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Como era o futebol no clássico em 3-1 anterior ao Racing na casa rival

O Racing, talvez pela ressaca, pode até derrapar na reta final e perder o título ao surpreendente Defensa y Justicia, que ainda jogará na rodada e poderá manter a co-liderança. Mas o Clásico de Avellaneda de ontem já é histórico à Academia, por diversos fatores. O menino veterano Lisandro López, por exemplo, chegou aos quinze anos de gols marcados em dérbis competitivos, superando os quatorze (1972-86) do recordista anterior, a lenda rival Ricardo Bochini, ainda que El Bocha tenha deixado outro em amistoso de 1988. O mais marcante, porém, é que os 3-1 de ontem são a primeira vitória racinguista no estádio Libertadores da América; o triunfo de 2-0 em 2015 foi pela liguilla. E fazia 21 anos que La Acadé não marcava três gols na casa rival, ainda a Doble Visera na época. Em outro dérbi famoso, por sinal, com direito a blecaute para impedir uma goleada.

Em 2004, o Racing derrotou por 3-1 fora de casa o Independiente, mas o Rojo mandou o clássico no estádio do Lanús; foi inclusive esse dérbi que rendeu o primeiro gol de Licha López no duelo. Na casa própria do rival, é necessário rebobinar a fita para quando ainda se rebobinavam VHS: 26 de agosto de 1998. Àquela altura, Marcelo Bielsa havia acabado de levantar seu último troféu no futebol adulto, o Clausura 1998 pelo Vélez, rendendo uma transferência europeia ao Espanyol logo abortada: na semana anterior, El Loco rescindira sua brevíssima estadia com os catalães para assumir a seleção argentina, provavelmente sem desconfiar que, 21 anos depois, seguiria sem títulos que não as Olimpíadas de 2004.

Faz tanto tempo que não só Messi e Agüero ainda eram juvenis em Newell’s e no próprio Independiente, como até os mais velhos Saviola e D’Alessandro também. Maradona e Francescoli estavam recém-aposentados e a Era Carlos Bianchi recém-começava no Boca – ainda detentor de só duas Libertadores e chegando precisamente ao 20º ano de jejum nesse torneio. O Real Madrid, por sua vez, havia acabado de encerrar um ainda maior, de 32, até erguer La Séptima, ou quase três vezes a eternidade que parece ter durado o período 2002-14, entre La Novena e La Décima. Ah, o campeão inglês era o Arsenal, na primeira conquista sob Arsène Wenger, enquanto o Manchester City (cuja principal estrela ainda não era o impúbere Agüero e sim um georgiano, Giorgi Kinkladze, que chegou por sinal a envolver-se com o Boca anteriormente) acabava de ser rebaixado à terceira divisão…

Em 1998, Agüero ainda era um obscuro juvenil sob orientação da lenda Ricardo Bochini, que teve um recorde quebrado ontem por Lisandro López. E Messi era o dono da bola no Newell’s

Àquela altura, o Racing vivenciava um incômodo jejum à parte de sua estiagem de títulos no campeonato argentino (que chegava ao 32º ano). Invicto durante oito anos no clássico entre 1986 a 1994 (ou onze, dependendo da versão, entre 1983 e 1994, pois a estadia da Academia pela segundona entre 1984 e 1985 impediu o confronto), não conseguia novas vitórias desde que esse tabu caíra no Apertura 1994. Foram quatro sucessivos empates, duas derrotas em 1997 e novo empate no primeiro semestre de 1998. Nesse meio-tempo, um clube que sentia um certo renascimento entre 1988 e 1995 era declarado quebrado pelo presidente Lalín, mas apenas para evitar medidas restritivas dos credores. Sem austeridade alguma, contratou o técnico Ángel Cappa junto ao Las Palmas, trouxe de volta o ídolo Rubén Capria e adquiriu ainda outros jogadores de certo renome.

Irmão do zagueiro Diego Capria que defenderia o Atlético Mineiro, Rubén era um camisa 10 talentoso marcado em especial pelos três gols que anotara em um 6-4 do clube sobre o Boca de Maradona e Caniggia em plena La Bombonera em 1995. Esse jogo, por sinal travado no mesmo dia em que Mauricio Macri elegia-se presidente xeneize, fora a primeira derrota do então líder Boca, já na antepenúltima rodada, permitindo que o Racing o ultrapassasse, ainda que os de Avellaneda tenham chegado somente ao vice no fim das contas (para o Vélez). El Mago Capria seguira no clube até 1997, quando chegaram às semifinais da Libertadores. Havia sido vendido pouco depois exatamente para oxigenar o caixa blanquiceleste.

Capria foi um dos mais talentosos camisas 10 a jamais defenderem a seleção argentina, por pura opção técnica. Outro com potencial, mas prejudicado pelo próprio desleixo, era Ángel Matute Morales. Ele havia sido revelado no próprio Independiente, onde fora polido por César Menotti, a quem agora enfrentaria: Menotti havia feito um grande trabalho no Clausura 1997. Como o torneio só seria finalizado em agosto, com a temporada europeia de 1997-98 já em andamento, o treinador não ficou até o fim para aceitar proposta da Sampdoria. Saiu faltando quatro rodadas, mas deixando o Rojo como líder após um 6-0 exatamente sobre quem ocupava a liderança, o Colón. Morales foi junto e o negócio não fez bem a ninguém: o Rojo minguou e nem no pódio ficou. Menotti e Morales não se ambientaram na Serie A e logo voltaram a Avellaneda para 1998, mas a lados vizinhos.

Prensado por Cristian Díaz, Marcelo Delgado toca manso na saída de Faryd Mondragón, o suficiente para abrir o placar

Outro meia-armador de talento subvalorizado pela seleção que chegara ao Racing era Diego Latorre (que até defendeu a Albiceleste, mas restrito a pouquíssimas oportunidades em 1991), que deixava para trás um ciclo de idas e vindas em um Boca que vivia em estiagem de títulos apesar de diversos astros de um verdadeiro “cabaré”, o adjetivo usado por Gambetita para descrever o ex-clube. Contratou-se ainda o goleiro Gastón Sessa, figura do Rosario Central em passagem que chegou a sondar-lhe à seleção, por sinal. Sessa, um ano antes, já havia presenciado um clássico histórico encerrado antes do tempo: os canallas ganhavam por 4-0, a maior goleada do Clásico Rosarino desde os anos 50 até hoje, quando a partida terminou por falta de jogadores do rival, entre expulsos e lesionados.

Em meia hora de dérbi na Doble Visera, a plateia visitante já comemorava um 2-0 com pinta para mais. O astro que já estava no Racing em meio à quebra era Marcelo Delgado, representante do clube na recém-finalizada Copa do Mundo de 1998, ainda que na reserva. Fora El Chelo quem abrira o placar, logo aos seis minutos, resistindo à marcação de Cristian Díaz para desferir um chute fraco mas suficiente para chegar ao gol antes do corte e longe do alcance das luvas de Faryd Mondragón – ainda longe do recorde de mais velho jogador das Copas do Mundo que manteria entre 2014 e 2018. Além de Mondragón, outro ilustre nome na escalação anfitriã era Esteban Cambiasso, contratado após o título mundial sub-20 de 1997 pelo Real Madrid e emprestado ao Rojo para adquirir experiência.

De fato, ainda verde, Cambiasso falhou feio e rude nos dois gols; no primeiro, dominou mal uma bola e permitiu que uma interceptação a repassasse a Delgado. Já no segundo, o que parecia uma bonita invertida no ataque foi um presente a Matute Morales, que, desarmado no início da jogada, recebeu de volta o “passe” e disparou um “contra-contra-ataque”. Ele logo repassou a bola a Rodolfo García ainda antes do meio-campo. Este conectou a Chelo Delgado, já próximo à área. Mesmo prensado e sem equilíbrio contra dois marcadores, Delgado deu para Latorre na ponta-esquerda. Delgado então levantou-se e recebeu de volta de Latorre. Poderia ter feito novo gol e atraiu Mondragón para si ao máximo da pequena área. Então recuou. Morales estava ali para fuzilar e comemorar ainda que timidamente contra os ex-colegas. O embalo era tamanho que havia pinta de goleada histórica. Mas, aos 39 minutos, enquanto Pablo Bezombe atraía na lateral três adversários (Raúl Cascini, Cristian Díaz e Cambiasso), a luz caiu na Doble Visera.

Ex-jogador do Independiente, Ángel “Matute” Morales fuzila entre Cambiasso e Latorre para marcar o segundo

Após a espera regulamentar, o clássico foi dado por suspenso pelo árbitro Francisco Lamolina reagendado para dali a quatro dias – dessa vez, pela manhã, sem riscos de nova suspensão por blecaute, com os 54 minutos restantes disputados em dois tempos de 27 minutos. Se foi intencional, o propósito de esfriar a Academia serviu: o Rojo começou melhor e descontou com um tiro bem colocado pela canhota do capitão Cascini, que ainda bateu na trave direita de Sessa antes de entrar, no minuto 66. O que parecia goleada blanquiceleste passou a ser pinta de empate tamanha a pressão local. Mas a nove minutos do fim o triunfo racinguista foi assegurado. Curiosamente, em nova jogada sem sucesso de Cambiasso, que buscava acionar o atacante José Luis Calderón e foi interceptado por Sergio Zanetti – sim, irmão mais velho de Javier Zanetti, por sinal assumido torcedor justamente do Independiente. O “outro” Zanetti lançou a Bezombe, que, sob dois na marcação, logo entregou a Delgado. El Chelo correu pela ponta direita e cruzou.

Cascini não alcançou. Bezombe já estava atrás dele para receber de volta e, de cabeça, correu para o abraço de Latorre – nas imagens que abrem a matéria. Com o triunfo assegurado, o Racing chegava a duas vitórias nas três primeiras rodadas do Apertura 1998, tendo batido previamente o Talleres em Córdoba na estreia, também como visitante. Havia perdido na segunda rodada em casa para o Rosario Central, mas marcara três gols (caindo por 5-3). Isso e a vitória maiúscula no Clásico apesar das circunstâncias suspeitas do rival alimentavam a esperança da fervorosa hinchada da Academia de que a política perdulária do presidente Lalín terminasse compensada esportivamente. O time até terminaria em terceiro, mas sem lutar pelo título. O sonho começara a virar fumaça já nas duas rodadas seguintes, ambas sem vitória – enquanto o Boca de Carlos Bianchi iniciava um recorde de 40 jogos seguidamente invictos, delimitando um recorde no campeonato argentino ainda vigente (e superando marca que era do próprio Racing, em 1966).

Sem compreensão paterna ao Lalín pródigo, já em março de 1999 seria proferida a célebre declaração da administradora falimentar do clube, pela qual “o Racing deixou de existir”. Capria iria ao Chacarita, Delgado ao Boca, Sessa ao River e a Cruz Azul levaria Latorre e Matute Morales (que seguiria lá na campanha vice-campeã dos mexicanos na Libertadores 2001). Duas décadas depois, o time pode desfrutar melhor, com relativa segurança financeira e infra-estrutural. E com um novo 3-1 para a história, marcado pelo cabeceio de Alejandro Donatti a entrar sob desvio de Guillermo Burdisso; pela raça e habilidade de Darío Cvitanich para cavar o pênalti convertido por Lisandro López; e pela jogadaça de Lisandro para matar as esperanças que remanesciam no goleiro Martín Campaña em escanteio do Rojo, aproveitando o retorno atrasado do uruguaio às próprias traves para aplicar-lhe um fenomenal drible de vaca em corrida para a história – ainda que na súmula o gol seja de Matías Zaracho e o melhor racinguista em campo tenha sido o goleiro Gabriel Arias.

Mondragón retirando-se da Doble Visera às escuras, iluminada só pela festança frenética dos visitantes

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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