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Adeus a Silvio Marzolini, maior lateral-esquerdo da Copa de 1966, do Boca e da seleção

Na Copa do Mundo de 1966, onde a justa indignação argentina contra a arbitragem caseira fez com que a implacável mídia inglesa tachasse os hermanos desde mimizentos maus perdedores até “animais”, ainda assim Silvio Marzolini foi reconhecido como o melhor lateral-esquerdo do torneio. Foi o grande reconhecimento internacional a quem não foi galã apenas naquele verão britânico: além de realmente ter emprestado sua beleza como modelo, Marzolini foi um símbolo do Boca por mais de uma década, sendo em seu tempo o jogador com mais jogos e títulos no clube, além de ser o treinador do marcante time campeão sob Maradona. Após dias desenganando outra imprensa, a do próprio país (onde muitos meios vinham adiantando-se sem a devida checagem), hoje o defensor, mesmo com votos de apoio inclusive do River, já não resistiu a uma luta intensa contra as consequências de um derrame.

Parte da idolatria xeneize a Marzolini deve-se à estiagem de títulos que o clube padecia antes de busca-lo junto ao goleirão Antonio Roma no modesto Ferro Carril Oeste. O time do bairro de Caballito vencera a segunda divisão de 1958, ainda sem contar com aquele adolescente – que, irritado, chegou a ser tentar profissionalizar-se na Itália, mas o clube reteve o passe e o suspendeu. Moldado pelo time de Antártida Argentina nos torneios infantis promovidos por Evita Perón, aquele jovem já autoconfiante pelo seu 1,90 metros de altura estreou oficialmente no time principal do Ferro apenas em 31 de maio de 1959, ainda com 18 anos e uns seis meses de idade; nascera em 4 de outubro de 1940. Foi pela sexta rodada do campeonato daquele ano. O adversário? O Boca Juniors, que soube empatar em 1-1. Só não soube terminar acima dos reestreantes na tabela: os auriazuis ficaram só em nono enquanto os verdolagas celebravam um quarto lugar histórico.

Era a colocação mais alta até então lograda por um clube sempre marcado pela pouca prioridade dada a seu departamento de futebol, em prol da infra-estrutura a sócios e da força em outros esportes. E só não foi-se além porque, nos critérios de desempate, o Independiente, com os mesmos 33 pontos, fechou o pódio. Detalhe não menor: a defesa verdolaga sofreu 41 gols, menos do que o próprio campeão San Lorenzo e menos também do que o vice Racing. Mesmo em um time embalado pela recente conquista da segundona, Marzolini não só firmou-se de imediato na titularidade como logo apareceu na seleção argentina ainda como jogador do Ferro. Foi pela última edição do Pan-Americano, torneio quadrienal que reunia as seleções da Conmebol e da CONCACAF (não confundir com os Jogos Pan-Americanos). Outro sinal de prestígio foi a aparição na capa da revista El Gráfico com o uniforme alviverde, naquele mesmo mês de março de 1960.

Em seus inícios na seleção, o lateral figurou em três partidas do evento sediado na Costa Rica, vencendo os donos da casa e o México por 2-0. Esteve também na rodada final, onde nem a derrota de 1-0 para o Brasil em 20 de março impediu que o título ficasse com a Albiceleste. Na volta, assinou contrato com o Boca, que era o clube do coração do garoto que crescera no bairro de Barracas, vizinho ao de La Boca; seria um defensor fiel, recusando mais de uma proposta europeia para seguir na Casa Amarilla – em tempos de prestígio econômico e técnico equivalente entre o outro continente e o Cone Sul, vale ressaltar. Cinco dias depois do título pan-americano, ele já fazia sua estreia bostera, em um amistoso em 2-2 com o San Lorenzo em 25 de março de 1960. Foi uma das primeiras contratações do recém-eleito presidente Alberto Jacinto Armando, o homem que dá nome oficial a La Bombonera. Marzolini foi buscado mesmo em um cenário onde o Boca procurava investir em brasileiros – que, diante daquele nível econômico e de prestígio do futebol (e vida) na Argentina equiparáveis aos europeus, seduziam-se por uma terra que tinha as vantagens de ser mais próxima geograficamente e linguisticamente de casa. 

A primeira capa da Marzolini na El Gráfico, ainda pelo Ferro Carril Oeste, em março de 1960; e a última, apresentado como novo técnico do Boca em dezembro de 1994

O artilheiro botafoguense Paulinho Valentim e o defensor palmeirense Edson dos Santos, ambos com passagens pela seleção canarinho, foram os primeiros de uma leva que viria a incluir posteriormente até campeões da Copa de 1958, casos do zagueiro Orlando Peçanha, do meia Dino Sani e do técnico Vicente Feola. Ainda para 1960, outro reforço vinha da própria Europa, de onde o Milan revendeu seu ídolo Ernesto Grillo. O início do pacotão, a incluir ainda os uruguaios José Sasía e Walter Davoine e o peruano Víctor Benítez (por sua vez revendido à dupla Milan e Internazionale posteriormente) foi mesmo promissor, com uma sequência invicta nas dez primeiras rodadas do torneio de 1960 – enquanto o Ferro, sem Roma e sem Marzolini, despencaria do quarto lugar de 1959 ao antepenúltimo naquele novo campeonato. Com um único título argentino erguido desde 1944 (o de 1954, cujos dez anos de jejum que finalizou já eram os piores da história boquense), o time chegou a liderar o torneio até meados do segundo turno.

Porém, o Boca não se deu bem nos duelos diretos com quem concorria; mesmo vencendo o surpreendente Argentinos Jrs na 21ª rodada, incidentes no jogo custaram uma suspensão do uso da Bombonera. Faltando cinco, os xeneizes encontraram o Independiente, líder com um ponto a mais. Incidentes não faltaram e o Rojo soube prevalecer por 2-0. Mesmo perdendo na rodada final, a equipe de Avellaneda pôde encerrar seu próprio jejum, doze anos; o do Boca já chegava a sete. Além da nova seca se alongar, o próprio fútbol espetáculo prometido pelo presidente Armando não foi visto. Mas a torcida aprovou o desempenho dos novatos Marzolini, Roma e Valentim. Em 1961, chegaram então o pacote de 1958 (Orlando, Feola e Sani) junto de mais dois brasileiros com a canarinho no currículo – Maurinho, participante da Copa de 1954, e Almir Pernambuquinho. Ainda não era para ser; sem nunca brigar pela taça, a equipe foi inconstante e terminou em quinto, a doze pontos do campeão Racing, cujo título inclusive igualou-o junto ao Boca como maiores campeões argentinos.

Marzolini, do seu lado, se impunha na seleção. Não por continuidade; sempre testaram-se alternativas a ele, mas ele sempre terminava prevalecendo. Após aqueles três jogos no Pan-Americano em março de 1960, reapareceu em amistosos de maio para junho de 1961. Ausente das eliminatórias à Copa do Mundo, foi chamado ao Chile ainda assim, voltando a defender a Albiceleste em abril de 1962, em amistosos não-oficiais contra o Preussen Münster, o Internacional e o Real Zaragoza, contra quem até marcou o gol da vitória, antes de participar dos três jogos argentinos no Mundial – só ele e Federico Sacchi foram mantidos nas três partidas. A Argentina caiu ainda na fase de grupos, mas Marzolini declararia já em 1968 que seu melhor ano individualmente seria aquele de 1962 mesmo, e não o de 1966. Muito pelo que conseguiu no Boca. O clube atiçou o mercado, trazendo do Racing campeão o veterano atacante Juan José Pizzuti, além de mais um brasileiro (o botafoguense Walter da Silva). Mas as soluções estavam em promessas de times médios e pequenos: do Huracán veio um antigo ídolo riverplatense, o meia Norberto Menéndez. Do Vélez, Carmelo Simeone, sem parentesco com Diego. E do forte Atlanta da época saíram o ponta Alberto González e o goleiro Néstor Errea.

O novo técnico seria José D’Amico, originalmente um preparador físico. Mas foi com aquele teoricamente inexperiente treinador que as peças se encaixaram. O Boca esteve invicto nas doze primeiras rodadas. Uma ligeira derrapada combinada a uma série de vitórias do Gimnasia LP fez com que os platenses roubassem a liderança por um tempo, na temporada que rendeu-lhes o apelido de Lobo. Mas para a reta final prevaleceram as camisas mais pesadas: não só o Boca, mas também o River estava no páreo, uma combinação mais rara do que pode parecer. A história é conhecida. Os rivais, igualados na liderança, se encontraram na penúltima rodada na Bombonera, em tarde marcada por pênaltis cobrados por brasileiros. Mesmo diante da lenda Amadeo Carrizo, Paulinho Valentim converteu o do Boca, mas El Tano Roma não teve seus passos adiantados sancionados pela arbitragem ao pegar já aos 40 minutos do segundo tempo a cobrança de Delém.

A pinta mista de Paul Newman com Robert Redford pela seleção e pelo Boca. E o elogio de Bobby Charlton ao Jornal do Brasil ao melhor lateral-esquerdo da Copa de 1966

Ainda havia chances matemáticas ao River, caso o rival vencesse na rodada final e o Boca perdesse, o que forçaria um jogo-extra. Mas o torneio, moralmente, terminou naquele Superclásico. Nenhuma margem ao azar foi permitida depois, trucidando-se o Estudiantes por 4-0 (no dia da estreia de Juan Ramón Verón pelos alvirrubros) no jogo seguinte. Humilde, Marzolini atribuiria sua ótima fase à companhia de Orlando Peçanha: “lhe asseguro que jamais me senti tão seguro como quanto tinha o brasileiro na minha cobertura. Eu avançava e sabia que se o centroavante se deslocasse à ponta ele morria em Orlando, porque era de uma segurança total, e eu entrava para jogar com uma confiança tremenda”. Em uma escola onde laterais costumavam apenas marcar o ponta adversário, Marzolini foi um dos pioneiros em aplicar a escola brasileira, avançando mais ao ataque: “com D’Amico, jogávamos sem ponta-esquerda e podia subir pela lateral, recorrer o campo, participar mais do jogo. Mas aquele era um Boca que jogava no contra-ataque”, explicou. Seria descrito como um defensor que “defende como argentino e ataca como brasileiro”.

Aquele título também classificou pela primeira vez o Boca à Libertadores. Os xeneizes foram os primeiros argentinos a levar a competição a sério, parando só diante do Santos de Pelé; o Milan, de olho na final para espionar seu adversário no Mundial, fez uma primeira proposta europeia oficial por Marzolini. O defensor recebeu ainda um primeiro reconhecimento da FIFA, ao ser chamado à primeira convocação de uma seleção do Resto do Mundo, que enfrentaria a Inglaterra nas comemorações do centenário da federação inglesa, mas a lesão que forçou sua substituição em pleno intervalo da segunda final contra o Santos, em 4 de setembro, o tirou dos gramados até novembro – impedindo que figurasse naquela solenidade travada em Wembley em 23 de outubro. O desfalque e o excessivo enfoque na Libertadores fizeram o Boca se permitir a deixar de lado o torneio argentino de 1963, ao menos até diante de novo Superclásico de reta final, agora no Monumental.

Estava em jogo apenas atrapalhar as pretensões de título ao River e assim foi feito, com o triunfo de 1-0 permitindo que o Independiente passasse a liderar. Agora era o rival quem mais sentia um jejum incômodo, pendente desde 1957 –  seca com muitos capítulos a serem ainda escritos por Marzolini e todo o Boca. Em 1964, mesmo começando o torneio levando uma virada em casa do Atlanta (o 2-0 virou derrota de 4-2), os auriazuis trataram de emendar 18 jogos de invencibilidade, muito por conta de uma defesa que só sofreu um único gol entre a 6ª e a 19ª rodadas. Só voltaram a perder graças ao rebote de um pênalti em encontro contra o Racing. A invencibilidade durou inclusive um jogo a mais, considerando que entre essas rodadas o time ainda embarcou ao Marrocos para participar do tradicional Torneio Mohamed V. Lá bateu por 3-0 o Saint-Étienne de áureos tempos antes de enfim sofrerem um gol, mas ainda assim marcando dois para vencer por 2-1 o Real Madrid e ser o campeão. Outro derrotado foi o Barcelona, por 3-2, após já ter perdido de 2-1 duas vezes para os xeneizes em 1963.

O jogo contra o Racing deu-se exatamente na volta ao torneio argentino, onde a defesa boquense computou meio gol sofrido por jogo – 15 em 30, compensando um ataque decadente que só marcou 35. Até hoje, o ataque do Boca de 1964 é o de pior média de gol para um campeão argentino. O título garantiu-se na penúltima rodada. O adversário? O River, ainda que já fora do páreo. Um único gol, de Menéndez aplicando a lei do ex, bastou. O título serviu também para nova reaparição bissexta de Marzolini na seleção. Ausente desde a Copa do Chile, o lateral voltou em um inapelável 8-1 sobre o Paraguai em 8 de dezembro de 1964. Para 1965, o clube novamente levou a Libertadores a sério, mas a força adquirida pelo Independiente com o pioneiro título do Rojo em 1964 se estendera também aos bastidores: nas semifinais entre os dois clubes, os cartolas vizinhos conseguiram colar na Conmebol que as escalações dos reforços Roque Avallay e Ricardo Pavoni, já inscritos para o campeonato argentino, mas não para La Copa, deveriam ser convalidadas por serem duelos caseiros.

A volta olímpica extra de Marzolini em 1969 no Monumental: deu duas, respondendo à falta de cavalheirismo dos cartolas do River

O Rojo venceu a primeira por 2-0, caiu na segunda por 1-0 e assim teve a vantagem do empate no jogo-extra, encerrado sem gols, e avançou para seu bicampeonato. Por outro lado, o fim da linha na Libertadores ainda no início de abril permitiu que o Boca tivesse foco total no campeonato argentino, que iniciaria na segunda quinzena daquele mês. Mas o time já não teria os ídolos brasucas Orlando e Valentim. E começou o torneio com seis empates nos oito primeiros jogos. O River, do seu lado, arrancava na liderança, mas a crescente freguesia fez-se sentir já no primeiro turno: mesmo no Monumental, o Boca venceu o primeiro Superclásico do torneio, por 2-1. Gradualmente, os campeões de 1964 recobraram a forma e já estavam igualados ao rival na liderança quando houve a revanche no returno, na antepenúltima rodada. Tal como em 1962, o Boca fez valer o fator casa, venceu e se isolou. E, tal como em 1964, graças a Menéndez: ele marcou o gol da virada de 2-1 sobre o time do técnico Renato Cesarini, que precisou resignar-se em ouvir “Renato, Renato, lhe roubamos o campeonato” da torcida bostera.

Com um empate e outra vitória nos dois jogos restantes, o Boca foi bicampeão. E ainda que o time voltasse a parar nas semifinais na Libertadores no primeiro semestre de 1966, Marzolini outra vez garantiu-se na Copa do Mundo mesmo sem participar das eliminatórias; ao longo de 1965, realizara um único jogo pela Argentina, um 0-0 contra a França em Paris, ainda em junho. A Argentina vinha de duas eliminações seguidas na fase de grupos precedidas de ausências políticas nas três edições anteriores (1954, 1950 e 1938) e uma sub-representação em outra (só amadores competiram em 1934). Havia muita honra em jogo na Inglaterra e a simples passagem de fase foi bastante festejada pela mídia portenha, polêmica eliminação à parte contra os anfitriões. O adversário Bobby Charlton ainda tinha fresca a lembrança, ao ser indagado em 1970 pela imprensa brasileira sobre quais seriam os grandes jogadores que enfrentara: “Marzolini, da Argentina, que considero um lateral simplesmente perfeito. Didi, Puskás e Di Stéfano. Esses homens sabem tudo de futebol”.

Único argentino eleito para o time da Copa, Marzolini recebeu propostas do Real Madrid recém-campeão europeu e da Fiorentina. Mas manteve-se fiel ao time do coração, cujos diversos desfalques para a Copa trouxeram-lhe problemas no torneio argentino, que seguiu normalmente durante a disputa do Mundial. Não foi possível alcançar o Racing, que embalou-se em um recorde profissional de 39 jogos seguidamente invictos. Os xeneizes puderam apenas fechar o pódio. O estrelado lateral, por sua vez, conseguiu continuidade inédita na seleção, participando da Copa América realizada em janeiro de 1967 – onde até marcou seu único gol oficial pela Argentina, no 5-1 sobre a Venezuela. O título, porém, escapou na rodada final no duelo direto com o anfitrião Uruguai. E o Boca, por sua vez, entrou em uma relativa entressafra onde nem mesmo o ídolo foi poupado de algumas vaias, a ponto de desabafar à El Gráfico em 1968 que “queria mudar de sobrenome e começar tudo de novo”.

Em 1967, ano em que a liga argentina deu lugar ao Torneio Metropolitano e ao Nacional, o clube caiu na primeira fase do primeiro e, embora se saísse invicto na intertemporada contra o Benfica de Eusébio (dois 1-1) e o Bayern Munique (1-0 no Camp Nou, pelo Troféu Joan Gamper), terminou o outro apenas em oitavo. Marzolini ainda foi usado pela seleção em dois jogos-treino de fim de ano, mas passou o ano de 1968 inteiramente ausente após uma nova temporada coletivamente decepcionante (e literalmente trágica naquele Superclásico da Porta 12) somar-se a uma lesão que o afastou dos gramados entre julho e outubro. Quando voltou, fez a diferença. Embora tenha terminado em quinto no Nacional, o Boca teve chances de título até a rodada final, quando nem seu 8-0 sobre o Huracán de Bahía Blanca impediu que terminasse um ponto atrás dos três líderes. No primeiro semestre de 1969, os xeneizes mantiveram-se no páreo do Metropolitano, caindo na semifinal contra o River. Assim, Marzolini voltou à seleção.

Marzolini foi o técnico (daí a letra “T” no paletó) do único título de Maradona no futebol argentino. Dieguito publicou essa foto para homenagear hoje o mestre

Desconsiderando-se os jogos-treino do fim de 1967, a ausência dele na Albiceleste passava de dois anos. Ironicamente, após ir a duas Copas do Mundo sem jogar as eliminatórias, dessa vez participou inteiramente da fase de qualificação… sem ir à Copa. Ele, como todos os argentinos, terminaram desclassificados em 31 de agosto mesmo dentro de La Bombonera, onde prevaleceu o Peru na briga direta pela única vaga do grupo. O 2-2 a favorecer os visitantes foi a amarga despedida do lateral na seleção. Mas ele encerraria o ano em alta. Treinado por Di Stéfano, o Boca voltou a exibir um belo futebol e só não venceu antecipadamente o Torneio Nacional por conta de uma notável recuperação do River. Nada que fizesse falta diante da conclusão do torneio, que guardou para a rodada final um Superclásico no Monumental. O empate bastava aos visitantes, que ainda assim buscaram o ataque, abrindo 2-0. O Millo até empatou, mas a reação parou aí.

Di Stéfano era o irônico treinador auriazul e os dois gols do título foram anotados por Norberto Madurga (futuro palmeirense), mas o retrato da conquista foi a figura de Marzolini ao apito final: em tempos de rivalidade mais sadia entre as torcidas, a plateia da casa soube aplaudir o ineditismo que foi ver o rival campeão sob seu nariz. Mas a diretoria millonaria não teve o mesmo cavalheirismo, acionando o sistema de irrigação para atrapalhar a volta olímpica xeneize. Longe de se intimidar, Marzolini respondeu não como uma só volta: deu, sozinho, duas. O rival daria um troco ficando com a única vaga nas semifinais na segunda fase de grupos da Libertadores de 1970, com o enfoque xeneize no continente fazendo-o ficar a dois pontos do título do Metropolitano. O velho xerife Antonio Rattín pendurou as chuteiras, passando a Marzolini o bastão como caudilho máximo do Boca para o segundo semestre. O lateral soube corresponder: no Nacional, os bosteros terminaram em segundo no grupo, igualados ao líder Rosario Central, dono da melhor campanha.

Os dois clubes, adiante, se encontraram na decisão. Ali, prevaleceu a camisa auriazul mais pesada, mesmo que fosse preciso uma sofrida virada na prorrogação – o que aumentava o sabor de uma nova conquista seguida dentro do Monumental, usado como campo neutro. “River, River, dance chachachá, você deveria estar feliz, pois o campeão é seu papá” foi o canto da torcida campeã. E também o canto do cisne da Era Marzolini no clube. Em 1971, o time não só caiu na fase de grupos da Libertadores pela primeira vez, sob o vergonhoso tumulto de dezenove expulsões no encontro com o Sporting Cristal (no banco de reservas, o lateral foi exatamente uma das exceções, buscando sem sucesso serenar os ânimos de todos), como terminou apenas em oitavo no Metropolitano. No Nacional, até brigou pela vaga nas semifinais, mas não fez valer o fator casa contra o San Lorenzo na antepenúltima rodada e os azulgranas adiante avançariam pelos critérios de desempate. Decepção seguida de ressaca no Metropolitano de 1972, onde a azul y oro foi nona colocada.

Marzolini ainda recebeu proposta do futebol francês, mas decidiu penduras as chuteiras ao fim daquele ano. Com 22 pontos, o Boca foi líder do Grupo B no Torneio Nacional, mas com a mesma pontuação do vice-líder do Grupo A, o River. O San Lorenzo, com 23 pontos nesse outro grupo, aguardou então uma semifinal entre os rivais. Marzolini já era o recordista de Superclásicos oficiais: foram 41, com mais vitórias (quinze) do que derrotas (dez), especialmente em decisões. Mas o treinador Rogelio Domínguez prescindiu dos serviços do veterano, que sequer teve um jogo-despedida. Ainda em jejum desde 1957, o River venceria para fazer a final contra o Ciclón. A partida final do lateral deu-se três dias antes daquela derrota, atuando os 90 minutos, sem sanções, do triunfo de 1-0 sobre o Huracán.

Homenagens nessa década: a foto usada pela El Gráfico no perfil dedicado a ele na edição que elegeu em 2010 os cem maiores ídolos do Boca. E a inauguração da estátua do lateral no museu do clube, em 2015

Após três anos sabáticos, Marzolini reapareceu no futebol como técnico do All Boys, trabalhando por dois anos no clube do bairro da Floresta, evitando com sucesso o rebaixamento; o Albo terminou duas posições acima da degola em ambos (em 1975, logo acima do rival Argentinos Jrs e em 1976, acima do gigante Racing). O treinador era reconhecido também pela El Gráfico, que em 1976 o escalou como lateral-esquerdo da seleção dos sonhos da Argentina, muito antes de o Futebol Portenho fazer o mesmo para o time ideal da história do Ferro, em 2014, e para o do Boca, em 2015. Naquele período, o Boca iniciava outro período áureo. Em 1976, encerrou seis anos de jejum em alto estilo, levantando tanto o Metropolitano como o Nacional, antes de enfim vencer a primeira Libertadores em 1977 – seguido pelo primeiro Mundial e pelo bi na Libertadores em 1978. Em 1979, o time chegou a nova decisão seguida em La Copa, mas caiu para o Olimpia. Deu-se assim por encerrado o ciclo do vitorioso treinador Juan Carlos Lorenzo, substituído inicialmente por Rattín. O volante, contudo, não foi capaz de repor o Boca no páreo.

A nova resposta do clube foi ir atrás da joia Maradona. E, para aclimata-la a um ambiente de pressão que não existia sobre o Argentinos Jrs, Marzolini foi o ídolo de outrora chamado como escudo. O ex-lateral foi na realidade a primeira aquisição buscada pela nova diretoria, que sucedia a longeva gestão de Alberto Jacinto Armando, finalizada na virada de 1980 para 1981. Mesmo com Diego no auge, o Metropolitano de 1981 não foi nadado de braçada: o astro ausentou-se por boas rodadas devido a lesões musculares decorrentes do acúmulo de jogos imposto pela diretoria em amistosos país e mundo afora usados para retornar mais rapidamente o investimento no astro. Foi preciso aguardar até a rodada final, e um único ponto separou o campeão do vice. Marzolini viveu a irônica situação de competir exatamente contra o Ferro Carril Oeste, que, às portas de sua fase mais áurea, ali superava aquela grande campanha de 1959. No Nacional, o Boca foi de maior a menor, caindo nas quartas-de-final para o Vélez. Marzolini sequer seguiu para os amistosos de janeiro de 1982 que marcaram a primeira despedida de Maradona: sem um entendimento econômico com os cartolas para renovar o contrato, deixou o cargo naquela eliminação contra os velezanos.

Rubén Suñé já havia superado Marzolini em títulos, e em 1983 outro lateral, Roberto Mouzo, superou-o em jogos pelo Boca. O ídolo sessentista preferiu não ficar nos holofotes e só veio a trabalhar como técnico uma outra vez, já em janeiro de 1995, com a missão de substituir no Boca ninguém menos que César Menotti. O quarto lugar no Clausura representou um avanço em relação ao 13º no decepcionante Apertura 1994, e foi tolerado também pela expectativa alta para o Apertura 1995: o clube contratara Maradona novamente e esperava-se bastante da reedição da parceria de Dieguito e Marzolini. E a torcida se permitiu sonhar com uma campanha excelente na maior parte do torneio. O time liderava de modo invicto, sofrendo só seis gols até a antepenúltima rodada. Mas sofreu mais seis só naquela desastrosa tarde em casa contra o Racing. Na cola, o Vélez passou e as chances de título terminaram já na rodada seguinte, em nova derrota, agora para o Estudiantes. O novo presidente, Mauricio Macri, preferiu reeditar para Maradona a parceria deste com Carlos Bilardo para o ano de 1996.

Até virar em 2015 uma das estátuas que decoram o museu do Boca, Marzolini seguiu a vida no jornalismo e como assessor no Ministério de Esportes antes de voltar a um clube de futebol como coordenador dos juvenis do Banfield, em 1998. Lá, ainda deixaria contribuições indiretas ao ex-clube, lapidando diversas promessas que, além de levar o Taladro à sua primeira Libertadores (em 2005, quando pôde ir até as quartas-de-final), demonstrariam serviço também com o manto azul y oro a partir de meados da década seguinte – de Daniel Bilos e Rodrigo Palacio a Jesús Dátolo e mesmo Gabriel Palletta ou Darío Cvitanich. Nenhum discípulo comparável a Maradona, o primeiro a se apressar em homenagear o mestre nas redes sociais: “sob a mão de Marzolini, muitos dos garotos do Boca demos nossa única volta olímpica no país”, começou Diego, que de fato nunca pôde ser campeão argentino outra vez. “Aquele grupo tinha cada neném, e você o manobrou de uma forma incrível. Foste uma excelente pessoa, campeão como jogador e como técnico. Muito obrigado, Silvio, e que em paz descanses”.

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Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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