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Vélez de Bianchi também prevaleceu sobre o Boca de Maradona, há 25 anos

Quem vê a série de ao menos um título anual que o Vélez conseguiu entre 1993 e 1998 imagina que todo o período foi vivido sem descrenças em Liniers. Inversamente, quem vê a tabela do Apertura 1995 talvez pense que o Fortín ganhou de lavada aquele torneio, seis pontos acima do vice em uma competição de turno único. Quem vê, por outro lado, que Maradona só conseguiu um pódio em sua estadia noventista no Boca, pode pensar que Dieguito já era um ex-jogador em atividade, especialmente com um Boca munido com Ele e Caniggia estacionado em quarto. Nada mais falso. Hoje a definição daquele torneio histórico completa 25 anos.

Após encostar no céu em 1994, o Vélez teve um primeiro semestre de 1995 para o esquecimento. Começou com tudo, com quatro vitórias nas primeiras quatro rodadas. Mas a ambição mostrou-se alta demais: se em meio à Libertadores de 1994 o time não se inibiu em jogar o Clausura daquele ano com a marcha no ponto morto (uma da razões que aumentavam o pachequismo a dar o São Paulo antecipadamente como campeão, depois convertida em fonte extra de corneta ao vice-campeonato tricolor, foi pela equipe de Telê ter sucumbido ao antepenúltimo colocado do torneio argentino), para 1995 o Fortín começou ganhando os quatro primeiros jogos do Clausura da vez, ao longo de março. Quando o calendário começou então a se desdobrar entre nova longa viagem ao Japão (onde ocorria, em jogo único, o duelo da Recopa Sul-Americana) e o início de nova Libertadores, os pupilos de Bianchi não se mostraram aclimatados ao ritmo de “novos ricos”.

Ainda que sob arbitragem polêmica, os velezanos caíram diante do Independiente em Tóquio em 9 de abril. Naquele mesmo mês, saborearam um troco no Rojo, eliminado por La V Azulada nas oitavas-de-final da Libertadores – o detentor do título ainda era beneficiado com estrear apenas a partir daquela fase. Mas começaram a desandar no Clausura. Fecharam o pódio com San Lorenzo e Gimnasia, mas aquele mês de abril rendeu apenas duas vitórias em cinco partidas domésticas. Uma arrancada final com seis vitórias nas últimas sete rodadas, incluindo sobre o próprio campeão San Lorenzo na antepenúltima, permitiu que o Fortín terminasse a apenas dois pontos do título. Mas foi tardia: mesmo vencendo o Belgrano na penúltima, os resultados dos líderes encerraram ali as chances de taça.

Mudanças de patamar: ainda visto como sexto grande pela imprensa nas imagens de 1990 e de 1992, o uniforme todo branco do Huracán já aparecia substituído pelo Vélez na foto que promovia o início do Apertura 1995

A Libertadores, pausada para a Copa América, voltou na virada de julho para agosto. Outro duelo caseiro, contra o River, viu os mesmos pênaltis consagradores em 1994 se voltarem contra os campeões. Em 2 de agosto, Flavio Zandoná mandou no travessão a única cobrança desperdiçada. Bianchi pôs panos quentes, mas também cobrava com a declaração pós-jogo: “agora vamos pelo Apertura”. Assim, já havia quem se apressasse a falar em “fim de ciclo” e que 1994 teria sido um acidente de natureza para um time cujo porte historicamente se limitava ao bairro de Liniers. A revista El Gráfico foi menos insensível: na edição que servia de virtual guia do Apertura, os representantes dos “cinco grandes” (Boca de Caniggia, River de Francescoli, Racing de Rubén Capria, Independiente de Daniel Garnero e San Lorenzo do brasileiro Silas) estavam agora acompanhados pelo velezano Marcelo Gómez e não por algum jogador do decadente Huracán, como historicamente ocorria nas vezes em que um sexto time era contemplado.

“Começa um campeonato emocionante” profetizava a chamada de capa. Acertaria em cheio. A partir daquela temporada, as vitórias passaram a sempre valer três pontos (o único antecedente fora no campeonato de 1988-89, onde empates eram decididos nos pênaltis, mantendo-se um ponto ao perdedor e dando ao vencedor dois pontos, tal como no Brasileirão de 1988). E desde o início a disputa pareceu centrada em Boca e Vélez. Ambos permaneciam invictos ao fim da quinto compromisso, altura em que La V Azulada tinha três vitórias e dois empate e Azul y Oro somara duas igualdades.

O time de Bianchi começou com duas vitórias de 1-0, sobre o Banfield fora de casa (Roberto Trotta, de pênalti; aproveitando essa condição, o lateral seria o artilheiro do elenco campeão, com sete gols, e o último deles é o que abre essa matéria) e o Rosario Central (Patricio Camps), seguido de um 1-1 na visita ao River ainda no mesmo agosto da eliminação continental contra o Millo – Omar Asad buscou o empate aos 44 do primeiro tempo. Depois, encarando outro grande, venceu-se um movimentado duelo com o Racing: Trotta achou um gol relâmpago aos 3 minutos, Capria empatou aos 16 e El Turco Asad anotou 2-1 aos 23. De pênalti, Trotta parecia matar o jogo aos 22 do segundo tempo, mas Roberto Fleita ainda descontou aos 28.

Outras capas: tão logo voltou, Maradona foi a primeira página de todo o mês de outubro na revista El Gráfico, ainda semanal. Á mais à direita retrata o insólito duelo contra a Coreia do Sul

O 3-2 sobre a Academia se provaria ao fim como um vital “jogo de seis pontos”. Esse placar prevaleceu e a boa série seguiu com um triunfo em La Plata arrancado a seis minutos do fim contra o Estudiantes (de volta à primeira divisão, o Pincha teve em José Luis Calderón o artilheiro daquele Apertura, embora terminasse apenas em nono). Em paralelo, o Boca estreou no torneio na segunda rodada, que também marcou a estreia de Caniggia, contratação que tinha o furor extra pelo fato de Cani ter sido revelado pelo River. Maradona, também contratado midiaticamente, ainda precisava aguardar mais algumas semanas para sua suspensão de 15 meses desde o doping na Copa de 1994 terminar.

O Boca já vinha em branco na liga argentina já havia cinco campeonatos, espera longa demais. Se o Vélez se limitava a buscar de volta no Banfield e no Belgrano os emprestados Patricio Camps e Ricardo Rentera, respectivamente (perdendo no caminho somente Roberto Pompei, ao Racing), o pacotão de reforços para o técnico boquense Silvio Marzolini (também vítima desse trágico 2020, fora mesmo que comandara Diego no Metropolitano de 1981, único título de El Diez em seu país) não se resumiu à dupla Maradona-Caniggia: do Rosario Central, veio um jovem Kily González. O ídolo Blas Giunta, a pedido de Maradona, voltava ao clube para ser o xerife. Um dos últimos jogadores do Platense na seleção argentina, Darío Scotto havia sido o vice-artilheiro do Clausura recém-finalizado e também chegou moralizado, retribuindo com o gol da vitória aos 44 minutos do segundo tempo naquela estreia frente o Huracán: 2-1, doze minutos após o oponente Hugo Guerra ter empatado o placar aberto por Sergio Martínez, xodó remanescente do título argentino anterior.

Em seguida, o camaronês Alphonse Tchami marcou a 20 minutos do fim o único gol de um duelo que o Platense mandou no estádio do Vélez. Tchami também iniciou uma virada contra o Ferro Carril Oeste, mas os verdolagas buscaram o 2-2. No estádio do Independiente, o Boca deu azar com o mandante Lanús: o zagueiro Néstor Fabbri pôde abrir o placar aos 14 do segundo tempo, mas o colega Fernando Gamboa marcaria contra aos 25. Em paralelo, os comandados de Marzolini estrearam na Supercopa, o extinto torneio que reunia apenas campeões da Libertadores – e que naquele 1995 passaria a contar com o Vélez. Pela quantidade ímpar de participantes, o Boca foi sorteado para um triangular com Olimpia e São Paulo, entre 7 de setembro e 10 de outubro.

A tristeza do Vélez no Apertura 1995: praticamente perder o ídolo Omar Asad para o joelho lesionado pelo goleiro Oscar Ferro, no clássico com o Ferro Carril Oeste

O Fortín, por sua vez, faria diretamente um mata-mata com o Flamengo. A ambição internacional não fez bem para o último duelo caseiro antes da recepção aos cariocas: em 8 de setembro, o Deportivo Español simplesmente abriu 3-0 dentro de Liniers, favorecido em parte pela insólita expulsão de Chilavert (amarelado por Horacio Elizondo ao insistir em cobrar fora da área um tiro de meta, recebeu outro amarelo em seguida por gestos). A reação nos cinco minutos finais pela 6ª rodada foi tão notável como tardia: Marcelo Herrera diminuiu aos 40 e Trotta encostou aos 44, mas ficou nos 3-2. Intercalando mais jogos, o Boca só atuaria naquela 6ª rodada no dia 10, pois em 7 de setembro estava em Assunção. Ali usou time misto que soube vir com um empate em 1-1; Caniggia, por exemplo, foi poupado, e três dias depois ele enfim marcou seu primeiro gol pelo Boca, abrindo o placar contra o Newell’s no Apertura. Mas os rosarinos impuseram o terceiro empate seguido, com Iván Gabrich.

Outros três dias depois, Cani foi novamente poupado da Supercopa, na derrota mínima no Morumbi assinalada pelo atual comentarista Caio Ribeiro no dia 13; no dia seguinte, o Vélez perdeu outra em casa, com Sávio e Edmundo funcionando bem sem o ausente Romário, anotando um gol cada em vitória de 3-2 completada por Rodrigo Mendes. O jogo seguinte aos xeneizes, novamente pela Supercopa, deu-se no dia 20. Caniggia, dessa vez, estava em campo para impedir uma eliminação precoce, mas nem El Pájaro evitou que ela se consumasse com o triunfo do Olimpia dentro da Bombonera, por 2-1. No Apertura, o Vélez perdeu outra seguida, na visita ao Gimnasia de Jujuy, sofrendo a seis minutos do fim o único gol contra o Lobo Jujueño. Menos mal que o Boca, embora ainda seguisse invicto pelo torneio doméstico, não saiu do 0-0 em casa contra o Independiente no dia seguinte.

Em 30 de setembro, um pênalti de Trotta abriu o placar, mas o Huracán, dentro de Liniers, iluminou o apagar das luzes com um relâmpago em forma de virada: Pedro Barrios empatou de pênalti aos 40 do segundo tempo e Claudio Marini virou aos 44. Essa remontada que só não tomou as manchetes porque aquela mesma data também simbolizava o fim da suspensão de Maradona. Um dos custeios ao negócio foi um amistoso em Seul contra a própria seleção sul-coreana, agendado para aquele mesmo dia. No Oriente, Diego não só voltou a jogar futebol como aguentou quase os 90 minutos na vitória por 2-1. Três dias depois, era a vez das televisões serem tomadas pela pancadaria envolvendo Edmundo, Zandoná e Romário no banho flamenguista em Juiz de Fora: 3-0 e queda precoce fortinera na Supercopa.

Outro clássico sem sorrisos no Apertura 1995 foi o Super: Caniggia, Maradona e Francescoli não tiraram o zero de um placar que a perda do filho de Daniel Passarella tornou secundário a todos

Os arautos do fim do ciclo da turma de Bianchi voltavam em peso, mas o experiente José Basualdo juramentava: “os triunfos seguirão, porque nós temos fome de glória e queremos seguir ganhando campeonatos. Nós sabemos que temos um grupo equilibrado, mas em nenhum momentos nos sentimos os melhores, nem dizemos isso, simplesmente tratamos de demonstra-lo”, em depoimento constante no livro que o Clarín lançou sobre o clube em 2000. Com apenas o Apertura diante de si, outros quatro dias depois enfim realmente viram as vitórias retornarem ao Vélez: seus tanques Asad e José Turu Flores abriram o 2-0 fora de casa contra um Platense que no máximo encostou já no fim. Só que ninguém deu importância na hora. É que aquele mesmo 7 de outubro também viu, enfim, a estreia maradoniana no Apertura.

Mesmo com um Boca decepcionantemente apagado, o clube voltou a vencer encontrando a vitória em  gol de Scotto aos 44 minutos do segundo tempo contra o Colón – na célebre tarde em que Diego convidou um revoltado adversário às vias de fato no próprio endereço residencial, tornando a esquina Segurola e Habana famosa nacionalmente a ponto de até o poste que a demarca receber flores com o falecimento do mito (ironias do destino: o oponente, Julio César Toresani, não só viria a jogar no Boca como até marcou gol no Superclásico que seria o último jogo de Dieguito, em 1997).

Três dias depois, a equipe recebeu o São Paulo pela Supercopa em uma Bombonera vazia, seja pela eliminação já consumada ou por ela fazer Maradona ser poupado. Nada que importasse ao Tricolor: Caio fez outro gol na série, com o obscuro Amarildo tendo a noite de sua vida ao marcar duas vezes nos 3-2, em raro triunfo brasileiro em jogos continentais na Caixa de Bombons. Com o calendário livre, em 15 de outubro Maradona não comemorou: é que a vítima de seu primeiro gol na volta ao futebol (um golaço de falta, diga-se) foi justamente o Argentinos Jrs que o revelara. Curiosamente, o jogo foi no campo do Vélez, alugado pelo adversário.

Rubén Capria comemora um de seus três gols no incrível 6-4 do Racing dentro da Bombonera. Então líder invicto, o Boca perdeu ali a liderança, já na antepenúltima rodada. Atrás dele, justamente um ofuscado Maradona

Um dia depois, Liniers recebeu outra partida. O Vélez também venceu e também não comemorou. Era o dérbi com o Ferro Carril Oeste, que já perdia a condição de Clásico del Oeste para os fortineros tamanha a discrepância súbita na sala de troféus (ainda que só a partir daquele Apertura é que o Vélez tenha superado os vizinhos em número de títulos argentinos), mas não para os verdolagas, mesmo para um novato entre eles feito um goleiro uruguaio. Simbolicamente, ele se chama justamente Oscar Ferro, e procurou mais Asad do que a bola. Ela entrou, marcando o único gol. Mas El Turco sofreu séria lesão no joelho no choque. A lesão praticamente abreviou uma carreira promissora. Ele ainda remoía, em entrevista à El Gráfico em 2010: “uma vez, quando voltei, em um Ferro x Vélez no campo deles, nós dois fomos ao banco e não foi capaz de me parar e me pedir desculpas. Deve estar sujo. Ligou por telefone para casa no dia seguinte à lesão, eu não estava, minha mulher lhe disse que ligasse à noite porque ia me fazer muito bem e não o fez” (as desculpas viriam, aceitas, em 2011).

Em 18 de outubro, o Boca entrou em campo para enfim cumprir a sua partida atrasada da 1ª rodada. E, diferentemente do Vélez, soube voltar de Jujuy com vitória sobre o Gimnasia local, 2-1; ainda estava em atraso o jogo referente à 8ª rodada (travada no fim de semana em que o clube estava na Coreia do Sul), contra o Gimnasia mais famoso, o de La Plata. Os prognósticos eram dos melhores, mesmo que em 22 de outubro os xeneizes não saíssem do 0-0 em casa com o San Lorenzo. No mesmo dia, esse foi o placar também do jogo do Vélez – no que parecia ser um abraço de afogados com o Lanús, que então corria por fora.

No dia 28, Sergio Martínez garantiu dentro de Córdoba uma vitória mínima sobre o Belgrano, respondida outro dia depois com um categórico 3-1 velezano sobre o Newell’s: com 14 minutos de jogo, Martín Posse, Guillermo Morigi e Marcelo Herrera já haviam aberto 3-0. A data de 5 de novembro, então marcou o duelo direto na Bombonera, pela 13ª rodada. E deu Boca, gol único de Scotto, aos 36 minutos. Turu Flores, já antes da rodada final, recordaria como a pior partida do Vélez em três anos, mas que Bianchi estava sereno: “ainda não entendeu o que passou. Nos deu muito, muitíssimo. Eu, inconscientemente, pensava que já não tínhamos chances. Mas Carlos começou a fazer a nossa cabeça assim que pisamos no vestiário. ‘Senhores, agora não nos resta outra senão ganhar todas as partidas que nos restam. Se fizermos isso, somos campões’. Eu lembro que pensei: ‘é um fenômeno. Tem mais é em nós do que nós mesmos’. Mas tinha razão. Nos conhece muito. Começamos a levantar pouquinho a pouquinho”. Restavam seis rodadas, com o Boca tendo aberto seis pontos de vantagem (29 a 23) e ainda tendo um jogo a mais para fazer…

O pesadelo do Boca após perder a segunda seguida e com isso as chances de título, na penúltima rodada. Na imagem inferior, o técnico Silvio Marzolini enfrenta os microfones

El Pájaro Caniggia ainda não alçava voo pelo Boca, mas o conjunto parecia azeitado: em 9 de novembro, cumpriu o jogo atrasado pela 8ª rodada e saiu de La Plata com outro dia iluminado de Scotto, novamente autor do gol solitário. E no dia 12, Scotto outra vez abriu o placar de novo triunfo seguido, com Caniggia reaparecendo para completar os 2-0 sobre o Banfield, que usou o estádio do Independiente. Mas o Vélez cumpriu fielmente as ordens do seu Virrey: Trotta e Flores, no início de cada tempo, anotaram os gols da tarde contra o Gimnasia dos gêmeos Barros Schelotto. Os fortineros levaram a sério de mais as palavras do mestre mesmo, pois trataram de vencer em todas as seis rodadas finais, à espreita de um vacilo do badalado líder invicto. Isso ainda não correu na 15ª rodada, onde o Boca não saiu do 0-0 em casa com Rosario Central em 17 de novembro enquanto La V Azulada voltou de Santa Fe trazendo na bagagem um 2-1 sobre o Colón dois dias depois.

Um olhar atento àquela 15ª rodada também notaria que um “elemento novo” fez bem ao Racing: sob o interino Rodolfo Domínguez (outra baixa desse 2020, falecido ainda em 14 de janeiro), Marcelo Delgado, Rubén Capria e Claudio López impuseram um gol cada um na visita sobre o bom Lanús daquele torneio. La Academia vinha sendo comandada por Pedro Marchetta, ex-jogador e ex-técnico da casa. Entre a 1ª e 14ª rodadas, o Racing de Marchetta somou 6 vitórias, 3 derrotas e 5 empates. Não parecia mal, mas três desses empates vieram seguidamente da 12ª à 14ª rodadas, e dois deles dentro de Avellaneda, contra Huracán e Ferro. Marchetta substituía no comando de La Acadé ninguém menos que Maradona, que, ainda suspenso para jogar, topara a empreitada de treinar o clube. Sem empolgar, Diego aproveitou como álibi a não-reeleição do presidente que o contratara e vazou. O sucessor, do seu lado, nunca fora perdoado direito por ter aceitado dirigir em 1992 o Independiente mesmo se dizendo torcedor racinguista.

A falta de paciência da torcida foi recíproca, com Marchetta julgando excessivas as cobranças, classificando-a de histérica. Em mudança de cadeiras, Maradona, contratado como técnico pelo Racing sob expectativa de converter-se em jogador assim que a suspensão terminasse, agora estava no Boca. E quem o Racing efetivou como técnico para o lugar de Marchetta? O mesmo Miguel Ángel Brindisi que há poucos meses ainda dava expediente exatamente no Independiente – descrente com os cartolas, Brindisi, por sinal a antiga dupla dinâmica de Maradona naquele Boca de 1981, pedira para sair do cargo logo após erguer a Recopa contra o Vélez, sentindo o fim do ciclo dourado com o Clausura 1994 e com a Supercopa três meses depois; quando, ao fim daquele mesmo mês de abril de 1995, as equipes se reencontraram pela Libertadores, Ricardo Pavoni já era o comandante do Rojo.

O sublime segundo gol do Turu Flores sobre o Belgrano: Vélez com uma mão e quatro dedos da outra na taça

Mais ironia? Brindisi havia assumido aquele Independiente substituindo justamente Marchetta, que brincaria com as coincidências em 2016: “Miguel colocou o babador e começou a comer. Eu fui duas vezes vice-campeão com o Rojo [na realidade, apenas no Clausura 1993, exatamente o primeiro título da Era Bianchi] e ele ganhou o campeonato e a Supercopa. Com o Racing, foi o mesmo: o armei e ele terminou fazendo-o vice-campeão. Um fenômeno, Miguelito! Espiava onde ia Marchetta, e aí ia ele depois”. Até Sebastián Beccacece ser contratado pelo Cilindro no fim de 2019, aquele foi o último ano em que um técnico trabalhou nas duas forças de Avellaneda. Ex-jogador do próprio Racing, na segunda divisão de 1984, Brindisi estreou com um chamativo 4-1 no Newell’s em 26 de novembro.

Os olhos de todos, porém, se voltavam ao Superclásico no Monumental. Um jogo sem clima festivo: oito dias antes, o técnico da seleção sofria a perda irreparável do filho Sebastián Passarella em acidente de carro. Maradona chegou a tentar procurar o desafeto, em vão. Mesmo com Diego, Caniggia e Francescoli em campo, ficou-se no 0-0. Já o Vélez havia cumprido a rodada dois dias antes, vencendo por 2-0 o Argentinos Jrs. Em 3 de dezembro, Mauricio Macri se elegia presidente do Boca, que na mesma data recebeu o Racing de Brindisi, já pela antepenúltima rodada. A Academia não vencia na Bombonera um confronto direto já havia 20 anos. Os xeneizes eram líderes invictos e haviam sofrido apenas seis gols nas 16 rodadas já disputadas.

Pois no jogo da vida de Rubén Capria (autor de três gols, ele já confessou que aquela exibição teve efeitos nocivos a si, pois todos passaram a esperar dele outras tardes como aquela), o Boca, mesmo acertando quatro vezes as redes racinguistas, levou de uma vez outros seis gols, em duelo histórico que já detalhamos em Especial à parte. A injeção anímica do lado racinguista não se resumia a uma goleada histórica, mas também por colocar seriamente o time no páreo. Do lado do Boca, o excesso de empates cobrava a conta: o Vélez aproveitou o bote e no mesmo dia tomou a liderança, mesmo visitando o San Lorenzo para uma partida que ganhava ares de clássico. Fernando Pandolfi abriu o placar no Nuevo Gasómetro aos 24 e, a três do fim, Martín Posse selou o triunfo valioso, a pôr o Fortín um ponto acima. A Marzolini, restava incutir nos jogadores que o próprio San Lorenzo fora o campeão do primeiro semestre precisando recuperar a liderança na rodada final. Mas faltava moral; a El Gráfico apontou a falta de assertividade daquela velha glória da lateral-esquerda boquense contra reclamações públicas de jogadores muito menos importantes que ele à história auriazul.

Capria marca para o Racing contra o Gimnasia, mantendo as chances de título para a rodada final. Mas sem suspense: era preciso contar com um apoio risível do Independiente. À direita, a ingênua cobrança dos neutros à “dignidade” do Rojo

A penúltima rodada foi um anticlímax pesado a Macri, que sequer se dignou a comparecer na tribuna enquanto Maradona simplesmente também não foi a campo naquele 9 de dezembro, gerando insinuações óbvias suspiradas pela El Gráfico na edição publicada ao fim daquela rodada: “na edição anterior, titulamos ‘DIEGO, FAÇA POR VOCÊ…’. Não éramos os únicos em saber que Maradona não andava bem. Fomos os únicos a dizer. Nos preocupava, nos preocupava cada vez mais, seu desapego a obrigações profissionais. Mas diretamente nos desilude sua ausência na partida que o Boca jogou contra o Estudiantes de La Plata. Se não jogou, é porque não pôde. E se não pôde, é grave. Ninguém poderá levar absolutamente a sério que uma cólica vesicular o fez deserdar. Maradona fez durante toda a sua carreira verdadeiros proezas físicas para estar ali onde era necessário. Agora, se apresentou para jogar contra o Racing sem ter treinado um só dia e chegando à concentração ao meio-dia do domingo, com uma entrega comovente. E após a derrota cruel que pôs a perigo sério a obtenção do campeonato, apareceu em dois treinos, mas finalmente deserdou em um momento sagrado, quando o povo do Boca esperava o último gesto, o último alento, a última mostra de sua coragem. Deu o tiro de misericórdia na ilusão moribunda”.

Mesmo assim, o Boca até começou bem contra o Estudiantes, que mandou a partida na cancha do Independiente: o platense Claudio París foi expulso logo aos 5 e Fabbri abriu o placar aos 26. Aos 30 minutos, o goleiro Carlos Navarro Montoya viu o vermelho, mas também Martín Palermo, ainda jogador do lado alvirrubro (ambos punidos por se estranharem). Mas Edgardo Prátola empatou aos 44. Aos 23 do segundo tempo, o xeneize Fabián Carrizo também foi expulso, igualando cada time com nove jogadores em campo. Apático, o Boca só produziu uma chance mais clara na segunda etapa. Terreno para, a dois minutos do fim, Silvano Maciel ser novamente carrasco como já fora em 1988 pelo Deportivo Armenio, ocasião em que aposentara o histórico Hugo Gatti.

Só houve tempo para Gamboa ser o terceiro jogador boquense avermelhado, logo em seguida. Desorientação que pegou até o técnico Marzolini, que na saída para o estacionamento reagiu achando que era contra ele os gritos de gallina de algum corneteiro; eram para um inoperante Caniggia. Um jogador, na condição anonimato, até declarou à El Gráfico que o único momento de sensatez do grupo na semana foi quando os expulsos encurralaram por explicações o árbitro Juan Carlos Crespi ao fim do jogo. De líder invicto no início da antepenúltima rodada, o Boca repentinamente se via prestes a perder as chances de título ao fim da penúltima: o Vélez não poderia vencer o Belgrano em casa no dia seguinte. Em grande noite do Turu Flores, isso se desenhou a partir dos 3 do segundo tempo (usando a canhota para encaixar a bola por baixo do corpo do goleiro) e se sacramentou de modo sublime aos 44, driblando em velocidade dois adversários depois já ter se livrado do goleiro.

Maradona: sua ausência na penúltima rodada por falta de profissionalismo não deixou de ser criticada

La V Azulada já colocava uma mão na taça. Não punha as duas com uma rodada de antecipação porque o Racing venceu naquele mesmo 10 de dezembro o Gimnasia por 2-0, construído ainda na meia hora inicial com Capria e Adrián de Vicente. La Acadé poderia ter goleado se Claudio López tivesse melhor pontaria nas cinco ou seis chances que teve, segundo a El Gráfico, mas pôde ultrapassar ali o Boca e permaneceu a três pontos do pessoal de Liniers para a rodada final. Era preciso vencer e torcer para o novo líder perder, o que forçaria um jogo-desempate. Mas se o Vélez já tinha uma mão na taça, mesmo um fortinero pessimista já sentia também quatro dedos da outra mão também a acariciando. O líder jogaria fora de casa sim, mas pegaria quem naquele 17 de dezembro? Justamente o Independiente.

Como se não bastasse, o Rojo ainda jogaria presumivelmente cheio de champanhe no sangue após ter levantado onze dias antes a Supercopa, impondo um Maracanazo ao centenário do Flamengo. A El Gráfico até cobrou dignidade ao clube, prometida da parte de Diego Cagna – que ressaltava a uma torcida que clamava pelo ponto morto que um triunfo vermelho por si só não daria o título ao rival, que ainda precisaria fazer a própria parte vencendo sua partida e a do hipotético desempate. Os titulares entraram mesmo em campo, mas qualquer ilusão já estava desfeita desde os 5 minutos de jogo, quando cometeram um pênalti convertido por Trotta. Em sua partida, o Racing saiu na frente em Santa Fe contra o Colón, gol do Piojo López aos 16 minutos. Mas as notícias que o rádio anunciava desde Avellaneda a partir dos 13 minutos do segundo tempo tiveram efeito rápido. Ali, José Serrizuela deixava o Independiente com um a menos.

Três minutos depois, Patricio Camps (que ganhava espaço a partir da triste lesão de Asad) ampliou ao líder ao mesmo tempo em que Marcelo Saralegui igualava ao Colón. A torneira da Academia se abriu: aos 25, Mauricio Risso virou para os santafesinos. Saralegui fez outro aos 29. Miguel Ángel Gambier anotou o dele aos 33. Aos 37, José Basualdo deu números finais na Doble Visera: Vélez 3-0. E aos 38, Saralegui completou sua tripleta nos 5-1 sobre o vice-campeão; a estatística credenciaria o uruguaio a reforçar o próprio Racing em 1996. Brindisi lamentaria: “me faltaram quatro partidas a mais. Não tiro o mérito do Vélez, mas se isso se desse nesse plantel, a coisa teria sido distinta”, jurou à El Gráfico em 2002. De todo modo, foi o vice-campeonato do Apertura da temporada 1995-96 que credenciou a Academia a aparecer na Libertadores de 1997, onde parou nas mesmas semifinais que agora almeja, especialmente depois da vitória de ontem sobre o Boca.

Vélez antes da formalidade na visita ao Independiente 25 anos atrás: Roberto Trotta, Carlos Compagnucci, o atual técnico Mauricio Pellegrino, Flavio Zandoná e José Basualdo; Christian Bassedas, Fernando Pandolfi, Patricio Camps, José “Turu” Flores, José Luis Chilavert e Raúl Cardozo

O Vélez, do seu lado, tratou de aparentar que aquele ciclo não teria fim, sendo campeão dos torneios de verão em 1996 e da Copa Interamericana antes de emendar seu único bicampeonato (em um Clausura que viu a explosão de Caniggia pelo Boca, outra vez perseguidor do Fortín até a penúltima rodada) com a posterior conquista da Supercopa. O Clarín, na edição seguinte à conquista daquela Apertura, profetizava: “o segredo não está em vencer e sim em convencer. E para convencer não basta uma partida. Tem que retroceder no tempo e vasculhar na história para encontrar argumentos. E este Vélez de Carlos Bianchi, outra vez campeão, os tem”. Mesmo perdendo Bianchi para a Roma ainda na reta final do Clausura 1996, haveria ainda mais argumentos em 1997 (Recopa) e 1998 (no Clausura de Marcelo Bielsa). Tempos que parecem menos distantes diante da presença de um remanescente dali feito o ex-zagueiro Mauricio Pellegrino à frente como técnico do épico que recolocou anteontem o Fortín em uma semifinal continental.

E o Boca? Nem no pódio ficou naquele Apertura; Maradona até voltou e converteu um pênalti na rodada final, mas o empate em casa com o Deportivo Espãnol fez o Lanús do técnico Héctor Cúper (germinando a Cúperativa campeã dali a um ano na Copa Conmebol) roubar o bronze ao vencer o Huracán. Mas se no Apertura e Clausura da temporada 1995-96 a tabela final esconde uma luta auriazul pelo título, a temporada 1996-97 viu a importância dos veteranos Maradona e Caniggia serem notadas pela ausência da dupla, que tirou conjuntamente um ano sabático – Diego para tratar-se das drogas e Cani, para recuperar-se do suicídio da mãe. Com eles dois de volta no segundo semestre de 1997, o Boca fez uma pontuação de campeão. Mas a taça outra vez não veio. Para tanto, foi preciso juntar-se ao inimigo de 25 anos atrás.

Carlos Bianchi assumiu em julho de 1998 trazendo sua filosofia contra egolatrias e em prol de coletivismo. Maradona já havia parado. Caniggia, mesmo sendo um oásis de criatividade numa campanha à deriva no Clausura 1998 a ponto de ser pedido para a Copa do Mundo, foi embora. E Diego Latorre, outro estrelista (a vociferar que aquele Boca estava “um cabaré”), também. Meia década depois daquele 17 de dezembro de 1995, era a vez do Boca celebrar, em 17 de dezembro de 2000, sua primeira tríplice coroa. Uma outra história, que fica para outro Especial.

A volta olímpica e a comemoração do segundo gol, soterrando Camps

https://twitter.com/Velez/status/1339569514921545731

 

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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