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30 anos da Supercopa do Boca, roubando a coroa de Rei do Independiente

Em 1º de novembro, lembramos os 30 anos sem Natalio Pescia, lateral-esquerdo do Boca que batiza o setor de arquibancada onde se situam os temidos barrabravas de La 12. Pescia se notabilizou em especial pela fidelidade extrema ao clube, o único que defendeu mesmo diante do maior jejum suportado pelos xeneizes até então no campeonato argentino, os dez anos entre 1944 e 1954 – altura em que ele era o único remanescente do título anterior. Essa seca foi superada pela de 1981 a 1992. Mas a torcida se permitiu a alguns desafogos no período. O mais festejado deles, talvez, seja o de 30 anos atrás, já sem Pescia presente. Afinal, era um troféu continental, o mais expressivo levantado entre as Libertadores de 1978 e 2000 (delimitando inclusive onze anos para uma e outra): a Supercopa, lograda fora de casa contra um grande rival daqueles tempos, o Independiente.

Também ainda nesse mês, lembramos os 65 anos de um ídolo comum às duas torcidas, o classudo volante Claudio Marangoni. Ele trocara um pelo outro exatamente em 1988, virando persona non grata por um tempo. Em 2007, contextualizara como estavam as rixas entre a torcida azul y oro e a roja: “o Independiente era a minha casa. A realidade é que a equipe começou a envelhecer, e tanto a mim como aos dirigentes convinha começar a fazer algumas mudanças. O que ocorre é que os dirigentes ocultaram isso, e disseram em off: ‘te vendemos, mas o custo político você paga’. Antes o Independiente não era somente uma grande equipe, e sim também uma grande instituição como é hoje o Boca. Hoje o Independiente é uma equipe de futebol e nada mais”.

O campeonato argentino de 1986-87 ficara eternizado por ver o Rosario Central campeão (mesmo vindo da segunda divisão, em raríssimo bicampeonato com a primeira) e o rival Newell’s, de vice. Só que Boca e Independiente também estiveram no páreo. Na reta final, os auriazuis perderam as chances de título exatamente em um 3-2 sofrido diante do rival na penúltima rodada, em gol de José Percudani após Marangoni concluir uma jogadaça individual e servir-lhe uma generosa assistência. Percudani, por sua vez, já era herói desde que marcara o único gol do segundo e último Mundial do Rojo, em 1984, mas aquele gol de 1988 não ficou muito atrás no contexto da época: ele viria a dizer que costuma ser felicitado três vezes ao ano – no próprio aniversário, no aniversário daquele Mundial e quando se lembram desse elétrico duelo que acabou de nada valendo a ambos. Como se não bastasse, o Independiente também levou a melhor sobre o Boca na final da liguilla, com Maranga marcando no 4-3 agregado, e o volante ainda anotaria dois gols em um movimentado 3-3 pela temporada 1987-88.

O mercado argentino da temporada 1988-89 então foi marcado pelas “traições”. Miguel Ángel Ludueña havia acabado de conquistar pelo Racing a edição inaugural da Supercopa, mas, sem acertar a renovação de contrato, não teve pudor em permanecer em Avellaneda como reforço do Independiente. Que, por sua vez, via Marangoni e também o ponta Alejandro Barberón migrarem ao Boca, que desde janeiro de 1988 já estava sob comando do mito José Omar Pastoriza – o maior técnico da história do Rojo, comandante dos títulos internacionais de 1984 em especial. Como se não bastasse, o ídolo-mor Ricardo Bochini já havia sido seriamente sondado no início de 1988 pelos xeneizes. Marangoni soltou o verbo naquela mesma entrevista: “Bochini nunca escolheu ficar exclusivamente no Independiente. Se tivesse uma oferta da Juventus, teria ido. Agora, se o torcedor do Independiente quer se enganar e fantasiar com o que ele sentia pela camiseta do clube, está bem”.

A bola entrando nas redes do Grêmio nos lances de Marangoni e Cuciuffo (o caído à direita)

O próprio Bocha não negou que a disposição em sair existiu, em 2009: “nesse momento, eu tinha problemas com [o técnico Jorge] Indio Solari, e Pedro Iso, o presidente, preferia o técnico. No fim, tudo se ajeitou”. Além do Maranga e de Barberón, Pastoriza pediu e foi atendido quanto aos reforços do zagueiro Juan Simón junto ao Monaco, do atacante Walter Perazzo junto ao San Lorenzo, de Pablo Erbín (vindo do River) e da promessa velezana Carlos Navarro Montoya para o gol. Além disso, voltava da França o velho ídolo Carlos Tapia, recordista de passagens pelo clube e vencedor da Copa de 1986. Começou o campeonato de 1988-89. O Boca estreou com uma surpreendente derrota em casa para o nanico Deportivo Armenio, em falha do veteraníssimo goleiro Hugo Gatti, que estava prestes a virar o recordista de jogos pelo time. Pastoriza não teve qualquer sensibilidade quanto a isso e Gatti não voltaria mais a ser usado, dando lugar a Navarro Montoya – que estreou com estrela, em triunfo de 2-0 em Superclásico dentro do Monumental sobre um estrelado River treinado por César Menotti.

Ao fim do primeiro turno, mesmo chegando a sofrer um infame 6-1 do San Martín de Tucumán dentro da Bombonera, o Boca liderava, igualado com o Racing. Mas, enquanto o outro time de Avellaneda decaiu vertiginosamente no segundo, os auriazuis seguiram no páreo, agora contra o Rojo. Em dezembro de 1988, o clube chorou a perda de Alberto Jacinto Armando, seu mais longevo presidente (1960-80, ele dá nome oficial à Bombonera) e a do velho ídolo Ernesto Lazzatti (foram 14 anos de Boca) para em janeiro de 1989 chegar a deter cinco pontos de vantagem na liderança. O título parecia na mão após um triunfo com gol no minuto final de Alfredo Graciani sobre o Estudiantes, mas na rodada seguinte, a 29ª, o time perdeu a ponta no duelo direto com o Independiente. A corrida seguiu mas os bosteros não recuperaram mais a dianteira, que permaneceu em favor do Rojo até o fim. Nem mesmo a liguilla pre-Libertadores serviu de consolação: em agosto, o Boca levou a pior no Superclásico que serviu de semifinal, mesmo contando com a expulsão de Daniel Passarella, no que terminou sendo a agridoce partida de despedida do zagueirão.

Bom, a liguilla era um torneio em mata-mata pós-campeonato que mantinha na ativa normalmente os oito clubes abaixo do campeão, dando vaga na Libertadores (que não ficava automaticamente com o vice). Fazia inclusive o vencedor se dar ao direito de volta olímpica. Instituída na temporada 1985-86, ela representara a grande alegria xeneize na década até então: logo na primeira edição, os auriazuis conseguiram uma façanha memorável. No jogo de ida da decisão, perderam em casa para o Newell’s, um 2-0 com dois gols de Gerardo Tata Martino. Em Rosario, o adversário abriu 1-0 e os visitantes sofreram a expulsão de Enrique Hrabina. Mas, na meia hora final, o Boca conseguiu um inesperado 4-1. Sem gol qualificado, o 3-1, já incrível, forçaria pênaltis, quando nos instantes finais o quarto saiu.

Só que de pouco adiantou: na Libertadores de 1986, o time caiu na primeira fase e viu o arquirrival River avançar no mesmo grupo e, adiante, obter seu primeiro título. A liguilla de 1986 era, de todo modo, a alegria solitária que havia desde o maradoniano Metropolitano de 1981. Só que o dinheiro em dólar gasto no astro gerou uma bola de neve nas dívidas com a repentina valorização da moeda ianque em 240%, em crise econômica nacional majorada pelo insucesso nas Malvinas. Nem a saída de Dieguito ao Barcelona ajudou a sanar a situação. Em 1984, o Boca esteve muito perto da própria extinção, também sofrendo simbolicamente a pior goleada de sua história (9-1 para o Barcelona no Troféu Joan Gamper). Oscar Ruggeri e Ricardo Gareca não estiveram no vexame por servirem a seleção, mas ambos, oásis de talento no time, forçaram uma saída para nada menos que o River no início de 1985.

Os heróis de 30 anos atrás: Navarro Montoya voa para espalmar a bola de Artime (ela ainda bateria na trave) enquanto Giunta segura a taça

Assim, em 1989 o Boca completava oito anos sem qualquer título oficial – o período de 1944-54 ao menos rendera uma Copa Británica, de caráter oficial na época, e duas Copas Fraternidad, em tempos de mais valorização de torneios amistosos. Foi sob essa seca que o time começou a temporada 1989-90, já com Carlos Aimar substituindo Pastoriza desde 25 de junho. Víctor Marchesini vinha do Ferro, José Daniel Ponce era adquirido junto ao Junior de Barranquilla, Julio Gaona saía do Deportivo Español e Raúl César, do Estudiantes de Buenos Aires, ao passo que o Godoy Cruz emprestava Carlos Moya e Hernán Almeida.

Mas os reforços que mais duraram foram os de Esteban Pogany junto ao San Lorenzo, nem que fosse para amargar anos e anos de banco para Navarro Montoyta; e o brigador Blas Giunta, que veio do Real Murcia para ser a parte destrutiva da dupla de volantes com Marangoni. Na via oposta, deixavam a Casa Amarilla o ídolo Hugo Gatti, bem como o volante Adrián Domenech. Aimar começou seu trabalho com uma excursão pelo Japão e por Los Angeles, com ele e os titulares voltando à Argentina com a temporada 1989-90 em pleno andamento. Os dois jogos iniciais foram adiados, com o time estreando já na 3ª rodada, perdendo de 1-0 para o Deportivo Español. Sobreveio então um 1-1 com o Vélez pela 4ª e depois o compromisso adiado da 2ª: um Superclásico vencido pela contagem mínima, gol de cabeça do saudoso José Luis Cuciuffo.

O triunfo não serviu muito para engrenar o time no campeonato, ainda que não voltasse a perder desde a estreia até a 13ª rodada, já na altura de 29 de outubro (o Platense venceu de 1-0 dentro da Bombonera). Àquela altura, havia escusa: o Boca estreara na Supercopa nas datas de 19 e 26 daquele mês, em duelos caseiros contra o Racing, pelas quartas-de-final de uma competição toda em mata-mata. Ela começava ainda nas oitavas, mas a Academia, como detentora do título, foi contemplada com a inclusão na fase seguinte. O restante dos participantes estava em número ímpar e no sorteio o Boca foi favorecido a também começar na segunda fase. O jogo de ida foi na Bombonera, sem sair do 0-0. Mas no Cilindro os visitantes se sobressaíram: Ponce abriu o marcador de pênalti logo aos 5 minutos. Néstor Fabbri até igualou aos 14, mas outro certeiro cabeceio de Cuciuffo em um escanteio deu números finais ao jogo ainda aos 15 do segundo tempo.

O Boca então empatou em 2-2 fora de casa com o San Lorenzo pela 14ª rodada para, em 8 de novembro, visitar o Grêmio recém-campeão da primeira Copa do Brasil, mas incapaz de marcar algum gol no Olímpico; colhendo o 0-0 em Porto Alegre, o Boca emendou novo 0-0, agora pela liga nacional (contra o Talleres, em casa), para receber os gaúchos em 16 de novembro. Com 24 minutos de jogo, o placar já exibiria o resultado final de 2-0. Aos 15, Marangoni acertou no ângulo de Mazarópi um chutaço de fora da área em bola afastada pela defesa tricolor – com direito a um feliz cumpleaños das arquibancadas pelo seu 35º aniversário no dia seguinte. Depois, Cuciuffo fez valer seu ótimo jogo aéreo para cabecear um longo lateral levantado na área. Em um tiro-curto de 40 dias, o clube já se via à espreita de um título oficial. Pela frente, o Independiente, que vinha de eliminar no placar agregado o Santos por 4-1, o Atlético Nacional (campeão da Libertadores meses antes) por 4-2 e o Argentinos Jrs (que tirara Flamengo e Cruzeiro) por 3-1.

O lance do desafogo: um chute cru no meio do gol, mas efetivo, desferido por Giunta

Em 19 de novembro, novo empate seguido no campeonato argentino, em 1-1 em visita ao Racing. Três dias depois, a Bombonera recebeu o outro time de Avellaneda. O grito de campeão precisou ficar entalado, pois a experiência copeira maior do Rojo prevaleceu, segurando o 0-0 a despeito de ótimos trinta minutos exibidos pelos donos da casa ao longo do segundo tempo. Até então, a campanha morna no campeonato argentino ainda vinha empregando os titulares, mas Cai Aimar não teve dúvidas no dia 22: os reservas entraram em campo na Bombonera para receber o Gimnasia, incluindo o goleiro Pogany (que se acostumaria a ser banco mesmo em jogos assim). O time de La Plata abriu 3-1 e terminou vencendo mesmo por 3-2. Três dias mais tarde, afinal, viria a noite mais cara aos xeneizes em quase dez anos. Ao Independiente, era a chance de encerrar jejum internacional de cinco anos, tempo demais a uma torcida mal acostumada.

Assim, 60 mil pessoas encheram a Doble Visera. Foi a vez dos auriazuis darem algum troco, empregando uma firme defesa que só sofrera um gol até então na campanha, reforçada por uma meiúca não menos combativa com Giunta e Marangoni. Quando acionado, o (contra)ataque tinha na velocidade de Graciani um perigo constante. Mesmo as substituições feitas por Aimar não foram retranqueiras, ao trocar já aos 20 do segundo tempo Graciani por Walter Pico e aos 31 colocar Sergio Berti no lugar de Perazzo. Se nos anos 90 ambos se firmaram como volantes, na época ainda eram jogadores ofensivos. La Bruja Berti, inclusive, viria a ser um raríssimo campeão continental pela dupla principal do país, ao vencer pelo River a Libertadores de 1996 e a própria Supercopa em 1997.

O ídolo Bochini, lesionado e ausente de todo o jogo de ida, só foi colocado em campo na meia hora final. Mas nem El Bocha evitou que o 0-0 se repetisse em Avellaneda. Tampouco o ingresso de Luis Fabián Artime faltando cinco minutos, no lugar de Carlos Alfaro Moreno. Luifa tinha o peso do sobrenome do pai, o superartilheiro Luis Artime, que mesmo sempre tendo coração racinguista brilhara no Rojo (e no River, e no Palmeiras, e no Nacional e, claro, na seleção…) nos anos 60 como uma espécie de Gerd Müller argentino. Estavam forçados os pênaltis. Que terminariam cruéis a esse lado.

O Boca abriu os trabalhos com Ponce. Osvaldo Bianco. Marchesini. Ricardo Altamirano. Diego Latorre. Rubén Insúa. Ivar Stafuza: todos os chutadores vinham convertendo. Até chegar na vez do Luifa Artime, na quarta cobrança da casa. Ele buscou o canto esquerdo de Navarro Montoya, mas El Mono voou bem e espalmou uma bola que ainda bateu na trave antes de voltar ao gramado. Restava ao Boca fechar o caixão e a cobrança recaiu precisamente no jogador mais reconhecido pelos colhões, ressaltados em cânticos a si desde os tempos em que defendia o San Lorenzo: El Huevo Giunta. Fiel a seu estilo sem sutilezas, ele acertou uma efetiva bomba no meio do gol enquanto o goleiro uruguaio Eduardo Pereira escolhia pular no canto esquerdo. O Artime filho (crueldade: o pai faria aniversário cinco dias depois…) também não vingaria pelo San Lorenzo e precisou reconstruir a carreira no Belgrano, vindo a se sobressair como o maior artilheiro do time cordobês.

Os campeões só jogaram mais duas vezes em 1989 pelo campeonato, com mais dois empates seguidos. O time conseguiu uma sequência razoável após a pausa de verão, saltando para um terceiro lugar embora não chegasse a brigar pelo título. Estava satisfeito também com a obtenção da Recopa, em março de 1990, em jogo-único com o Atlético Nacional em Miami. Seria a sina do clube até finalizar o incômodo jejum doméstico em dezembro de 1992: festejar essas Copas menores da Conmebol, o que incluiu até a primeira Copa Master, já em maio de 1992, torneio de apenas três edições esparsas a reunir os vencedores da Supercopa – que por sua vez era o torneio que reunia os vencedores da Libertadores.

Como campeão da Copa Master e com o jejum argentino já finalizado, ainda levantou-se em 1993 a primeira Copa Ouro, um quadrangular que envolvia os vencedores de 1992 da Libertadores, da Supercopa, da Copa Conmebol e da Master. Caráter caça-níquel à parte, esses troféus começaram a pesar para fazer os xeneizes se apropriarem gradualmente da alcunha tão cara ao lado derrotado há 30 anos – o de novo Rey de Copas da Argentina. Tardaria, mas a revanche do monarca original viria, na final de 1994 da Supercopa. É outra história já contada nesse mês de novembro, nesse outro Especial.

O técnico Aimar extravasa na Doble Visera. Repetiu o figurino em Miami, erguendo à direita a Recopa entre Soñora, Latorre e Moya

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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