Ícone do emergente Vélez, Chilavert quase foi de River e Boca. Vontade não faltou
Chilavert personificou o Vélez dos anos 90. Foram nove anos seguidos no bairro de Liniers, abarcando o período mais dourado do clube, protagonizando as conquistas sob diferentes treinadores – de Carlos Bianchi a Marcelo Bielsa, passando por Osvaldo Piazza. Mas Chila não foi imune a tentações extraconjugais da dupla mais poderosa do país, que tão bem combatia. Algo escancarado novamente há vinte anos, na capa da revista El Gráfico de 5 de agosto de 1997, na imagem à direita que abre esta matéria nada romântica.
Para começar, outra ironia para quem só conhece o Chilavert do Vélez: antes de virar fortinero, o goleiro angariara prestígio na Argentina justamente no San Lorenzo, hoje tão rival dos velezanos. Foi nos anos 80, quando o paraguaio, ainda sem a famosa barriguinha, fez parte de um elenco azulgrana apelidado de Los Camboyanos – em função do povo indochinês estoico em meio à sangrenta guerra civil interna, algo, que guardadas as muito devidas proporções, se sentia entre os sanlorencistas: uma torcida de um time sem estádio, sem bairro e sem dinheiro. Mas com jogadores lutadores, capazes de arrancarem uma campanha até as semifinais da Libertadores de 1988.
Há quem diga que a rivalidade entre Vélez e San Lorenzo teria começado por aqueles anos 80 na verdade, muito antes de La V Azulada empilhar títulos em série (tinha apenas um campeonato argentino), a incluir taças internacionais cuja ausência foi sentida até o novo milênio nas vitrines cuervas. Tudo porque, com a perda do estádio Gasómetro em 1979, o time do Papa precisou rodar por diversas canchas ao longo da “década perdida”.
Era comum o Sanloré alugar o campo do Vélez. Sua infra-estrutura acima da média, a ponto de ter sido sede na Copa de 1978 apesar de Buenos Aires também ceder o Monumental, e o ambiente são encantariam além da conta alguns torcedores azulgranas. Fato é que foi no San Lorenzo que Chilavert foi permitido pela primeira vez a cobrar uma falta. Não teve sucesso, mas, mesmo “apenas” como “goleiro-goleiro” e saindo semanas antes daquela Libertadores de 1988 começar, teve passagem muito bem reconhecida nos Camboyanos. Cavou ali sua primeira transferência ao futebol europeu.
Chilavert foi contratado pelo Real Zaragoza na ocasião, mas a princípio seguiria na Argentina. San Lorenzo e River promoveriam um troca-troca: os millonarios cederiam as promessas Néstor Gorosito, meia, e Sergio Goycochea, goleiro, por jogadores das mesmas posições, respectivamente Darío Siviski e o paraguaio. O time de Núñez havia contratado o técnico César Menotti e a revista El Gráfico chegou a publicar matéria de capa com o treinador rodeado por um Chilavert e outros reforços, como Jorge Higuaín (pai de Gonzalo). Todos, sorrindo de orelha a orelha.
Só que aquele troca-troca foi melado. Exames detectaram uma doença em Goycochea, que fez mistério a respeito, atitude que gerou boatos até de que Goyco teria AIDS. Na verdade era uma artrite, que, mesmo sem a carga de fatalidade, poderia comprometer-lhe a carreira. Os goleiros não só não foram trocados como o San Lorenzo, além de conservar Siviski, foi do mesmo jeito reforçado por Gorosito (que viraria ídolo), sem espaço em meio ao pacotão de reforços no River.
Por outro lado, a passagem pelo Zaragoza permitiu por vias tortas a chegada de Chilavert ao Vélez, ainda um clube que só tinha o título do longínquo 1968: “se deu um pouco por acaso. Eu havia cruzado com o preparador Weber quando jogava no Zaragoza e combinamos que nos íamos ver quando eu passasse por Buenos Aires. Fiz isso, e como não existiam celulares e não tinha seu telefone, me ocorreu de ligar para o Vélez, porque o preparador estava trabalhando aí. Me atendeu justo Raúl Gámez, que era dirigente do clube. Foi o destino, porque aí mesmo Gámez me convidou para que me somasse ao clube. Eu lhe respondi que no outro dia ia ao Paraguai e que tinha várias ofertas. ‘Onde estás? Bom, em uma hora vamos para aí e tomamos um café’. Me convenceram para jogar por seis meses e ao fim fiquei por nove anos”.
Vieram o título argentino em 1993, a Libertadores e o Mundial em 1994 e novo título argentino no fim de 1995, campanha em que o Vélez ultrapassou na penúltima rodada um Boca reforçado por Maradona e Caniggia e que era líder invicto até a antepenúltima. O paraguaio encerrou o ano eleito o melhor goleiro do mundo pela Federação Internacional de História e Estatísticas do Futebol (o IFFHS). Ainda é o único não-europeu a conseguir, assim como o único premiado que na época atuava fora do Velho Continente. Assim, no finzinho daquele ano a El Gráfico publicaria nova capa de Chila no River, sob os dizeres: “caro, mas o melhor”. O sorriso era ainda maior do que em 1988.
Essa capa vazou na era da internet, mas não chegou a ir às bancas. No fim das contas, o River recusou-se a pagar os três milhões de dólares pedidos – na época, o recorde mundial ainda se limitava aos treze milhões que o Milan pagou em 1992 ao Torino por Gianluigi Lentini, transferência ultrapassada em apenas duzentos mil no novo recorde, em 1996, envolvendo a ida de Ronaldo do PSV ao Barcelona. Perto do que aquele arqueiro já barrigudo e com trinta anos ainda produziria, os três milhões se mostrariam uma pechincha mesmo naquele contexto…
O Vélez foi bicampeão no torneio seguinte, em um ano marcado pelos primeiros gols de falta em série de Chilavert, que só tinha dois gols assim no currículo – o último, em 1994. E o paraguaio não poderia ter escolhido vítimas melhores: as três primeiras naquela série de 1996 foram justamente River, Boca e seleção argentina. A começar pelo Millo, que sofreu exatamente na cobrança mais famosa do paraguaio, desde antes do meio-campo, a 60 metros da meta de Germán Burgos. O Vélez venceu por 3-2.
O River logo deixou aquele Clausura 1996 de lado para focar-se na vitoriosa Libertadores. Ao longo do campeonato, o Boca mostrou-se um dos concorrentes ao título doméstico. Perto da reta final, o Vélez recebeu Maradona e colegas, então um ponto atrás, para aplicar-lhes um 5-1 de virada, com direito a expulsão do próprio Dieguito. Nessa partida, Chilavert marcou pela primeira vez dois gols no mesmo jogo, de falta e de pênalti sobre o desafeto Carlos Navarro Montoya – nunca perdoado por ter sido eleito o melhor goleiro do futebol argentino de 1994 mesmo sem troféus, enquanto Chila conseguia as taças internacionais do Fortín.
As vitórias sobre a dupla mostraram-se fundamentais em um torneio ganho por só um ponto de diferença. Após o bicampeonato, Chilavert esteve perto de sair de Liniers novamente, desta vez para a Roma, que havia contratado Carlos Bianchi. Foi por causa disso que o Vélez contratou, por sinal, Goycochea. Mas o paraguaio ficou e ao fim do ano acumulou novo título, na Supercopa Libertadores. No primeiro semestre de 1997, foi a vez da Recopa, com Chila sendo o herói da decisão por pênaltis contra o River. Quem abria o olho a ele agora era o Boca, sem títulos expressivos desde 1992 e que se desfizera de Navarro Montoya.
Os auriazuis montavam um elenco recheado de estrelas para desfazer o jejum. Além de Maradona e Caniggia, tinham diversas opções ofensivas, algo que destacamos há um mês: Juan Román Riquelme, Martín Palermo, Guillermo Barros Schelotto e o mexicano Luis Hernández, para ficar só nos mais conhecidos pelos brasileiros. Mas a defesa também era uma preocupação. Maradona abriu o bico pedindo pelo brasileiro Ricardo Rocha, de bom desempenho no Newell’s, e por Chilavert, mesmo com trocas de farpas pretéritas e futuras entre os dois: “quero que o paraguaio venha. Não quero que mude o que opina de mim. Quero que fique claro que vem para dar uma mão ao Boca. Não para que seja meu amigo”.
Ele retribuiu: “comigo e com Diego, o Boca é campeão”, estampou aquela El Gráfico de vinte anos atrás. “Nos sentando para conversar, podemos nos entender. Somos pessoas adultas”, completou. “Morro para ir ao Boca”. Para completar o alinhamento cósmico, o técnico daquele Boca era Héctor Veira, exatamente o treinador que autorizara Chila pela primeira vez a cobrar faltas, naquele San Lorenzo Camboyano. Diferentemente do River, o Boca se dispunha a arcar com três milhões, além de oferecer alguns jogadores, dentre eles ninguém menos que Riquelme. Só que agora o Vélez pedia quatro…
Ao fim, nem o brasileiro e nem o paraguaio chegaram à Casa Amarilla, que no lugar importou uma dupla colombiana do América de Cali vice da Libertadores de 1996: Sergio Bermúdez e Oscar Córdoba. Opções secundárias que se mostrariam certeiras a médio prazo: Córdoba foi o herói das duas decisões por pênaltis que decidiram o bi xeneize na Libertadores em 2000-01 e Bermúdez, o capitão. Já Chilavert, tal como contra o River em 1996, foi profissionalíssimo, mesmo às turras com Marcelo Bielsa. Quando o Vélez recebeu o Boca naquele Apertura 1997, Chila voou como poucas vezes para impedir no ângulo um golaço de falta de Maradona.
Teria sido o último gol da carreira de Dieguito, cuja admiração mostrou-se ainda maior que a escancarada amargura pelo lance, com ambos se saudando em seguida, trégua que não duraria muito além (“Maradona é comunista da Boca para fora”, dispararia o goleiro à mesma revista El Gráfico anos mais tarde). Sem o paraguaio, o River ganhou a Libertadores de 1996, mas caiu nas semis de 1998 e 1999, para brasileiros que o goleirão tantas vezes fez de freguês. E o Boca perdeu por um único ponto aquele Apertura 1997, mesmo com a oitava melhor campanha da história dos torneios curtos e sem contar com Maradona (aposentado) e Caniggia (lesionado) na reta final. Como poderia ter sido com Chila?
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