 minutos.

O placar foi aberto em escanteio cobrado por Marcos pela ponta-esquerda. Recúpero cabeceou a bola para baixo ao interior da pequena área e ela encontrou Neumann de costas para o goleiro oponente, Carballo. Cercado também por Miguel López (depois figura no Independiente tetra da Libertadores nos anos 70), Guzmán, Ferreiro e Vieitez, Neumann girou e chutou de direita antes que Carballo chegasse. Só Ferreiro também reagiu, mas para reclamar de impedimento – embora ele próprio fosse quem desse condição legal a Neumann, um homem de cintura e canelas grossas incomuns a um ponteiro. No River, só Oscar Más, o segundo maior artilheiro da história millonaria, dava alguma ameaça ao Chacarita, ganhando sempre de Gómez. Foi em jogada de Más, após Marcos perder a bola (“ninguém me reprovou; éramos um grupo muito unido. Seguimos adiante”, assegurou), que o Millo pôde empatar seis minutos depois.

Pela esquerda, Más cruzou à grande área. O goleiro Petrocelli resolveu não interceptar bola endereçada ao goleador Daniel Onega, já perseguido por Bargas. Maior artilheiro de uma única Libertadores, Onega não chegou a tempo, mas o colega Trebucq, que também acompanhava a jogada, conseguiu concluir livre com a canhota após seu marcador Frassoldati interromper o ímpeto por imaginar que Onega conseguiria. As possibilidades se equilibravam, mas o River se atrapalhava no último toque com a linha de impedimento bem sincronizada da defesa tricolor. A situação do River piorou aos 30 minutos. Foi quando houve a expulsão de Dreyer por falta em Neumann. Segundo meios da época, o juiz Barreiro exagerou, pois era a primeira falta cometida por Dreyer, que ainda nem tinha amarelo, enquanto outras jogadas mais ríspidas na partida não foram punidas. O Chacarita, que sempre conseguia encontrar alguém desmarcado, cresceu ainda mais com a vantagem numérica. E não tardou para o Tricolor deixar o River incapaz de segurar o empate até o intervalo e rediscutir suas estratégias com alguma calma.

Cena da final contra o River: 4-1

Na grande área, Marcos armou de bicicleta, López tentou afastar, mas Neumann buscou a bola e soltou um canhão de canhota, marcando abaixo do travessão seu segundo gol, aos 37 minutos. “Nessa final tive a sorte de fazer dois gols no primeiro tempo. No segundo, pus a minha vida, porque a bola vinha à meia altura, e Guzmán, do River, estava mais perto; mas a busquei com potência e a bola saiu com uma força tremenda”, descreveria ele na festa dos 35 anos da taça, em 2004. Como o pior pode piorar mais ainda, mal começou o segundo tempo e o Chacarita ampliou: lançado em profundidade por Recúpero (acompanhado de perto pela imprensa de sua província natal de San Juan, de onde recebia telegramas de incentivo), Marcos correu de um lado a outro do campo. O capitão deixou Miguel López para trás, driblou um goleiro Carballo que saíra da área para tentar interromper a jogada, parou um pouco para ganhar mais ângulo. Sem temor: “não me apresso. Paro a bola e levanto a cabeça. Não tenho medo que me a roubem. Quase todos os gols que se perdem são pelo desespero em fazê-los”.

Nisso, López conseguiu se recuperar e tampar a frente de Marcos. Só que López também abriu as pernas e entre elas o capitão funebrero tocou sutilmente, com mais precisão do que força. López caiu sentado para tentar bloquear, mas não impediu o gol mais bonito da tarde, em lance quase maradoniano. “Gol de caneta”, que não freou o ímpeto tricolor por mais gols. Veio o quarto, com Recúpero lançando a bola à esquerda em cobrança de falta, Orife confundindo a defesa do River ao deixar a bola passar – e, antes que chegasse no riverplatense Ferreiro, Frassoldati se antecipou, pegou a bola e tocou na saída de Carballo. E poderia ter vindo um quinto, com tentativa de Recúpero batendo na trave. Entre tantas ironias daquela trajetória, a estatística de que o Chacarita só havia vencido o River oito vezes desde o profissionalismo, em 1931; a última, em 1961. Nos doze jogos seguintes até o de meio século atrás, o Chaca só marcou duas vezes e perdeu onze, empatando o outro… Mas em 6 de julho de 1969 o Chaca não só terminou campeão como foi reconhecido pelo oponente, que atuou com correção mesmo goleado e cujo presidente foi cumprimentar nos vestiários o capitão Marcos.

Marcos na época gozava uma revanche na própria vida, pois havia se operado de uma úlcera. Ontem, ele assegurou ao Clarín: “fui campeão com o Nantes, na França. E não é a mesma coisa. Ficou como algo incrível porque além de tudo fomos campeões na época do Estudiantes, tão discutido por suas artimanhas, e fizemos jogando um bom futebol”. O Chacarita não chegou a ser um novo Estudiantes (inclusive porque o título do Torneio Metropolitano só passou a classificar à Libertadores em 1973), cujo jogo tático e destrutivo não lembrava o hábil dos tricolores, mas seguiu forte por um tempo: lutou pelos títulos por alguns anos e em 1971 derrotou o Bayern Munique de Beckenbauer, Breitner, Müller e outros por 2-0 no Troféu Joan Gamper, chegando a candidatar-se a “sexto grande” do futebol argentino na época embora logo se acostumasse às divisões de acesso. 25 anos depois, em 1994, já era um time noticiado sob folclore, quando os jogadores precisaram jogar com diferentes camisas emprestadas pelos torcedores presentes. Outros 25 anos depois, a glória de 1969 parece distante como a lua. Será sempre admirada como ela pelas bandas de San Martín.

Interessado em mais sobre a história funebrera? Recomendamos nossa nota sobre o time dos sonhos do Chacarita.

Festejos da final com o River: Bargas e Abel Pérez comemoram o título, já com camisas trocadas. O capitão Marcos festeja Neumann, autor de dois gols
Bargas, Gómez e Poncio comemorando com as camisas trocadas no vestiário, e o talismã Neumann nos 35 anos da conquista, em 2004
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Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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