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20 anos do 1º título internacional de um gigante: a Mercosul do San Lorenzo, sobre o Flamengo

“O estrondo baixa desde muito alto. É noite, mas o céu comparte sua habitual cor azul com o grená. Ali em cima há um conclave de almas eufóricas. (…) É a grande noite de todos os santos. (…) É a festa do San Lorenzo, mais que um nome em homenagem ao clérigo que arregaçou a batina para dar a aqueles garotos de Boedo a possibilidade de converter-se em campeões do futebol e da vida. (…) Alegria por cada canto de Boedo, Almagro, Pompeya e do Bajo Flores. (…) Assim na terra como no céu”.

Muito antes de um outro conclave, em 2013, se ligar ainda mais à trajetória do San Lorenzo, foi com as palavras acima que a revista El Gráfico abriu a edição especial dedicada à Copa Mercosul de 2001, última edição do torneio que precedeu a atual Copa Sul-Americana. Se a sigla CASLA ainda significou Club Atlético Sem Libertadores da América até 2014, o Club Atlético San Lorenzo de Almagro ao menos pôde ter pequenos desafogos em 2002, ano em que de uma vez conseguiu justamente emendar a última Mercosul (em janeiro) com a primeira Sul-Americana (em dezembro). O primeiro dos troféus veio sob turbulências internas e externas há exatos 20 anos. Já contamos a sina sanlorencista nos dez anos daquele senhor acontecimento (clique aqui) e também nos quinze (aqui). Mas vale dissecar em maior profundidade o contexto suportado da primeira glória continental do time do Papa.

O propósito da Copa Mercosul

Primeiramente, um contexto do próprio torneio. Em 1988, a Conmebol criou a Supercopa Libertadores, a reunir somente os times já vencedores da Libertadores em uma competição para camisas bem seletas. O problema é que a Supercopa não evitava que mantos de peso tradicional e apelo comercial ficassem de fora. Em 1992, foi a vez de criar a Copa Conmebol, projetada como um paralelo à Liga Europa da UEFA (então Copa da UEFA), como um torneio continental de consolação aos melhores times abaixo dos campeões nacionais. Isolado da Supercopa e padecendo de um jejum nacional entre 1974 e 1995, ao Sanloré restava basicamente jogar pela consolação. E nem ali se dava bem, gerando os cânticos “nem a Conmebol!” das torcidas rivais.

A Supercopa foi disputada até a edição de 1997 e, como a Libertadores, teve no Independiente seu maior campeão (bi, em 1994 e 1995). Inclusive, também como na Libertadores, todos os outros quatro grandes argentinos também a tinham na vitrine: o Racing venceu a de 1988, o Boca ganhou a de 1989 e o River, a de 1997… e, igualmente como na Libertadores, mesmo o Vélez (a intrometer-se entre os grandes nos anos 90, fomentando uma rivalidade acesa com o Ciclón) teve a sua Supercopa, a de 1996. A Copa Mercosul surgiu em 1998 para ampliar a Supercopa com mais clubes de peso e atratividade: o Palmeiras, também ainda virgem na Libertadores, foi inclusive o campeão de uma edição que teve ainda Corinthians (idem), Cerro Porteño, Universidad de Chile, Universidad Católica (ainda não campeões de La Copa) e, claro, o San Lorenzo.

Não bastava invadir o campo: era preciso levar tufos do gramado como recordação da noite histórica

Em contrapartida, o Argentinos Jrs e o Estudiantes, em péssima fase nos anos 90, na qual apareciam na Supercopa até na “qualidade” de clubes de segunda divisão e de torcida bem menor, foram solenemente ignorados ali como também em 1999, edição que novamente teve como convidados de honra Católica, Cerro, Corinthians, San Lorenzo e La U – torneio ocorrido pouco após o primeiro título palmeirense na Libertadores. Também foi o ano da edição final da desvalorizada Copa Conmebol, em insólita final em que o Talleres venceu o CSA e pôde-se dizer campeão continental antes do San Lorenzo, assim como o Lanús já podia desde 1996. Os gritos precisavam ser atualizados para “nem a Mercosul”, torneio em que os azulgranas, ansiosos diante da sina, costumavam ser os únicos argentinos a encararem com seriedade.

Para a edição de 2000, pela primeira vez mesclou-se convites com algum critério técnico do campeonato argentino. O Rosario Central, vice do Apertura 1999, classificou-se assim. Por outro lado, a quase extinção do Racing em 1999 tirou a equipe de Avellaneda do certame, como já fazia com Argentinos Jrs e Estudiantes. Os outros três grandes já campeões da Libertadores e o Vélez, além do Central, bateram cartão junto à Universidad Católica, Universidad de Chile, Cerro Porteño, Corinthians, San Lorenzo e, dessa vez, também o Atlético Mineiro, vice do Brasileirão de 1999 e ainda distante do redentor 2013.

A temporada argentina de 2000-01 foi então marcada por um desfecho curioso no Clausura. O San Lorenzo, no embalo de onze vitórias nas onze rodadas finais, venceu o torneio com direito a um recorde de pontuação na era dos torneios curtos (47 pontos, nunca igualados por outro clube). Mas o início irregular no certame fizera com que fosse preciso contar com ajudinha do tradicional rival Huracán, que ansiava justamente a classificação pelo critério técnico à Copa Mercosul 2001. Na penúltima rodada, o vizinho realmente venceu o concorrente sanlorencista, o River, embora no fim das contas a vaga técnica ficou com o Talleres, quarto colocado na soma das tabelas de Apertura e Clausura – o pódio nessa soma já era de San Lorenzo, River e Boca.

O técnico era o chileno Manuel Pellegrini: à esquerda, na primeira final, no Maracanã. À direita, com Romeo, o artilheiro daquela Mercosul

Novamente, o Racing não foi convidado, assim como Argentinos Jrs e Estudiantes, ao contrário de Cerro, Católica, Corinthians, La U. Novamente, o Sanloré também estaria no páreo. E sem precisar chorar por um convite, após ter solucionado em alto estilo no primeiro semestre de 2001 um relativo jejum de seis nos no campeonato argentino. Critério técnico sobrava.

Um San Lorenzo campeão e intranquilo

A alegria cuerva parecia se renovar em julho, quando o xerife Fabricio Coloccini e o maestro Leandro Romagnoli se consagraram campeões mundiais em casa pela seleção sub-20. Coloccini, que pertencia ao Milan, logo foi requisitado de volta pelos italianos, apenas para ter seu empréstimo repassado ao Alavés (recém-vice da Copa da UEFA para o Liverpool, é verdade) para a temporada europeia 2001-02. Outro a partir à Europa foi o caudilho Eduardo Tuzzio, único vencedor do Clausura 2001 a remanescer da campanha campeã anterior, no Clausura 1995. Único entre os jogadores, pelo menos: o roupeiro Salvador Ormaechea já tinha 31 anos de dedicação que ia da organização de roupas e chuteiras a feiras e repelentes.

Miguel De Lorenzo, o massagista, tinha menos tempo de casa, apenas nove anos. Em compensação, histórias não faltavam a um verdadeiro Forrest Gump do futebol argentino. Conhecido apenas como Galíndez pela incrível semelhança física com o pugilista argentino Víctor Galíndez (campeão dos pesos médios nos anos 70), ele já havia dado voltas olímpicas continentais e mundiais nada menos que pela seleção (Copa do Mundo 1986, Copas América 1991 e 1993), Boca (Libertadores 1977 e 1978, Mundial 1977) e River (tudo em 1986), além de acompanhar Maradona no Argentinos Jrs, no Barcelona e no Napoli. Carimbou por completo quatro passaportes na vida, embora no Brasil se lembre dele basicamente apenas como o trapaceiro que entregou a Branco aquela água em 1990. Virou em 2002 o único homem que se pode dizer campeão continental pelo trio de ferro de Buenos Aires, embora a façanha não o livrasse de uma depressão comunicada já em 2003.

O pé-quente massagista Galíndez já havia ganho Libertadores e Mundial pela dupla Boca e River e a Copa do Mundo pela Argentina. Agora ganhava o continente pelo San Lorenzo

Dos titulares do Clausura, as baixas se resumiam a Coloccini e Tuzzio, embora reservas importantes também não seguissem para o restante de 2001: o atacante Sebastián Loco Abreu, que ainda pertencia ao Deportivo La Coruña, teve seu empréstimo direcionado ao Nacional do seu coração. O goleiro Gustavo Campagnuolo, titular em um terço da campanha campeã, era do Valencia e foi repassado pelos espanhóis ao Racing. Em compensação, a defesa ganharia um talismã no torcedor Diego Capria, que já havia se destacado na Mercosul 2000 pelo Atlético Mineiro. E para suprir a saída de Abreu, voltou um atacante ainda mais ídolo na história cuerva: Alberto Acosta iniciaria sua quarta passagem pelo San Lorenzo. Brilhara nas outras três, mas jamais conseguira algum título no clube.

Mesmo do alto dos seus 34 anos, Beto Acosta havia sido o matador em 2000 de um Sporting campeão português após 18 anos – e que já era um velho conhecido também do treinador cuervo, o chileno Manuel Pellegrini, quando se enfrentavam do outro lado da cordilheira (Pellegrini comandado a Universidad de Chile e Acosta goleando pela Católica). A ambição inicial de Acosta, a bem da verdade, era apenas chegar aos cem gols na elite argentina. E havia quem já estava no time campeão, mas começaria a ter mais espaço, como o zagueiro paraguaio Claudio Morel Rodríguez (cujo pai, Eugenio Morel Bogado, havia vencido a segunda divisão de 1982 com o San Lorenzo junto ao goleiro Rubén Cousillas, agora treinador de goleiros) ou outro beque, Jorge Serrizuela, que estava lesionado (e cujo irmão, José Serrizuela, jogara a Copa de 1990 e vencera no Independiente as Supercopas de 1994 e 1995).

De resto, as figurinhas do Clausura 2001 seguiam no plantel treinado por Manuel Pellegrini: desde o habilidoso Walter Erviti, campeão de PlayStation no plantel, vício que o fazia tomar banho em menos de três minutos e sequer secar-se (desenvoltura também atribuída a Romagnoli), enquanto o zagueiro Horacio Ameli e os volantes Pablo Michelini (a pessoa em destaque na foto que abre essa matéria) e Leo Rodríguez passavam a ser acompanhados por Capria como preparadores oficiais de mate. No gol, Sebastián Saja seguiria detendo a marca de mais superstições do grupo, reservando roupas claras ao Apertura 2001 e pretas a noites continentais e pedido ao roupeiro Ormaechea que parasse tudo o que estivesse fazendo para calçar-lhe as luvas. Embora jurasse que a quantidade de moças que o buscavam após cada partida se deviam a virtudes dele e não crendices. No ataque, o talismã Raúl Estévez seria desfalque por suspensão para os primeiros jogos. Mas o goleador Bernardo Romeo estava afiado como nunca.

Outro campeão anônimo: o roupeiro Salvador Ormaechea estava desde 1970 no San Lorenzo. Na foto, com o goleiro Sebastián Saja

A pré-temporada, nos EUA, serviu para batizar o juvenil Leonardo Di Lorenzo, a passar pelo trote da raspagem de cabelo pelos apetrechos manejados por Acosta, Ameli e Estévez, e para notar-se que o próprio Di Lorenzo era um dos poucos com alguma desenvoltura na língua inglesa (junto ao técnico Pellegrini, aos reservas Aldo Paredes e Lucio Filomeno e ao curinga Guillermo Franco, depois naturalizado pela seleção mexicana) enquanto Romagnoli não mandava nem um What’s your name?. O clima de camaradagem era propiciado também por 20 dos 30 jogadores do plantel serem pratas-de-casa, ainda que alguns não entrassem em campo: Jonathan Santana (que se naturalizaria paraguaio e assim iria à Copa 2010), Leandro Álvarez, Roberto Cornejo, Maxi Bevacqua, Juan González e o goleiro reserva José Ramírez nunca deixariam o banco, embora fossem ocasionalmente relacionados. Único totalmente de fora das súmulas foi um jovem Agustín Orión, terceiro goleiro e espectador de luxo que “soube festejar com o mesmo fervor dos consagrados”, nas palavras daquela El Gráfico especial.

Mas nem tudo eram flores em Bajo Flores. O clube evoluíra em relação à instituição que nem estádio próprio tinha entre 1979 e 1993, como reconhecido pelo veterano Leo Rodríguez, habilidoso meia (fora reserva de Maradona na Copa de 1994) daqueles carnavais sem pompa e que havia voltado após dez anos a tempo de ter faturado o Clausura: “eu saí de um San Lorenzo pobre, que alugava estádio, que tinha uma roupa desastrosa e que fazia treinar sua equipe no mesmo lugar em que praticavam as divisões inferiores. Quando voltei, encontrei um vestiário que se respirava diferente e com um lugar de luxo para concentrar. Tudo era novo para mim. Por sorte, salvo Galíndez, a quem já conhecia da seleção, os roupeiros eram os mesmos; os dirigentes, também. Isso fez me sentir mais ambientado”. Mas não a ponto de chegar a ter uma vida financeira saudável.

A cinco dias da estreia, o San Lorenzo devia 200 mil dólares ao técnico Pellegrini, 6 milhões aos jogadores, 400 mil aos empregados e a cereja do bolo foi um cheque sem fundo cobrado pela funerária que organizara o sepultamento do ídolo Rinaldo Martino (glória dos anos 40, quando defendeu as seleções argentina e italiana) no fim de 2000. Em 24 de julho, houve mesmo uma greve de jogadores, enquanto Pellegrini falava a quem quisesse ouvir que estava farto e de partida. Um dia depois, o presidente Fernando Miele, criticadíssimo por uma torcida que o via como parasita, apareceu para uma conversa apaziguadora. O time entraria em campo no dia 28, recebendo em casa, veja-se só, justamente o Flamengo.

Fase de grupos: Flamengo, Olimpia e Nacional

A estreia era vista como potencial despedida de Pellegrini pelos fundos. Não pela derrota em pleno Nuevo Gasómetro, construída rapidamente no início do segundo tempo (Juan abriu o placar aos 7, Edilson ampliou aos 13 e apenas aos 30 veio o desconto, com Romeo), e sim pelos motivos acima descritos mais acima. Nessa turbulência, Saja começou a sobressair-se desde logo: levou da El Gráfico uma nota 7 por evitar uma derrota mais elástica a um time misto (Saja, Paredes, Morel Rodríguez, Ameli e Félix Benito, Erviti e José Piombo, Romagnoli, Leo Rodríguez e Franco, Romeo) nervoso e mal posicionado, acompanhado sob indiferença de 5 mil torcedores no Nuevo Gasómetro.

Ameli entre Fernando e Jorginho no primeiro duelo com o Flamengo, em um Nuevo Gasómetro às moscas na fase de grupos

Àquela altura, o Flamengo ainda era treinado por Zagallo, que nadava na epopeia do tricampeonato estadual seguido do título que devolvera a Gávea à Libertadores após nove anos, a Copa dos Campeões. A escalação Júlio César, Cássio, Fernando, Juan e Alessandro, Rocha e Jorginho, Petković e Beto, Reinaldo e Edilson seria repetida integralmente seis meses depois no Maracanã, mas sem o Velho Lobo: o tenebroso Brasileirão de 2001 fez o clube iniciar um hábito que lhe marcaria na década: brigar contra o rebaixamento, contando-se com gols salvadores dos garotos Roma e Felipe Melo para escapar de um vexame até então exclusivo ao Fluminense no Rio e também ao Grêmio entre os outros doze grandes do Brasil.

Já o San Lorenzo compensou a estreia ruim arrancando uma vitória em Assunção contra o Olimpia apenas três dias depois. Tempo suficiente para alguma tranquilidade: chegaram ao clube Capria para um defesa órfã também do suspenso Ameli e o ídolo Acosta enfim poderia reestrear na ausência do suspenso Estévez. E o San Lorenzo, que contrastava uma série de vitórias contra equipes argentinas com total ausência de triunfos fora do país havia dois anos, viu o mesmo Acosta voltar com gol, fechando em contra-ataque aos 23 minutos do segundo tempo o placar aberto por Romeo dez minutos antes. Mas o melhor em campo foi Romagnoli, nota 8 por ser “o termômetro da equipe. Arrancou com todas as luzes e foi abrindo brechas no meio-campo do Olimpia. Como não acertaram sua marcação, Romeo e Acosta aproveitaram os buracos para converter-se nos fatores do triunfo”.

Mas então veio uma bronca para a torcida: por não cumprir certos requisitos do regulamento, o Olimpia foi desclassificado do torneio pela Conmebol, o que significou que o Flamengo e o outro time da chave, o Nacional, teriam de graça os mesmos três pontos lutados pelos argentinos em Assunção. A punição até foi revista depois, mas por questão de calendário ao menos o embate dos paraguaios com os cariocas não foi reagendado, consumando-se o placar virtual de 2-0 deliberado pelo tapetão. A fúria foi descontada em 8 de agosto para cima do tricolor uruguaio, que viu a parceria Romeo-Acosta às mil maravilhas, anotando cada um (aos 13 e aos 26 do segundo tempo, na mesma ordem) de novo no placar de 2-0. Bernie, com o terceiro gol em três jogos, levou nota 7 como melhor em campo contra a equipe dos veteranos Sergio Martínez, Marcelo Saralegui e do técnico Hugo de León – todos com passagem pelo futebol argentino.

A primeira exibição digna de campeão: vencendo o Olimpia em Assunção. Nas imagens, Franco, Romagnoli (de costas) e Romeo

A Copa Mercosul então pausou para rodada das eliminatórias à Copa de 2002 e quando o San Lorenzo voltou a campo, já em 20 de setembro, a vibração estava bem melhor: havia vencido as duas rodadas iniciais do Apertura (Nueva Chicago e o rival Boca), o que significava um recorde de treze vitórias seguidas nunca igualado por qualquer outro clube em todo o profissionalismo argentino – e que superava em uma partida uma marca que datava dos anos 30, do Independiente. Àquela altura, seis rodadas ou praticamente um terço do Apertura já haviam transcorrido e o clube seguia invicto, mantendo-se no páreo.

Mas ainda havia intranquilidades: com a janela europeia ainda não encerrada, se falava na ida de Romeo e de Romangoli ao Real Zaragoza ou ao Bayer Leverkusen. Eles e o presidente Miele realmente visitaram o clube alemão, então no auge. Romeo, já em 2014, relembraria: “estava tudo ok, mas passavam os dias, creio que Miele pediu mais grana e se travou. Em um momento, o gerente do Leverkusen convidou Miele a retirar-se e como sabia que eu ficava livre em um ano, me ofereceu muitíssima grana para que esperasse seis meses, assinasse em dezembro e em junho chegasse com o passe em meu poder. Me tremia a perna, te digo a verdade. Era muita, muita grana, eu ainda começava. Respondi que não, que queria ser vendido como deveria. Eu vinha muito mal por minha saída conflituosa do Estdiantes. O San Lorenzo me havia aberto as portas em um momento muito difícil da minha carreira e não podia falhar com ele. Depois furou o do Leverkusen, ganhamos a Mercosul e terminei indo ao Hamburgo”.

Com a permanência do artilheiro Bernie Romeo e o maestro Pipi Romagnoli, esperava-se naquele 20 de setembro uma vitória tranquila contra o Olimpia e ela veio com um baile orquestrado por Romagnoli, nota 8 com dois gols (aos 8 do primeiro e aos 19 do segundo) de um inapelável 3-0 fechado pelo onipresente Romeo aos 42. Então 48 horas depois a invencibilidade no Apertura caiu, contra a sensação Belgrano. Pellegrini não teve dúvidas para o reencontro com o Flamengo ainda na fase de grupos: nem ele mesmo embarcou a Taguatinga, onde os reservas dos argentinos completados com Saja no gol, Ameli na zaga e Acosta no ataque seriam em 27 de setembro dirigidos pelo treinador de goleiros, o velho ídolo Rubén Cousillas.

Romeo anotando sobre o Nacional no Nuevo Gasómetro ainda vazio. Em grande fase, era o único daquele San Lorenzo que aparecia na seleção de Bielsa, mas não foi à Copa 2002

O Apertura parecia mais ao alcance e para outro compromisso 48 horas depois do embate pela Mercosul haveria o encontro na liga argentina com o já líder Racing. No estádio do Brasiliense, Saja foi novamente o melhor por evitar derrota maior para os cariocas, levando outra nota 7 da El Gráfico em uma noite que começou fogosa e terminou sem emoções: Juan abriu o placar aos 21 e o iugoslavo, “brigado com muitos brasileiros do Flamengo mas não com a bola”, ampliou aos 38 do primeiro tempo para a equipe que Zagallo ainda dirigia. Acosta descontou já aos 31 do segundo, mas sem que houvesse chances que rendessem alguma esperança de empate. A cautela de Pellegrini logo tomou moldura de tiro pela culatra: no Apertura, o Racing aplicou no dia 29 um sonoro 4-1 no duelo direto em Avellaneda. E a dor de cabeça naqueles dias não se resumiu aos resultados em campo.

Antes de voltar a jogar pela Mercosul, o San Lorenzo teve novo compromisso pelo Apertura, em 2 de outubro, quando receberia o Colón. Os azulgranas precisaram mendigar o trabalho voluntário dos juvenis e das jogadores de hóquei para substituírem bilheteiros e ascensoristas em greve, conseguindo abrir o Nuevo Gasómetro a apenas 25 minutos do horário agendado para o pontapé inicial contra os santafesinos. O resultado foi um empate chorado que, somado à ameaça de despejo que Pellegrini sofria diante da inadimplência do clube para com o proprietário do imóvel alugado pelo chileno, tirou novamente El Ingeniero do sério.

A crise estava a ponto de a equipe merecer perder três pontos no Apertura por descumprir norma referente aos pagamentos salariais. A AFA fez vista grossa, mas Pellegrini estava muito próximo de se mandar, sob total compreensão do elenco: “se não renuncia é por nós, não quer nos deixar sós” e “nós já lhe dissemos que faça o que más lhe convenha, que nós vamos apoia-lo no que for porque o entendemos” foram duas declarações de jogadores naquele contexto publicadas sob anonimato naquela El Gráfico. Outro incentivo aos jogadores eram os 450 mil dólares que entrariam no caixa do clube pela classificação à segunda fase da Mercosul, algo que se garantiria com um empate no Centenário contra o Nacional em 16 de outubro.

O segundo dos quatro duelos com o Flamengo, agora em Taguatinga: segunda vitória do time de Fábio Augusto sobre o de Leo Rodríguez

Não foi uma grande partida (Romeo, inclusive, passou em branco pela primeira vez na Mercosul 2001) e quem se sobressaiu mais foi Morel Rodríguez, nota 8 por salvar em cima da linha a chance mais clara de gol dos uruguaios no 0-0: “me salvaste a vida”, reconheceu El Chino Saja ao notar que a bola não entrara. Com a vaga continental garantida e com o Racing abrindo oito pontos de distância no Apertura, Pellegrini jogou a toalha para o torneio argentino, assumindo foco total no ineditismo continental e seus generosos cifrões; inclusive, teve a humildade de buscar auxílio extracampo de Morel Rodríguez para planejar como enfrentar outros paraguaios, os do Cerro Porteño, adversário nos dias 24 e 31 de outubro. Para a visita de 21 de outubro ao Gimnasia pela 10ª rodada do Apertura, já começou a usar-se uma escalação mista no Apertura (e ela até ganhou, por 2-0).

Mata-matas: Cerro Porteño e Corinthians

O Cerro havia levado a melhor na guerra dos “clones”, ou melhor, dos Ciclones, pela Libertadores 2000. E até causou sustos, ao encostar para 3-2 um demolidor 3-0 construído pelos cuervos em 29 minutos de jogo. Romeo, possuído, fizera dois primeiros gols e forçou um gol contra no terceiro. No segundo tempo, veio o desconto-relâmpago, com Sergio Aquino aos 18 e Guido Alvarenga aos 22. O Sanloré estava na bronca com o apito de Márcio Rezende de Freitas, que não vislumbrou expulsão de Mario Fretes por cotovelada em Guille Franco, mas terminou sorrindo com um 4-2 assinalado aos 31 pelo melhor em campo: El Pipa Estévez, nota 9 pelas diabruras na ponta-direita.

A arbitragem de Jorge Larrionda em Assunção, por sua vez, foi elogiada com um 7 da revista El Gráfico diante de sua serenidade contra a pressão caseira que La Olla Monumental buscou exercer em 1º de novembro, incendiada em especial após Pacheco abrir o placar aos 26 – mesmo que pelo regulamento, o gol fora de casa não tivesse valor dobrado, o que significava que um eventual 2-0 paraguaio apenas forçaria pênaltis. Após um primeiro tempo em que até Romagnoli e Romeo cometiam erros demais, Pellegrini teve pulso em troca-los aos 13 e aos 18 do segundo tempo por Lucas Pusineri e Acosta, respectivamente. Foi premiado: com praticamente meia hora em campo, Pusineri faria por merecer a maior nota, um 8, ao marcar o golaço do empate e mudar o panorama do meio-campo. A igualdade veio aos 23 e aos 32 foi a vez do outro reserva, o veterano Acosta, arrancar uma virada tranquilizadora.

Romagnoli (em Buenos Aires) e Zurita (em Assunção) no duelo de clones contra o Cerro Porteño

Chegou uma primeira hora da verdade. É que a fase semifinal era sempre uma barreira ao San Lorenzo. Foi assim na primeira Libertadores da história, quando, sem dimensão do que o torneio representava, os cartolas do clube aceitaram dinheiro em troca de o jogo-extra contra o poderoso Peñarol ser em Montevidéu. Foi assim também na Libertadores de 1973, quando o time, mesmo no seu período mais contínuo como vencedor, não foi páreo para um Independiente mais copeiro; ou na de 1988, quando pararam num garoto de nome Gabriel Batistuta que se projetava no Newell’s e marcou no Ciclón o primeiro gol de sua carreira. Essa barreira se mostrava até na consolação Copa Conmebol, onde o Peñarol, nos pênaltis, impediu revanche na edição de 1993.

A maldição depois se transportou à própria Copa Mercosul, onde o Cruzeiro avançara à decisão em 1998 e o Palmeiras, à de 1999, diante de um time jovem que em paralelo lutava pelo Apertura até a penúltima rodada e já germinava a escalação vitoriosa de 2001: já estava Romagnoli, já estava Romeo, já estava Estévez… e ainda estava Mirko Saric, a joia que o futebol argentino perdeu para sempre para a depressão dali a alguns meses, e a quem os colegas já haviam dedicado o título do Clausura 2001.

Foram vinte dias de espera entre a classificação contra o Cerro Porteño e o primeiro encontro com o Corinthians. Tempo suficiente para a alegria de ver Acosta enfim chegar ao centésimo gol no campeonato argentino (2-2 contra o River, em 4 de novembro). Para a tristeza de chorar pelo falecimento, em 14 de novembro, do histórico treinador Juan Carlos Lorenzo, comandante do elenco campeão duas vezes em 1972. Para a apreensão de ver Estévez lesionar-se com 13 segundos de jogo no 0-0 com o Argentinos Jrs (no dia 16)… em 21 de novembro, então, o Pacaembu chegou a ver 43 mil vozes mudas quando Romeo abriu o placar logo aos 15 minutos de jogo.

A vitória de Ricardinho sobre Romagnoli no Pacaembu foi magra demais. Romeo abriu um 4-1 na Argentina aproveitando esse rebote de Doni

Mas os argentinos pareceram respeitar demais o Timão. Scheidt empatou aos 20 do segundo tempo e no minuto seguinte Romagnoli precisou ser substituído por lesão. Michelini, com nota 8, foi avaliado como o melhor dos visitantes, ao controlar alguma coisa quando o desequilíbrio tomou conta do Ciclón desgovernado. O prejuízo foi barato: Luizão virou aos 32, mas o triunfo para a equipe de Vanderlei Luxemburgo saiu em bom tamanho para o lado azulgrana. Em 28 de novembro foi a vez de uma romaria tomar o Nuevo Gasómetro para ver o San Lorenzo pela primeira vez classificado a uma final continental. Acosta e Estévez eram desfalques, mas tamanha fé foi recompensada em alto estilo, ainda que demorasse até os 36 do primeiro tempo para Romeo começar o baile.

Aos 9 do segundo tempo, Pusineri já garantia a classificação. Luxemburgo tirou Deivid por Luciano cinco minutos depois e em seguida pôs Ângelo no lugar de Pingo. Pois o pobre Ângelo fez gol contra aos 22… mas Luizão, aos 32, recolocou os alvinegros no jogo. Só que a missão corintiana se complicou quando Romagnoli cavou a expulsão de Fabinho apenas três minutos depois. Aos 44, então, Romeo liquidou. Autorias que ofuscariam que o melhor em campo teria sido o endiabrado Erviti, nota 9 para a El Gráfico por jogar “uma partida bárbara com muito sacrifício na recuperação da bola e muita habilidade para mandar-se ao ataque. Um cara ideal para afrontar partidas difíceis como esta, que era uma final em si mesma”.

As finais e novo contexto para além do gramado

Em 2 de dezembro, o presidente argentino Fernando de la Rúa, especialmente enfraquecido após derrota legislativa nas eleições de 14 de outubro para o Senado, impôs uma medida desesperada de seu ministro da economia, Domingo Cavallo. O chamado corralito (“cercadinho”) limitava o dinheiro a poder ser sacado em bancos, visando frear a contínua evasão de receitas ao exterior. Era questão de tempo uma convulsão social mais séria. O San Lorenzo buscou manter o foco para as finais, agendadas para 12 e 19 de dezembro. Tanto que à altura de uma partida em 9 de dezembro pela antepenúltima rodada Apertura, o time misto dera lugar a um basicamente reserva.

O San Lorenzo estreando no Maracanã, na primeira final: Serrizuela, Saja, Michelini, Capria e Ameli, Zurita, Paredes, Erviti, Franco, Romeo e Romagnoli

No gol estava José Ramírez e não Saja. Na zaga, o lateral-esquerdo Morel Rodríguez era o “intruso” em setor preenchido com Félix Benito, Leandro Álvarez e Luis Medero. No meio, o veterano Leo Rodríguez era a cara conhecida junto a Guillermo Rivarola (titular do River campeão da Libertadores 1996, uma lesão lhe custara espaço em 2001), Juan Piombo e Leonardo Di Lorenzo. No ataque, Lucio Filomeno e Roberto Cornejo. Foi assim que Pellegrini (que acionaria ainda Maximiliano Bevacqua, Mario Santana e Jontahan Santana para os lugares de Cornejo, Piombo e Di Lorenzo, respectivamente) recebeu o rival Huracán. A equipe do garoto Lucho González teve vida mais fácil para arrancar a única vitória huracanense até hoje em clássicos realizados no alçapão do Nuevo Gasómetro.

Em 12 de dezembro, o San Lorenzo então reencontrou no Brasil a mesma formação titular flamenguista que lhe derrotara em Buenos Aires em julho, agora treinada por Carlos Alberto Torres sob a euforia de já ter se livrado do rebaixamento e da perspectiva de um terceiro troféu no ano. Nada de Taguatinga: era a vez do San Lorenzo visitar pela primeira vez o Maracanã. Pellegrini, que tinha o hábito de visitar cada quarto dos pupilos nas concentrações, fez questão de demorar-se mais na de Pusineri para lhe explicar porque este perderia a vaga para Cristian Zurita, visto como marcador mais eficiente para um jogo fora de casa. E estimulou os pupilos ao anunciar que enfim deixaria o clube ao fim do torneio. Saja (nota 8), Paredes (6), Capria (6), Ameli (7) e Serrizuela (5), Erviti (6), Michelini (8) e Zurita (7), Romagnoli (6), Romeo (6) e Franco (6) eles jogaram sem temores diante da soberba carioca.

Ao fim, a própria revista brasileira Placar reconheceu que as 20 mil vozes visitantes se fizeram ouvir mais do que as 60 mil da casa; estas, em choque por um 0-0 Petković deixar o campo com 30 minutos após sofrer um estiramento na coxa, Edilson expulso com apenas um minuto de segundo tempo e Romeo a um triz de marcar o único gol da noite no finzinho – e Michelini, nota 8 para a El Gráfico, a descreve-lo como um leão nos cortes do jogo rival, no auxílio na última linha de defesa e na saída para vários contra-ataques… a ainda cavar a infantil expulsão de Edilson e seu violento cotovelo. Os visitantes fizeram prevalecer um 0-0 em noite em que poderiam até ter perdido por 4-2: Saja espalmou um forte chute e uma cabeçada de Beto, uma tentativa de cobertura de Reinaldo e um diagonal chute rasteiro de Fernando; Júlio César fez o mesmo com um tiro à queima roupa de Romeo antes de lhe bloquear o ângulo naquele lance cara-a-cara no final.

Juan trabalhando dobrado contra Romeo e Romagnoli na primeira final

De volta à Argentina, Pellegrini não se inibiu em usar em 15 de dezembro contra o Unión, pela penúltima rodada do Apertura, os mesmíssimos reservas derrotados pelo rival Huracán. Mesmo em Santa Fe, até venceram, por 2-1. A ansiedade, porém, era pela noite de 19 de dezembro. Data que entrou para a história argentina por outros motivos, terríveis: mortes, dezenas de mortes, incluindo execuções sumárias de quem estava com mãos desarmadas ao alto, ocorriam na repressão aos protestos enérgicos contra a pior crise econômica do país. Galvão Bueno, presente na capital argentina para narrar a partida, foi improvisado às pressas como repórter televisivo para descrever o caos que levaria a Argentina a ter entre 20 de dezembro e 2 de janeiro nada menos que quatro presidentes (De la Rúa, Rodríguez Saá, Camaño e Duhalde).

A rodada final do Apertura, programada para o dia 21 de dezembro, terminaria mesmo adiada: Racing e River, únicos ainda com chances, tiveram seus jogos reagendados para 27 de dezembro enquanto os demais compromissos ficariam apenas para a primeira semana de fevereiro de 2002, tudo após algum dilema sobre concluir ou não o torneio que marcou o fim do jejum racinguista de 35 anos na primeira divisão. Indefinição que também chegou a ocorrer na Mercosul. O Flamengo, repleto de jogadores com contratos a vencer ao fim do ano e querendo escapar o mais rápido possível daquele pandemônio, chegou mesmo a propor a divisão do título e do atrativo prêmio. No fim das contas, tudo ficou para 24 de janeiro.

Edilson, já suspenso pelo cartão vermelho, rumou ao Cruzeiro e Beto partiu ao Fluminense. Mas houve como segurar um pouco mais quem estava em fim de contrato, ver Petković ter mais tempo para recuperar-se do estiramento e até aproveitar uma brecha para ter os dois Leandros: o Flamengo os havia inscrito regularmente na Mercosul em julho antes de emprestar o Ávila ao Botafogo e o Machado (que estivera no banco na vitória dentro da Argentina) ao Internacional para o Brasileirão. Mas os astros Leonardo e Juninho Paulista, outras caras novas na Gávea em janeiro, precisaram mesmo ver pela televisão. Carlos Alberto Torres usou Júlio César (nota 7), Cássio (5), Fernando (7), Juan (7) e Edson (5), Rocha (5), Leandro Ávila (6) e Jorginho (4), Petković (4), Roma (4) e Leandro Machado (6).

Erviti em pose de craque

Do lado argentino, o prolongamento da Mercosul significou desfalque do artilheiro da edição 2001 da Mercosul: Romeo, cuja fase o fazia ser um raro jogador do futebol argentino aproveitado naquele ano na seleção de Marcelo Bielsa, rumou ao Hamburgo na janela do inverno europeu antes que o San Lorenzo o perdesse de graça dali a seis meses. Através de notebook e banda larga em madrugada alemã, Bernie acompanhou o minuto-a-minuto da partida que Romagnoli poderia jogar, após El Pipi recusar nova investida do Leverkusen. Antecessor de Pellegrini como treinador no San Lorenzo, o temperamental Oscar Ruggeri deixaria a vaidade de lado, declarando-se desde o México pela rádio La Red como orgulhoso pelos ex-comandados (muitos deles, juvenis promovidos ao time adulto quando El Cabezón treinou o clube, entre 1998 e 2000).

Também na torcida à distância, o diplomata Jorge Zobenica, atual cônsul argentino em Uruguaiana, que em Moscou seguiu por computador na embaixada argentina protegida dos 18 graus abaixo de zero que faziam às 4 da manhã russa – na manhã chinesa, outro ex-treinador sanlorencista, Bora Milutinović, interrompia a preparação pré-Copa da estreante seleção local para mandar saudações. Já às 3 horas de Marselha, Tuzzio estava desperto recebendo telefonemas de familiares e se sentia um campeão a mais, embora admitisse inveja dos velhos colegas. E declarasse que “me alegro que Pellegrini siga junto a vocês. É muito capaz e um bom sujeito”, na página final daquela edição especial da El Gráfico. A revista expôs uma longa lista de motivos para fundamentar a justiça de um San Lorenzo campeão:

“Se fez forte quando precisou se fazer forte. Quantas equipes são capazes de ganhar pontos em condição de visitante? Na primeira fase, o Ciclón somou três em sua visita ao Olimpia do Paraguai e um contra o Nacional em Montevidéu; três mais contra o Cerro Porteño em terra guarani, nas quartas, e um contra o Flamengo na primeira final. Porque jogou a final sem seu goleador, Bernardo Romeo, a todavia pouco lhe importou; porque não se distraiu com o que acontecia no país. Essa equipe não soube de corralitos nem de pesificações. Só soube pôr a vida em cada bola. E assim fechou a boca de todos que chegaram a desconfiar. Porque Ameli foi um leão feito capitão”.

Na “melhor de quatro” contra o Flamengo, o San Lorenzo não venceu nenhum no tempo normal. Mas levaria, com Saja, Serrizuela, Franco, Michelini, Capria e Ameli em pé; Paredes, Estévez, Erviti, Acosta e Romagnoli agachados: os titulares há exatos 20 anos

Muitos, muitos motivos: “porque as canetas de Erviti, um pirralho garboso, são geniais. Porque teve El Pipi. Porque, até o dia da final, os jogadores só haviam levado 120 mil dólares de um torneio que deixava 4 milhões ao campeão, toda uma zombaria para os que foram os verdadeiros protagonistas da façanha; e, entretanto, longe de baixar os braços, jogaram pela camisa, pela glória, pela honra. Porque Franco joga onde pedem. Porque no plantel houve vários jogadores surgidos na casa [20 dos 30 campeões]. Porque Acosta e Leo Rodríguez são velhas raposas e jogaram com a alegria dos garotos de 20. Porque teve o respaldo imenso de seu público. Que o acompanhou desde o princípio ao fim e que não viu as partidas, jogou-as”.

Já o Clarín foi mais poético, imaginando como um ídolo comum aos dois finalistas feito Narciso Doval (morto havia pouco mais de dez anos, em 12 de outubro de 1991) acompanharia a partida junto ao recém-falecido Juan Carlos Lorenzo e outros ídolos azulgranas que já haviam partido. “Mirko Saric assiste com melancolia. Lembra quando, há um semestre, a maioria desses jogadores lhe dedicava o Torneio Clausura na intimidade do vestiário. Seus olhos brilham. Mas Mirko não se quebra, e fala para si mesmo: ‘e pensar que eu poderia estar aí. No lugar de Walter [Erviti], ou de Pablo [Michelini]. Mas bem, estou aqui. E quero que ganhem, velho. Vamos, pô, não falhem comigo. Quero que me dediquem outro título, o melhor de todos, o mais valioso, beleza? Narciso Horacio Doval não parece um Loco: com rosto bronzeado, trata de transportar sua boa vibração ao Pipa Estévez e lhe injeta o que lhe distinguia: desfaçatez, exuberância, o que se requer para quebrar um rival que será cauteloso. El Toto Lorenzo parece ser o mais tranquilo. Reza por todos. El Ingeniero nunca se descontrola. É o técnico ideal para esta final. Vamos, Manuel, reflete o arquiteto do bicampeão de 1972″.

Mas quem abriu o marcador foi o Flamengo, já aos 12 minutos: Leandro Machado cabeceou livre para as redes bola levantada por Rocha perto da pequena área. Serrizuela respondeu em cobrança de falta, mandando um balaço na trave, mas a exibição do Ciclón no primeiro tempo terminou apática, apesar das tentativas de pressão. A El Gráfico reconheceu sobre o desempenho do campeão: “na realidade, joga mal, muito mal, mas tira o coração do coador e oferece sem mais. Deixa o sangue em cada bola. Obriga (…) Até que chega a explosão. Vai Erviti pela esquerda, cruzamento, o goleiro que deixa escapar a única bola em toda a noite, e aí estava ele. Que não havia jogado nas semifinais contra o Corinthians nem a primeira final no Maracanã. Como havíamos sentido tua falta, Pipa! (…)”.

Estévez anota o gol argentino na decisão. Reserva no Boca campeão de tudo em 2003, jogaria no Botafogo em 2004

O empate só viria aos 22 da segunda etapa, com os brasileiros mais acuados. El Cañito Erviti arranjou espaço por Juan e, da ponta-esquerda, chutou sem ângulo. Júlio César espalmou a bola na coxa de Estévez, que, livre, não teve muito trabalho para igualar o placar, não muito ameaçado depois e de fato inalterado até o fim. Ou, como contou a El Gráfico: “era preciso seguir jogando, porque aqui ainda faltava um pouco. E que má sorte, Ciclón! Se no Brasil abundam os marcadores centrais estilo palhaço, justo estes dois, que arrebentam, tinham que jogar no Flamengo? De todas as maneiras, segue a pressão. (…) O Fla já não sabe o que fazer para parar”. Foi uma referência a substituições seguidas ordenadas por Carlos Alberto Torres: André Bahia entrou no lugar de Fernando aos 38 e Andrezinho, no de Rocha aos 44. Mas até Pellegrini foi cauteloso, colocando aos 46 o idoso Leo Rodríguez no lugar de Estévez.

“Final. Morte. Penais. Falam de sofrer? (…) Ainda não tinham ideia do que iam sofrer”, descreveu a El Gráfico sobre o fim do tempo normal. Sem prorrogação, a última Mercosul foi decidida diretamente nos pênaltis. Saja então começou seu show, pegando no canto direito cobrança de Juan. Mas na vez dos donos da casa, as coisas começaram a dar errado. Mas muito errado. O ídolo Acosta (que já disfarçava os cabelos grisalhos com um penteado careca) quase virou vilão, ao perder a primeira cobrança, lembrança ainda vívida em 2012: “eu errei o primeiro, eles meterem e Serrizuela também errou o segundo, estávamos no forno, eu queria me matar. O estádio cheio, a ansiedade das pessoas que nunca haviam estado tão perto de um título internacional… chutar esse primeiro penal era uma grande responsabilidade, e eu a assumi, mas chutei horrível e defenderam, senti a pressão de toda a história do San Lorenzo. Por sorte, apareceu o grande Saja”.

Inicialmente, Petković acertou um chute indefensável no alto do canto esquerdo e, como mencionado acima por Acosta, Serrizuela também perdeu: Júlio César espalmou, a bola bateu no travessão e não entrou. Depois, Andrezinho enganou Saja, abrindo 2-0 para o Flamengo com um chute para a esquerda do goleiro, que pulara para o outro lado. E por muito pouco o título não foi praticamente definido na cobrança seguinte: Júlio César tocou na bola chutada por Romagnoli no seu canto direito, mas ela conseguiu entrar. O goleiro brasileiro havia acabado de receber sua primeira convocação à seleção canarinho, na antevéspera da final. Embora acabasse de fora da Copa do Mundo, levaria da El Gráfico aquela nota 7.

Saja encaixando as cobranças de Juan e de Roma. Na de Cássio, a bola não saiu na foto: foi parar no Rio de Janeiro

Só que El Chino Saja terminou a noite avaliado com um 10: “em que pese que o atacassem pouco, se mostrou seguro durante toda a partida. Depois, nos pênaltis, pôs o traje de super-herói”. Ele, que também seria uma cara nova na seleção naqueles dias (estrearia no mês seguinte pela Albiceleste), embora igualmente aparecesse tarde demais para carimbar passagem à Ásia, contou com sorte: Cássio mandou sua cobrança para muito acima do travessão. Pusineri, que substituíra Franco aos 6 minutos do segundo tempo, encaixou na esquerda bola que passou pouco abaixo das mãos de Júlio César, recolocando o Ciclón no páreo – de repente, a desvantagem de 2-0 já estava empatada. Edson recolocou os visitantes na frente, na quinta cobrança brasileira.

Na quinta cobrança dos argentinos, a responsabilidade estava com Saja, agora como batedor. Um tijolaço no meio do gol bastou para forçar as alternadas. E, na primeira delas, espalmou no lado esquerdo a cobrança de Roma. Ou, como exaltado na El Gráfico: “tudo parece figurinha repetida… Mas não. Porque no San Lorenzo há um novo monstro. Se chama Sebastián Saja, é de La Plata e não tem 22 anos e sim 220. Defende um, intimida em outro para que o brasileiro mande a bola ao Rio, mete o seu (o quinto, o das batatas fervendo) e pega um mais para estar tão perto do éden como nunca”. Diego Capria, o torcedor que já havia marcado o gol da 13ª vitória seguida na liga argentina, ainda precisava bater.

Só que tantas reviravoltas fizeram alguns torcedores acharem que a defesa de Saja já havia significado o título, invadindo precocemente o gramado. Ou, em novas palavras da El Gráfico: “já estava para festa. Só faltava a vez do Coco Capria. Mas claro, nunca é preciso esquecer que isso é San Lorenzo. Então será preciso esperar. Mais ainda? Sim, porque agora, a única coisa que faltava: que após a suspensão de 19 de dezembro, por culpa de uns idiotas tudo fique outra vez em stand by. Dessa vez, não. Diego Capria se adaptou à equipe como se houvesse estado a vida inteira. E chutou o último pênalti com a alma”.

Capria e o título

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

10 thoughts on “20 anos do 1º título internacional de um gigante: a Mercosul do San Lorenzo, sobre o Flamengo

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