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50 anos dos (muitos) gols amanteigados do Boca: Sergio Daniel Martínez

Símbolo de um Boca que atravessou relativa seca nos anos 90, Martínez foi de Adidas com leite Parmalat à Nike com cerveja Quilmes

Foram só dois títulos por um clube feito o Boca, mas muitos gols, especialmente em Superclásicos, bastaram para garantir idolatria eterna a Sergio Daniel Martínez. O corpo esguio e de aparência escorregadia renderia o apelido de Manteca (“Manteiga”), mas enganava: como um legítimo representante da garra charrua, esbanjava raça e não afastava a perna nas divididas, outros predicados essenciais para gerar identificação com a massa xeneize – assim como as comemorações explosivas de alguém que fora do campo sempre foi tímido. Hoje Manteca Martínez faz 50 anos. Presente no ranking dos dez maiores artilheiros do time, sua estadia de 1992 a 1997 chegou a fazer dele o maior goleador que os auriazuis tiveram desde os anos 50. Vale relembrar esse carismático atacante que soube ainda vestir os mantos de Peñarol e Nacional.

Martínez foi revelado nas generosas categorias de base do Defensor, em 1986. O clube do Parque Rodó aproveitou como ninguém o período de dominação dos quadros chicos que o campeonato uruguaio viu entre 1987 e 1991: nem Peñarol e nem Nacional, focados na Libertadores, venceram o torneio doméstico, que rodou entre os violetas (1987), o Danubio (1988), Progreso (1989), Bella Vista (1990) e de novo o Defensor em 1991 – afinal, não era o título uruguaio que rendia a classificação ao torneio continental, e sim a posterior liguilla. Na conquista de 1987, o clube, aproveitando que o Peñarol se ocupava com seu último título na Libertadores e o Nacional vivia problemas internos, teve em Gerardo Miranda o artilheiro do torneio e natural referência ofensiva, mas Manteca não passou despercebido: em 27 de setembro de 1988, estreou pela seleção uruguaia, pela amistosa Copa Boquerón com Equador e Paraguai.

Pela Celeste, jamais se firmou na titularidade, o que explica os parcos cinco gols em 35 jogos: só atuou uma vez no vice da Copa América em 1989 (contra o Equador) e uma na Copa do Mundo de 1990 (contra o Coreia do Sul), para a qual foi ainda como jogador do Defensor. Ainda como violeta, vitimou pela primeira vez o River, no duelo em casa pelas oitavas da Libertadores de 1990, sem evitar duas derrotas de 2-1. Treinado por César Menotti, o Peñarol então trouxe para si o Manteca em 1991. Não era um ano qualquer aos carboneros, que celebravam seu centenário – ao menos para si, que se consideram herdeiros do CURCC, ao passo que o rival Nacional sempre defendeu que os aurinegros surgiram somente em 1915, ótica pela qual os tricolores teriam mais títulos uruguaios. Embora não ameaçasse o campeonato ser logrado exatamente pelo Defensor (o que custou o cargo de Menotti), os manyas sonharam com a Supercopa: Martínez até marcou dois em 3-2 sobre o Racing nas oitavas e outro em novo 3-2, sobre o Santos, nas quartas.

Na semifinal, o time deixou Buenos Aires com derrota magra de 2-0 para o River. Mas não soube revertê-la em casa: perdeu outra vez, por 3-1. Restou a alegria de vencer do “clássico sem goleiro”, com o gol de Martínez sendo o único no duelo com o Nacional – embora o protagonismo tenha ficado com Jorge Gonçalves, defensor que improvisou-se no gol nos 15 minutos finais após Fernando Álvez ser expulso sem que pudesse se fazer substituições. Mas a crise acentuou-se com a nova ausência na Libertadores após um gol mal anulado no clássico com o Nacional na partida decisiva da liguilla. Tampouco houve recuperação em novo campeonato uruguaio; o Peñarol ficaria em quinto, mas Martínez fazia seus gols. Sairia do time em agosto, mas terminaria o ano como artilheiro anual com nove gols, empatado com Adrián Paz e Diego Aguirre. Atravessou o Rio da Prata para reencontrar o técnico que lhe levara à Copa do Mundo: o Maestro Oscar Tabárez, que desde 1991 tinha sob a batuta o Boca.

Embora tenha figurado no Mundial de 1990, as desventuras do Peñarol impediram que Martínez fosse alguém conhecido ao aportar no novo clube. A contratação estrangeira mais chamativa era a de Charles, brasileiro indicado por ninguém menos que Maradona. Também chegaram outro uruguaio, Rubén Pereira (também da Copa 1990), e o paraguaio Gustavo Neffa, com currículo pela Serie A italiana. Mas quem vingaria seriam El Manteca e três novidades domésticas: o lateral Carlos Mac Allister, o meia Beto Carranza e o ídolo Carlos Tapia, reserva da Copa de 1986 que iniciaria sua quarta passagem pelo clube, um recorde. Tal como o Peñarol, o Boca vivia uma crise de identidade: a despeito de ter faturado a Supercopa em 1989 e a Recopa em 1990, sofria o pior jejum nacional de sua história. Eram onze anos pendentes desde o maradoniano Metropolitano de 1981, seca que nem Gabriel Batistuta conseguira afastar apesar do ótimo desempenho que tivera no ano anterior (em performances que o levaram à seleção e à Fiorentina ainda em 1991): os xeneizes sofreram um traumático vice em casa.

As camisas uruguaias de Martínez: deixou seus gols nos clubes e nem tanto na seleção, mas converteu o pênalti do título da Copa América de 1995

Tabárez já era o técnico àquela altura e terminou mantido; na temporada 1991-92, o clube fora vice no Apertura e ficara a três pontos do campeão no Clausura. Para o Apertura da temporada 1992-93, não houve mais margens: o time, embora eliminado já no primeiro duelo da Supercopa, ficou invicto nas primeiras quatorze rodadas do torneio doméstico. Essa invencibilidade incluiu uma sequência de oito jogos sem sofrer gols, uma marca ainda não superada no clube. Martínez só fez seu primeiro gol já na sexta rodada (2-2 com o Huracán), mas começou a ficar mais imune a críticas na décima: era contra o River e ele aproveitou um rebote de Ángel Comizzo em falta cobrada por José Luis Villarreal para marcar o único gol do Superclásico. A comemoração de Martínez, escalando as grades sem camisa, seria imortalizada nas retinas xeneizes. Ele também abriu o placar em 3-0 sobre o Rosario Central já na rodada seguinte. O caráter decisivo reapareceu na reta final, com três gols nas últimas quatro partidas: 1-1 na visita ao Racing, na surpreendente derrota em casa por 3-2 para o Deportivo Espãnol (resultado que pôs fogo no campeonato, permitindo que justo o River se aproximasse) e 3-1 na visita ao Platense.

Martínez começava a fazer uma dupla sólida com o paraguaio Roberto Cabañas e a quebra do tabu repercutiu na outra margem do Rio da Prata: com o campeonato argentino na reta final, Martínez foi usado em amistoso com a Polônia em 29 de novembro. Com a prata olímpica, os polacos conseguiram vencer por 1-0 no estádio Centenário, mas o atacante tornou-se só o segundo jogador que a Celeste importou do Boca; até os anos 70, não se convocava quem atuasse fora do país. Desde então, só o foguete molhado Ariel Krasouski tivera vez, em 1981, com o reconhecimento escapando ao superartilheiro Fernando Morena (de péssima passagem no péssimo 1984) e ainda a Hugo Lacava (anos 70), Julio César Balerio (1984-86, defenderia o Peru nos anos 90), Richard Tavares (1987-89) e os obscuros Milton Sánchez e Julio Morales no início dos anos 90.

Individualmente, o melhor de Martínez estaria por vir: esteve a um gol da artilharia do campeonato seguinte, o Clausura 1993, incluindo um em vitória por 2-0 sobre o River dentro do Monumental e nos outros “clássicos”: na derrota de 4-3 para o San Lorenzo, no 1-1 com o Independiente em Avellaneda e no 1-0 sobre o Racing. Mas o time empatou nove dos dezenove jogos e ficou só em 8º, rendendo na saída de Tabárez. Em julho, porém, deu-se ao gosto de um novo título continental, na primeira edição da Copa Ouro: era um quadrangular entre os vencedores de 1992 da Libertadores (São Paulo), da Copa Conmebol (Atlético), da Supercopa (Cruzeiro) e da Copa Master, o próprio Boca, que se viu enfrentando três brasileiros. Martínez foi o homem da classificação à decisão, na semifinal contra um São Paulo que acabara de ser bi da Libertadores: a três minutos do fim, fez o único gol na Argentina e liquidou o retorno já aos 45 segundos da prorrogação. O Tricolor havia devolvido o 1-0, gol do argentino-uruguaio Gustavo Matosas, mas El Manteca decretou a classificação com uma novidade regulamentar: o chamado gol de ouro. Na decisão, os argentinos bateram o Atlético.

Sob essa ressaca, o time começou muito mal no Apertura 1993, com seis gols marcados nos oito primeiros jogos – com quatro vitórias e quatro derrotas. Também caiu na primeira fase da Supercopa. O técnico Jorge Habbeger deu então lugar ao sábio César Menotti, que deslanchou o time. Só viria outra derrota, com o grande momento sendo um 6-0 em um Racing que liderava o torneio. Nesse jogo, Martínez conseguiu um hat trick. O uruguaio, que se salvava na mediocridade, manteve o nível naquele salto coletivo de rendimento e obteve sua primeira artilharia no campeonato argentino, embora a melhora tenha começado tarde demais: por dois pontos a mais, o campeão foi o River. Para o Clausura 1994, o embalo parecia mantido com duas vitórias nas rodadas iniciais no embalo de três gols do uruguaio, que fez os dois xeneizes no 2-1 em visita ao Estudiantes e outro em 2-0 no Huracán. Martínez até terminou na vice-artilharia, mas o clube voltou a ser errático e só ficou em sétimo.

Em paralelo, o time passou vexame na Libertadores, com direito ao famoso 6-1 sofrido para o Palmeiras (foi do uruguaio o gol de honra, de pênalti) e à derrota para o Cruzeiro na Argentina, no primeiro revés para brasileiros na Bombonera desde a final da edição de 1963 contra o time de Pelé. No duelo em Minas, Martínez voltou a fazer o gol em outra derrota, de 2-1. Menotti ainda perdurou mais um tempo, mas seu ciclo chegou ao fim no Apertura 1994, com o time em 13º lugar, com mais derrotas (sete, incluindo um 3-0 sofrido diante do arquirrival na Bombonera) do que vitórias (cinco) embora em paralelo avançasse à final da Supercopa. Na decisão, Martínez marcou no 1-1 no duelo de ida contra o Independiente. Em Avellaneda, o Rojo havia caído por 4-1, com gol de Martínez, em um dos parcos triunfos auriazuis no Apertura, mas no jogo mais importante venceu por 1-0 e faturou a taça. El Manteca, como de costume, se salvava: foi o vice-artilheiro do Apertura, abaixo do compatriota Enzo Francescoli.

Marcando no River o gol da vitória em seu primeiro Superclássico, no redentor Apertura 1992, para o desconsolo de Ramón Díaz (camisa 9): ali começou a idolatria

Após um tempo sob comando interino de Enrique Hrabina, o Boca recontratou para 1995 o mesmo treinador do maradoniano título de 1981, o ex-lateral Silvio Marzolini. De fato, o time ficou sem perder as sete primeiras partidas. Martínez destacou-se por um hat trick em 4-1 no Deportivo Español e por deixar outro na maior vitória xeneize sobre o Independiente, um 5-0. O clube, porém, perdeu fôlego na reta final, parando no 4º lugar. Nada que impedisse Martínez de figurar com a Celeste na Copa América sediada no seu Uruguai. Embora só tenha sido titular no jogo final da primeira fase (o ataque titular era com Marcelo Otero, do Peñarol, e Daniel Fonseca, da Roma, havendo ainda Rubén Sosa como opção de banco) e não marcasse gols com bola rolando, simbolizou o título ao converter em Taffarel o último penal na decisão por pênaltis contra o Brasil tetracampeão.

No Boca, por sua vez, a reação para o Apertura foi contratar ninguém menos que Maradona e Claudio Caniggia, o que relegou o uruguaio – ele só marcou quatro gols no Apertura e outros quatro no Clausura (onde só atuou cinco vezes) da temporada 1995-96, ambos torneios em que o time cheirou o título faltando três rodadas, mas sequer terminou no pódio. Em paralelo, caiu ainda na primeira fase da Supercopa 1995. Maradona e Caniggia tiraram então um ano sabático cada (Diego para tratar-se das drogas novamente, Cani para recuperar-se do suicídio da mãe). Inicialmente, porém, Martínez foi outra figura ausente, sem jogar entre outubro e janeiro. Foram só duas partidas pelo Apertura, outro torneio em que o time mais perdeu do que ganhou, custando o cargo de Carlos Bilardo. Para o Clausura 1997, o Boca ousou de novo para o posto de técnico, substituindo Bilardo com o treinador campeão da primeira Libertadores e Mundial do River: Héctor Veira, que fazia bom trabalho no clube mais associado a ele, o San Lorenzo.

O time não engrenou, com igual número de derrotas e vitórias (seis cada), mas Martínez obteve sua segunda artilharia no campeonato argentino – com direito a duas partidas com quatro gols dele: o 4-1 sobre o Huracán Corrientes e o 6-1 no forte Gimnasia LP dos gêmeos Schelotto. Manteca engatou boa dupla com Diego Latorre, autor de dos outros dois gols nesse jogo. Eles também se sobressaíram em um Superclásico histórico, em que o Boca, nos primeiros 30 minutos, abriu 3-0 em pleno Monumental, placar que seria maior se um pênalti não fosse desperdiçado. Martínez marcou duas vezes, mas também foi expulso ao matar a bola com a mão – o vídeo do duelo eletrizante está ao fim do texto. O rival conseguiu alcançar o empate, embora não evitasse um tabu sem vitórias na própria casa entre 1992 e 1999. Por outro lado, a relativa estiagem de títulos era um incômodo para o Boca, que reforçou enormemente seu ataque no segundo semestre: Maradona e Caniggia voltaram e chegaram os gêmeos Schelotto, Martín Palermo, Nolberto Solano, até o mexicano Luis Hernández.

Figurante na Copa América de 1997, o uruguaio atuou só na segunda rodada do Apertura, em 30 de agosto, e depois disso jogou uma vez mais, saindo do banco em amistoso contra o Peñarol em 9 de outubro. A artilharia do torneio anterior seguia fresca na Europa e o Manteca enfim rumou para lá, contratado pelo Deportivo La Coruña. Martínez saiu do Boca deixando 87 gols em partidas de competições oficiais e outros dez em amistosos. Considerando só os “oficiais”, era o oitavo maior artilheiro do clube, com um detalhe: todos os homens à sua frente eram anteriores aos anos 50, tempos menos retrancados do futebol – Roberto Cherro, Francisco Varallo, Domingo Tarasconi, Jaime Sarlanga, Mario Boyé, Delfín Benítez Cáceres (único estrangeiro com mais gols que Martínez) e Pedro Calomino. O uruguaio desde então só foi ultrapassado por Palermo, que lhe superou ainda em 2000 e depois tornou-se o maior artilheiro do clube. Apesar do feito, o Manteca não decolou no futebol europeu, sendo subutilizado em La Liga; isso também se refletiu na seleção, que não contou mais com ele após 20 de julho de 1997. Em 2000, voltou ao Uruguai para virar a casaca, contratado pelo Nacional.

O passado aurinegro trouxe desconfiança e pouca paciência inicial à torcida tricolor, especialmente com a eliminação na Libertadores nas oitavas após um 3-0 em Montevidéu sobre o Bolívar (Martínez fez o terceiro): na altitude, o oponente devolveu o placar e levou nos pênaltis. O veterano respondeu com gols, muitos, incluindo nas duas finais travadas contra o arquirrival pela temporada (em vitória de 1-0 e empate em 1-1); a invencibilidade no Superclásico uruguaio fora mantida também na temporada regular, onde só o Defensor conseguiu vencer o Nacional. Não era um festejo qualquer: fazia 48 anos que o clube não superava o Peñarol quando o campeonato precisava ser decidido em finais. Em 2001 o protagonismo ofensivo foi assumido por Richard Morales e Sebastián Loco Abreu, mas Manteca e outro ilustre veterano que lhe acompanhava no banco, Rubén Sosa, puderam pendurar as chuteiras em alta, com novo título. Deixou ao todo 32 gols pela equipe do Parque Central e idolatria reconhecida pelo livro Héroes de Nacional. Nada comparada à angariada na terra rival, onde os gritos de “U-ru-guayo!” destinados a Rubén Paz no Racing e a Francescoli no River tinham nele o destinatário xeneize

A “Stairway to Heaven” definida pela El Gráfico sobre aquele primeiro gol no Superclássico, que já atraía turismo brasileiro (?). À direita, eliminando com gol de ouro em 1993 o São Paulo bi da Libertadores
https://www.youtube.com/watch?v=fVkWijj4JpY
 

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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