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Marcelo Saralegui jogou nos rivais de Avellaneda. E, pelo Colón, foi odiado nos dois

Marcelo Saralegui Arreguín, uruguaio que completa 50 anos nesse 18 de maio, já possui uma história curiosa no futebol argentino: ao lado do ex-lateral Néstor Clausen, ele é precisamente um dos dois únicos casos de profissionais que foram e voltaram entre os rivais do Clásico de Avellaneda. Ídolo do Independiente, El Negro Clausen esteve rapidamente no Racing na temporada 1994-95 e ainda em 1995 voltou diretamente à antiga casa para vencer a Supercopa. Saralegui (a pronúncia é Saralêgui, não Saraleguí ou Saralégui) fez a travessia inversa, com um semestre no Rojo preenchendo suas duas passagens pela Academia. Mas ídolo mesmo, esse meia foi no Colón. Além de não ter triunfado na dupla de gigantes, ainda foi carrasco de ambos a serviço do time santafesino, que no sábado fará justamente uma semifinal com Rey de Copas na Copa da Superliga – com possibilidade de travar a final com La Acadé.

Sem parentesco com o também meia Mario Saralegui, ex-jogador de River e Estudiantes que representou o Uruguai na Copa de 1986 como jogador do Peñarol, Marcelo foi inclusive revelado justamente pelo Nacional. Calhou de ser profissionalizado no Tricolor em 1989, logo depois da última conquista do clube (e do futebol uruguaio) na Libertadores, no Mundial e na Recopa. A estreia oficial se deu cerca de um mês antes de completar 18 anos – foi em 19 de abril, contra o Defensor, pelo Campeonato Competencia, torneio historicamente disputado como aquecimento para o verdadeiro campeonato uruguaio. Essa taça em 1989 rumou mesmo ao Gran Parque Central, mas a liga nacional foi deixada de lado pela dupla de gigantes na década, quando o calendário competia com o da Libertadores e da Supercopa.

Como as vagas uruguaias na Libertadores se davam pela liguilla pós-campeonato, tanto Peñarol como Nacional o usavam como treino de luxo: não ganharam a taça entre 1987 e 1991 (o Defensor abriu e fechou a série preenchida ainda pelo primeiro título do Danubio e os únicos do Progreso e do Bella Vista), com o título de 1992 encerrando inclusive um jejum tricolor pendente desde 1983. Ainda antes dessa conquista de 1992, Saralegui já havia figurado no elenco vice-campeão da Supercopa de 1990 e nas quartas da Libertadores de 1991 para o campeão Colo-Colo. E dava uma dor de cabeça às duas torcidas de Avellaneda e a todos os argentinos também: em fevereiro de 1992, ele empatou no fim do primeiro tempo um clássico entre as seleções sub-23 de Argentina e Uruguai na rodada final da fase de grupos do pré-Olímpico.

A Albiceleste jogava pelo empate, mas a Celeste virou no segundo tempo e avançou para o quadrangular final, eliminando um timaço que os arquirrivais tinham no papel – Simeone, Pochettino, Berizzo, Roa, Latorre, Turu Flores… e, desleixo do Nacional à parte, o fim da sua seca na liga uruguaia (na Libertadores, a queda foi novamente para o campeão: o São Paulo, nas oitavas-de-final) foi representativo o suficiente para ensejar na estreia de Saralegui pela seleção principal e para cavar também uma transferência à Europa, embora acabasse de fora das Olimpíadas de Barcelona. Após conversas com Atlético de Madrid e Cagliari não prosperarem, fechou com o Torino. Inicialmente, ele foi utilizado apenas na Copa da Itália, estreando enfim na Serie A em janeiro de 1993.

Os antecedentes uruguaios de Saralegui: Nacional; o Torino da panelinha charrua Aguilera, Francescoli e ele; e seleção – foi carrasco pré-olímpico dos argentinos

Saralegui até foi pé-quente, compondo o elenco do último título expressivo do Toro, exatamente aquela Copa da Itália de 1992-93, mas sua estadia em Turim (foram só duas míseras partidas na liga italiana) ficaria mais marcada pelo escândalo financeiro envolvendo sua compra – sob suspeita de que ela fora feita para burlar a declaração dos valores gastos com seu compatriota Carlos Aguilera, este sim um ídolo para os grenás. O time se forçaria com Enzo Francescoli para a temporada 1993-94, mas mal houve tempo para a panelinha de uruguaios dar caldo: em dezembro de 1993, o meia foi devolvido ao Nacional. Ao longo de 1993, esteve mais vezes em campo pelo Uruguai (seis partidas, três delas pela Copa América) do que por algum clube, embora a falta de ritmo pesasse para ele não figurar no duelo decisivo contra o Brasil pelas eliminatórias.

Ele não durou muito tempo na volta ao Gran Parque Central. Foi emprestado ao Racing para a temporada 1994-95, chegando ao Cilindro justamente com Clausen. Calhou de participar de uma temporada de entressafra entre duas empolgantes: em março de 1994, a Academia ficou a um ponto do título do Apertura 1993 (só finalizado já naquele mês), e o time seria vice do Apertura 1995. Entre essas duas campanhas, Saralegui vivenciou um torneio na metade inferior da tabela no Apertura 1994 (com direito à primeira derrota em onze anos no Clásico de Avellaneda, encerrando o maior tabu racinguista), queda para o Grêmio no primeiro duelo da Supercopa 1994 (enquanto o arquirrival era campeão) e a bagunçada gestão do técnico Maradona no Clausura 1995 – onde Dieguito mandou-se de lá antes do torneio acabar, com desculpa de fidelidade ao presidente que o contratara, não-reeleito.

O Blanquiceleste, apesar dos tumultos institucionais, até conseguiu um morno 6º lugar no Clausura e Saralegui terminou lembrado para a vitoriosa Copa América de 1995 – embora como reserva imediato à dupla mais talentosa de meias Francescoli e Gus Poyet, chegando a deixar um golzinho sobre o México na fase de grupos. Saralegui terminou negociado em definitivo com o Colón mesmo, como um reforço de certa hierarquia para a temporada que marcava o retorno do Sabalero à elite argentina após 14 anos. Virou daqueles jogadores melhor apreciados com o tempo: “frio, cerebral, às vezes resistido, as discussões se acabam ao revisar as atuações do uruguaio em partidas importantes” é como começa sua descrição em seu perfil na edição especial onde a revista El Gráfico elegeu em 2011 os maiores ídolos colonistas.

Inegável é que o uruguaio foi vital para a sempre dura sobrevivência dos pequenos recém-chegados da segundona contra o cruel sistema de rebaixamento por promedios. Foram onze gols em 31 partidas na temporada 1995-96. Ele inclusive marcou nos dois jogos contra o Independiente: fez, ambos de pênalti, os dois de uma virada por 2-1 dento de Avellaneda no Apertura, e o terceiro de um 3-1 no Cementerio de Elefantes no Clausura, onde vazou ainda o Boca em triunfo de 1-0 arrancado aos 40 do segundo tempo. Mas sua grande partida foi aplicando cruelmente a lei do ex.

Saralegui, atrás do árbitro, em seu primeiro Clássico de Avellaneda: o Independiente venceu por 2-0 em 1994 e encerrou onze anos de jejum no duelo com o Racing

A bem da verdade, a rodada final do Apertura já era vista como mera formalidade. O Vélez tinha como único concorrente o Racing e enfrentaria justamente… o Independiente, que ainda por cima estava ressacado da festa daquela recente conquista (com Clausen) da Supercopa sobre o Flamengo. Para a Academia, era preciso torcer por vitória do grande rival e vencer seu compromisso para então forçar um jogo-extra, mas os racinguistas sequer puderam cumprir seu próprio papel: Claudio López até abriu o placar em Sante Fe com 16 minutos de jogo, mas conforme a surra velezana se confirmava sobre o Rojo (3-0), as torneiras se abriram. Saralegui empatou já aos 16 do segundo tempo e aos 29 ele já fazia o terceiro do Colón. O placar final? Um 5-1, com o uruguaio completando um hat trick ao fechar a goleada no minuto 37. Essa exibição inclusive inchou seus gols no Apertura para oito, suficientes para deixa-lo na artilharia do elenco.

De brigar para não cair na temporada 1995-96, o Sabalero alçou voos muito mais altos na seguinte, e Saralegui teve muito a ver com isso. O 8º lugar no Apertura foi morno, mas no Clausura um time sem grandes craques engatou aquelas boas fases que o fizeram até sonhar com uma conquista ainda inédita à cidade de Santa Fe. O Colón chegou mesmo a liderar um torneio embolado, tendo uma primeira apoteose com um 5-1 no concorrente direto River na 11ª rodada – com três gols do meia, em noite onde o característico cântico “U-ru-guayo!” foi destinado a ele e não a Francescoli, que guardou o de honra da visita no Cementerio de Elefantes.

Outro concorrente era um visto Independiente treinado por César Menotti, que teve pinta de campeão ao aplicar justamente um 6-0 no duelo direto com o Colón em plena Santa Fe na 15ª rodada. Só que Menotti despediu-se do Rojo exatamente ali, para rumar à Sampdoria, e o time de Avellaneda murchou para as quatro rodadas que restavam. No fim, o River foi o campeão e o Colón, ainda assim, conseguiu sua melhor colocação até hoje na liga argentina: o 3-2 sobre o Huracán na rodada final o fez ultrapassar o Independiente – que não saiu de um 0-0 em casa justamente com o River e terminou um ponto abaixo. Aquilo teve consequências práticas também importantes, em tempos onde só dois times argentinos se garantiam na Libertadores, com as vagas via de regra se limitando aos campeões de Apertura e Clausura.

É que, como o River venceu justamente os dois turnos da temporada 1996-97, abriu-se uma rara brecha naqueles tempos para algum vice obter para a Libertadores de 1998 a outra vaga do futebol argentino. O Independiente já havia sido o vice do Apertura e poderia ter encerrado a discussão se fosse também o vice do Clausura, mas a flopada na rodada final forçou um jogo-extra com o Colón. Antes, Saralegui serviu o Uruguai na Copa América. O jogo-extra foi agendado já para 3 de dezembro, ao fim de um semestre morno para o uruguaio e colegas tanto no Apertura da temporada 1997-98 (15º lugar, sem gols dele) como nas eliminatórias à Copa do Mundo, com o 5-3 insuficiente sobre o Equador na rodada final encerrando o capítulo do meia na Celeste, novamente ausente para o Mundial.

O Colón festeja em dezembro de 1997 a inédita classificação à Libertadores. Saralegui foi o carrasco do Independiente e comemora com a maior revelação daquele elenco colonista, o lateral Hugo Ibarra

Para aquela virtual pré-Libertadores o Independiente, a cinco pontos do pódio do Apertura 1997, parecia vir em melhor momento, mas os santafesinos desengasgaram aquele 6-0: em jogo único no campo neutro do Lanús, o uruguaio completou uma jogada de Esteban Fuertes (outro vira-casaca em Avellaneda) para marcar sobre Faryd Mondragón o solitário gol que colocou Santa Fe em La Copa – na imagem utilizada pelo perfil ArchivoSabalero para homenagear hoje o ídolo. O inédito foco continental fez a equipe decair para 16º no Clausura 1998 (Saralegui, do seu lado, deixou, dentre outros golzinhos, um no 1-0 fora de casa sobre o Racing e outro no 2-2 no clássico com o Unión), pobreza que poucos na torcida ligaram: os novatos na Libertadores fizeram bonito, caindo apenas nas quartas-de-final.

O uruguaio quase foi vilão, desperdiçando sua cobrança na decisão por pênaltis contra o Olimpia nas oitavas-de-final, o que tornou ainda mais épica a classificação sobre os paraguaios. Redimiu-se nas quartas, a render duelo caseiro com o River. Seu gol no jogo de ida no Monumental deixava os santafesinos vivos após derrota de 2-1 fora de casa. Mas a camisa pesada prevaleceu no Cementerio, com um inapelável 3-1 do Millo para encerrar o conto de fadas.

Saralegui permaneceu no Colón por mais um ano. No rescaldo da eliminação da Libertadores, o time fez um bom papel no Apertura da temporada 1998-99, em quinto. No Clausura, despencou para 16º, mas o uruguaio preencheu sua agendinha particular contra os cinco grandes argentinos, ainda que em derrota de 3-1 para o San Lorenzo. Seu perfil naquela El Gráfico dos ídolos rojinegros conclui exatamente com esses elogios nos grandes jogos – “seus números não deixam dúvidas: desfrutava as partidas difíceis. Dos 32 tentos que marcou no Colón, 15 converteu nos grandes: 5 no River, 4 no Racing e no Independiente e um no Boca e no San Lorenzo”.

É de se notar que até em número de gols ele foi carrasco por igual em Avellaneda. Para o segundo semestre de 1999, então, o Independiente o requisitou, em uma salada judicial a envolver o próprio Racing: tudo começara em agosto de 1997, quando a Academia acertou com o Colón uma troca de jogadores, enviando a Santa Fe o citado Bichi Fuertes e também Claudio Marini para ter o uruguaio de volta, dada a grande fase do Sabalero recém-vice argentino. Mas, com Fuertes e Marini já estreados pelos santafesinos, o meia se recusou a regressar ao Cilindro, começando a guerra na justiça comum. Em agosto de 1999, ela deu ganho de causa ao Racing… mas, àquela altura, Saralegui já havia sido negociado pelo Colón com o outro time de Avellaneda – e estreado pelo Rojo.

O único clássico de Saralegui pelo Independiente foi esse 0-0 em 1999 no estádio do Racing, onde deu esse carrinho em Sergio Zanetti (sim, irmão de Javier, que é ironicamente torcedor vermelho declarado)

A salomônica solução deliberada foi permitir que ele seguisse atuando na Doble Visera e a atravessasse de volta ao Cilindro ao fim da temporada 1999-2000. Pela metade vermelha da cidade, ele acabou sendo peça nula, com um único golzinho de um nono lugar no Apertura – ao passo que, na Copa Mercosul, a liderança em um grupo com Corinthians, Grêmio e Vélez virou pó no primeiro mata-mata: em sua campanha campeã, o Flamengo segurou o 1-1 na Argentina e massacrou por 4-0 no Maracanã. A travessia na verdade não foi direta, com ele sendo preservado no primeiro semestre de 2000 com um empréstimo ao Defensor – onde lesões o limitaram a cinco jogos como violeta. Foi enfim reincorporado pelo Racing no início de julho.

Na reapresentação, até buscou pôr panos quentes nas polêmicas, nas palavras dadas ao Clarín: “no Racing, há uma mudança positiva. Em 1997 quase regresso, mas queriam que eu assinasse qualquer coisa e disse que não. Agora há outra gente, um síndico e está mais organizado. Antes nem havia camisetas. Para mim, o Racing é um orgulho. O Independiente sabia que meu passe era do Racing e que em junho voltava para cá. Por isso me deixaram ir ao Defensor. Muitas coisas [o Independiente] não me deixou. Foi um passo muito curto. Estou mais identificado com o Racing do que com o Independiente. Quero ganhar o apoio do torcedor. Agora só me importa o Racing”.

As palavras ficaram ao vento. A torcida racinguista sempre afirma que a única beleza vista em campos naquele segundo semestre de 2000 foi o do caprichado uniforme da Adidas, porque La Acadé foi simplesmente o lanterna do Apertura, com uma mísera vitória em 19 jogos – e isso que sequer havia problemas de calendário com a Copa Mercosul, pois o time sequer foi convidado ao torneio dado sua franca decadência técnica. Saralegui só marcou no 2-2 contra o Huracán, ainda que para empatar aos 44 do segundo tempo. No início de 2001, deixou de vez Avellaneda e voltou ao Nacional, sua verdadeira casa: no Tricolor, foi opção de banco no campeão uruguaio naquele 2001 e até integrou parte da campanha bicampeã seguida em 2002, despedindo-se ainda em 17 de março, no 3-1 sobre o Tacuarembó.

Seguiu como jogador do modesto Fénix, integrando no papel a campanha que colocou essa equipe em sua primeira Libertadores, mas sem registrar mais de dez jogos oficiais por lá. Pendurou as chuteiras em 2004 na segundona como jogador-treinador do Uruguay Montevideo. Na nova carreira, não deu maiores saltos, passando pelas camisas modestas do Cerrito, Rampla e do Colegiales argentino.

O uruguaio voltou ao Racing logo na tenebrosa campanha lanterna do Apertura 2000: Gastón Sessa, Sergio Zanetti, Claudio Úbeda, Javier Mussa, Javier Lux, José Chatruc e Marcelo Vega; Guillermo Tambussi, Marcelo Saralegui, Gustavo Arce e Manuel Neira

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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