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75 anos do 1º jogador argentino do Corinthians: o goleiro Buttice, ídolo de San Lorenzo, Bahia e herói da Copa Pelé

A data de 17 de dezembro de 2017 marca alguns festejos do San Lorenzo. O clube celebra os 45 anos da ocasião em que se tornou o primeiro time a vencer os dois campeonatos de uma mesma temporada na Argentina – na época, o Metropolitano e o Nacional, saga contada neste Especial. Além de festejar essa campanha, que teve direito ao retorno do ídolo quarentão José Sanfilippo, que estava no Bahia, para o ataque, os cuervos também comemoram o aniversário do torcedor mais ilustre, o Papa Francisco. Mas vale o registro de outro aniversariante da história azulgrana, por sinal também ex-jogador do Bahia: Carlos Adolfo Buttice, o primeiro argentino do Corinthians.

Se o Corinthians proclama-se “o clube mais brasileiro” em seu hino, havia um quê de verdade até 1974. O time já havia contado com jogadores forasteiros, incluindo italianos (alguns dos quais depois fundariam o Palmeiras), portugueses, libaneses, húngaros e até espanhóis (um deles, José Ufarte esteve pela Espanha na Copa de 1966), além do uruguaio Armando Graham Bell, mas todos crescidos no Brasil. Dos anos 30 aos 40, quando as grandes potências preocupavam-se em ter argentinos e uruguaios no elenco, no chamado Platinismo, o Timão contou no máximo com o charrua Armando Graham Bell, revelado no Internacional.

Assim, Buttice teria sido o primeiro jogador 100% estrangeiro do Corinthians (“jogador”, pois o clube já havia contado com os treinadores Tilger, Jim Lopes e Filpo Núñez), ainda que já jogasse no Brasil quando foi contratado em 1974, dez anos após o início da trajetória desse goleiro. Ela começou na segunda divisão de 1964 pelo Los Andes, o time de Lomas de Zamora que é o rival original do Banfield. Pelas Milrayitas (“Mil Listrinhas”, alusão à camisa), não passou de um sétimo lugar na chave sul do campeonato – a uma posição e a dois pontos do último classificado à segunda fase. O que não impediu que no ano seguinte rumasse a um time de porte bem maior, o Huracán, sob empréstimo.

No Los Andes, em 1964, é o último agachado

O Huracán, outrora visto como “sexto grande”, já não fazia jus ao posto. Ficou só em 12º de um torneio com dezoito times, com o detalhe de ter a segunda pior defesa, levando 54 gols – o lanterna Chacarita sofreu um a menos. Mas, tal como no Los Andes, o desempenho parecia enganoso quanto às qualidades do goleiro. E assim escreve o Diccionario Azulgrana, tirando uma casquinha do rival: “o destino lhe tinha guardado uma carta vencedora. Porque se sabe, não é a mesma coisa representar a instituição de Parque Patricios que fazê-lo no San Lorenzo. Esse foi seu desafio: vestir a camisa de uma equipe grande e brigar por coisas à altura da magnitude do clube”.

Em uma época de rivalidades mais sadias na Argentina (em 1965, o Huracán havia vendido ao rival o ídolo Alberto Rendo, recebendo em troca Eladio Zárate, Tito Gómez, Juan Argañaraz e Alberto Cabaleiro a um plantel que já tinha outro ex-sanlorencista, Héctor Facundo), Buttice virou a casaca em 1966, comprado pelo San Lorenzo. Que pareceu mesmo ter outro patamar para melhor valorizar as qualidades do goleiro: ele logo se firmou titular, atuando as 38 partidas do campeonato argentino. Agora, levava menos de um gol por jogo, sofrendo 34. E chegava a um 4º lugar. Do Huracán, restou só a característica pose de se fazer fotografar deixando o rosto de perfil.

Buttice era daqueles goleiros de estilo elástico e voador, com bons reflexos e intuição no mano a mano, sendo mais confiável entre as traves do que quando tentava sair da pequena área. Recebeu assim o incomum apelido de El Batman do célebre cronista esportivo argentino Osvaldo Ardizzone (“não seria melhor chamar-lhe de Superman, que sim voava?”, chega a brincar o Diccionario Azulgrana). O próprio goleiro gargalhava: “era até engraçado ouvir a hinchada gritando: “Batman! Batman”, declarou quando anos depois chegou ao Brasil. A posição de titular manteve-se com a chegada do técnico brasileiro Tim, em 1967. Sobrepujou Agustín Irusta, goleiro mais vezes campeão no time.

O rosto de perfil na hora das fotos: pose registrada praticada no Huracán, San Lorenzo, Bahia, Corinthians…

O San Lorenzo terminou em quarto em seu grupo no Torneio Metropolitano, a dois pontos da semifinal. Um dos destaques, Buttice veio então a estrear pela seleção. Um primeiro jogo foi não-oficial, em 20 de agosto, contra a LDU Quito (3-1, na capital equatoriana). A estreia oficial foi 48 horas depois, em derrota amistosa de 2-1 na Cidade do México para a seleção anfitriã, substituindo no decorrer do jogo o velezano José Miguel Marín. Pelo restante de 1967, vieram então mais seis jogos, todos não-oficiais: 2-2 com o Málaga em 27 de agosto, derrota de 2-1 para o Espanyol em 29 de agosto, 1-1 com a Fiorentina em 31 de agosto e 0-0 com o Lecce em 3 de setembro, ao longo de uma infrutífera excursão europeia; e 6-1 na seleção municipal de Posadas, em 2 de novembro.

Os jogos oficiais seguintes de Buttice, por sua vez, ficaram para 1968. E foram somente mais três; naquela época, a Albiceleste, ainda mais desorganizada do que atualmente, não chegava a ser prioridade para os jogadores. El Batman vinha de um razoável segundo semestre em 1967: o San Lorenzo terminara em enganoso 6º lugar no Nacional, a dois pontos do 3º, com o time sendo o único a vencer o campeão Independiente, cuja campanha até hoje detém o recorde de aproveitamento do profissionalismo argentino. Se faltou o ineditismo de um título invicto ao Rojo, por sinal treinado pelo brasileiro Osvaldo Brandão, ele veio ao San Lorenzo no torneio seguinte, o Metropolitano de 1968.

Jamais uma equipe argentina havia sido campeã invicta no profissionalismo, e por ter conseguido o feito aquele elenco cuervo foi apelidado de Los Matadores. Buttice sofreu só dez gols em 22 jogos. Nesse embalo, defendeu então a seleção em três troféus binacionais: derrota de 2-0 para o Paraguai pela Copa Rosa Cheva, em 15 de maio, que só não teve ares de goleada porque Buttice pegou um pênalti; vitória de 2-0 sobre o Uruguai, pela Copa Newton, em 5 de junho; e derrota de 2-1 para os uruguaios em 20 de junho, agora pela Copa Lipton. O título com o clube, por sua vez, viria no início de agosto. Virou folclore Buttice usar as mãos também para dirigir o ônibus da delegação desde a concentração até o estádio. go, de Benito Sandoval); vitória de 2-0 em 5 de junho sobre o Uruguai no Monumental; e derrota de 2-1 para os uruguaios no Centenário, em 20 de agosto.

Na seleção, com outros com passagem por clubes brasileiros: Nelson López (Internacional) e Fischer (Botafogo e Vitória), então colega do goleiro no San Lorenzo

O troféu veio de virada, em final contra um Estudiantes recém-campeão da Libertadores, cujos mau-afamados jogadores se renderam em aplaudir a volta olímpica sanlorencista. A conquista do Metropolitano, porém, na época ainda não classificava à Libertadores, cujas vagas argentinas ainda eram dadas somente ao campeão e vice do Nacional (o Estudiantes jogou a edição de 1968 do torneio não como campeão do Metro de 1967, mas como vice do Nacional de 1967). Nesse torneio, o clube do bairro de Boedo ficou em 7º, ainda que a quatro pontos do líder Vélez. Assim, os jogos internacionais em 1969 se resumiam a amistosos. Em um deles, no Torneio Hexagonal de Santiago, Buttice teve sua primeira “experiência corintiana”, ainda como adversário.

Foi pela taça que envolvia os alvinegros e também a Universidad de Chile, o Colo Colo, o Estrela Vermelha iugoslavo e o Dínamo de Moscou soviético. Em 15 de janeiro, o corajoso Buttice encaixou uma das famosas bombas de Rivellino, que cobrava pênalti, evitando assim a derrota – o jogo terminou em 1-1 e o impacto “atômico” foi tamanho que teria tatuado no peito do goleiro o crucifixo que carregava. Em seguida, o time não fez um bom Metropolitano (quinto lugar em um grupo de onze) e perdeu gás no Nacional, com um terceiro lugar a dois pontos do campeão Boca, mas já sem chances de título na rodada final. Buttice ainda sofreu com a desclassificação argentina nas eliminatórias à Copa, ainda que não fosse o goleiro titular da Albiceleste.

Em 1970, onde novamente enfrentou o Corinthians em amistoso de verão (0-0 no Hexagonal de Montevidéu, a envolver ainda Nacional, Peñarol, River e Estrela Vermelha), o roteiro foi similar ao campeonato anterior: dois pontos abaixo do campeão Independiente no Metropolitano, mas já sem chances na rodada decisiva.  No Nacional, o time foi um quarto, a três pontos das semifinais. Durante o torneio, houve greve em diversos clubes. O goleiro, que estava com seis meses de salários atrasados, adquiriu passe livre e chegou ao Brasil. Inicialmente, no America-RJ (sob indicação de Tim), justamente o primeiro clube brasileiro a apostar largamente em argentinos. Ou melhor, America-GB, já que na época o Estado era o do Guanabara.

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Êxtase pelo título invicto de 1968

O argentino um início periclitante nos rubros, mas, mesmo sem eternizar-se na Tijuca, saiu razoavelmente em meio à campanha encerrada no quadrangular semifinal do Brasileirão. Buttice rumou ao Bahia em 1971. Também não agradou de início no tricolor. Culpado pela perda do título estadual para o Vitória ao cometer um pênalti no Ba-Vi decisivo, só recuperou a vaga em função de cirurgia nas amídalas do concorrente Renato. A volta por cima veio em 1973: seu novo clube  saboreou o primeiro do que seriam sete títulos estaduais seguidos e o argentino concorreu fortemente à Bola de Prata e até à Bola de Ouro no Brasileirão, prêmios que ficariam ambos com outro hermano, o santista Agustín Cejas.

Esse desempenho que valeu ao Batman a lembrança de seis eleitores (incluindo do chefe de torcida organizada) do júri que em 1994 definiu o time tricolor dos sonhos, ainda que o escolhido fosse Nadinho, com 14 votos. Buttice foi o vice, ao lado de Lessa e à frente de Picasso, Rodolfo Rodríguez (ambos 2), Osvaldo Baliza, Renato, Ronaldo e Maia (1 cada). Com esse cartaz, deixou as folgas em Itapoã rumo ao Parque São Jorge. O Corinthians vivia o vigésimo ano sem títulos expressivos, e com o reforço fazia um bom Estadual em 1974. Mas o argentino acabou dispensado com a perda traumática do título para o Palmeiras, por mais que o gol da derrota tenha sido indefensável. Já veterano, Buttice passou por diversas outras equipes argentinas (Atlanta, Gimnasia LP, Banfield, Colón) e, uma vez aposentado, chegou a administrar uma fábrica de massas e um restaurante em Ushuaia, na Terra do Fogo.

Um grande orgulho seu foi ser o goleiro argentino que mais teria enfrentado Pelé… e sem jamais ter sido vazado: teriam sido quinze duelos. E não só, pois foi quem sobressaiu-se no próprio torneio que levou o nome de Pelé. O principal momento de Buttice no futebol talvez tenha sido justamente após a carreira profissional. Foi na Copa Pelé, um mundial de veteranos bastante prestigiado na época (especialmente no país-sede, o Brasil, cuja seca de títulos também contribuía para a valorização), ocorrido no início de 1987. As “batdefesas” fizeram de Buttice o grande personagem da decisão, contra o anfitrião Brasil. Para a revolta do ex-colega Rivellino, estrela dos masters canarinhos e que declarou que nunca vira Buttice sair-se tão bem, os hermanos, recém-campeões mundiais “normais”, terminaram no Canindé campeões também entre as lendas…

Na Copa Pelé de 1987, cumprimentado pelo próprio, que jamais marcou gol nele

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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