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Isidro Lángara, o goleador basco

Qualquer livro sobre goleadores do futebol espanhol deverá ter capítulos destinados a Alfredo Di Stéfano, Ferenc Puskás, Hugo Sánchez, Raúl, Lionel Messi e Cristiano Ronaldo. Um outro há de ser dedicado a Isidro Lángara Galarraga, um basco que teve uma passagem bastante especial na Argentina. No dia em que ele completaria cem anos, o Futebol Portenho lembrará um pouco da trajetória do mais autêntico dos Vascos do futebol argentino.

Nascido na cidade de Pasaia, na província de Guipúzcoa, não chegou a passar por Athletic de Bilbao, Real Sociedad, Alavés ou Osasuna, as grandes equipes bascas. Mas foi descoberto pelo não muito longe Real Oviedo, das Astúrias, seu primeiro clube profissional. O jovem passaria a chamar mais atenção a partir de 1932. Daquele ano, em que debutou na seleção espanhola mesmo ainda jogando na segunda divisão, seu time seria campeão asturiano três vezes seguidas. Em tempos pré-franquistas, os torneios regionais, muitos travados desde o início do século (ao passo que a liga espanhola só passou a ser disputada em 1928), ainda tinham bastante prestígio.

Foi também na temporada 1932-33 que o título e acesso à elite foram conquistados pelo Oviedo. E Lángara o carregou nas três temporadas que se seguiram na primeira divisão. Foi artilheiro em todas, sempre com média superior a um gol por jogo: 27 tentos em 18 partidas na edição de 1933-34; 26 em 22 na de 1934-35; e 27 em 21 na de 1935-36. Os três Pichichis consecutivos seriam um recorde por mais de meio século, até Hugo Sánchez emendar o quarto seguido em 1988.

Anotando o terceiro gol espanhol (e segundo dele) nos 3-1 para eliminar o Brasil na Copa de 1934, vinte anos antes da CBD trocar a camisa branca pela canarinho

O Oviedo, paralelamente, evoluía: sexto colocado no debute e terceiro nos dois campeonatos seguintes, sendo que, no último, o campeão Athletic de Bilbao esteve a três pontos de distância. Foi logo em seguida ao melhor campeonato de Lángara que sua carreira na terra natal sofreu uma dramática interrupção, com a eclosão da Guerra Civil Espanhola. Nos três anos do conflito, o futebol nacional ficou paralisado.

O mesmo ano de 1936 marcou também a última aparição de Lángara pela Espanha; inclusive, estivera com ela na Copa do Mundo de 1934. A Furia classificara-se após duas vitórias sobre Portugal, com ele marcando os dois gols da vitória em Lisboa por 2-1 e cinco no impiedoso 9-0 em Madrid, números que fizeram do atacante o artilheiro das primeiras eliminatórias mundialistas. No torneio, Lángara marcou dois nos 3-1 sobre o Brasil, na estreia, em que do lado espanhol apenas o goleirão Ricardo Zamora não era basco.

A segunda partida da Espanha foi nas quartas-de-final, ante a anfitriã Itália (com Mussolini na plateia), em um violento empate em 1-1 que, com prorrogação e pesada marcação adversária, exauriu os espanhóis. No jogo-desempate, já no dia seguinte, Lángara foi um dos sete massacrados que não puderam ser utilizados pelo técnico Amadeo Salazar. Ao todo, totalizaria até 1936 dezessete gols nos parcos doze jogos em que esteve em campo por essa seleção – afinal, ele defenderia outra, a do País Basco natal, reunida para angariar fundos em favor dos republicanos (resistentes às golpistas falanges do General Franco) na guerra civil.

San Lorenzo na estreia de Lángara, com as notas dadas pela El Gráfico aos jogadores: Gualco, Gilli, o também basco Zubieta, Terzolo e Montoya; Cavadini, o brasileiro Waldemar de Brito (descobridor de Pelé!), Lángara, Ballesteros, Beristain (que brilharia na Portuguesa Santista) e Colombo.

Quando a Europa ficou perigosa demais, o jeito foi partir para as Américas. No México, a seleção basca converteu-se no Club Deportivo Euzkadi e acabaria na segunda colocação da liga mexicana de 1938-39, concluída no ano em que a guerra civil chegou ao fim. Alguns exilados voltaram. Outros, não, incluindo outros espanhóis não-bascos, como o catalão Martí Ventolrà (do Atlante), jogador da Espanha na Copa de 1934 cujo filho José defenderia o México na de 1970. E teve quem dali veio à Argentina.

Pedro Areso, ex-Barcelona e integrante do único título espanhol do Real Betis, veio ao Tigre em 1938 e defenderia também o Racing. Serafín Aedo, ex-colega seu nos dois clubes espanhóis, jogou no River, assim como Leonardo Cilaurren (eleito oficialmente o melhor zagueiro central daquela Copa de 1934) e Gregorio Blasco, ambos ex-Athletic. A Argentina recebeu também espanhóis que não eram do Euzkadi. Foram os casos de outro ex-Barcelona, o catalão Julio Munlloch, que veio ao Vélez, clube que teve também o cântabro Nando García Lorenzo, que também defenderia o San Lorenzo.

E o clube azulgrana se converteria no principal destino. Incluindo o de um ex-Real Madrid, Emilín, codinome de Emilio Alonso Larrazábal. Ele, porém, só jogou oficialmente uma vez pelo time do Boedo – ele, curiosamente, havia sido adversário de Munlloch e de Areso na final da Copa do Rei de 1935-36, uma semana antes da guerra estourar. O mais longevo foi Ángel Zubieta, que jogaria até os anos 50. Mais jovem estreante da seleção espanhola, com 18 anos ainda incompletos em 1936, Zubieta foi um dos primeiros a chegarem – e dentre suas recomendações, vieram justamente os que marcaram contra o Brasil na Copa de 1934: José Iraragorri, que também foi o autor do primeiro gol da Espanha em Copas; e Lángara.

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A desconfiança quanto ao físico durou menos de um tempo de jogo na estreia: à direita, seu quarto gol no River naquele debute

A estreia de Lángara seria épica, tornando-se um conto a ser transmitido de avós a netos cuervos. As crônicas da época apontam que valeu já pela 10ª rodada do campeonato de 1939, em 21 de maio. No mesmo dia, Lángara teria desembarcado do navio (teria feito o aquecimento no convés, conforme as lendas) e rumado diretamente com suas malas para o Gasómetro.

O recém-chegado atacante, a vestir um uniforme bastante apertado para o seu “físico de leiteiro aposentado ou de garoto de filme de Charles Chaplin”, logo assombrou os que não disfarçavam o sarcasmo: ao fim do primeiro tempo, o novo colega do brasileiro Waldemar de Brito (futuro descobridor de Pelé em Bauru) já somava quatro gols pelo novo clube.

Lángara marcou aos 7, cabeceando um tiro livre cobrado por Bartolomé Colombo; aos 15, dois minutos depois de empate provisório do adversário, ao usar o peito do pé para completar à meia-altura um cruzamento Gabino Ballesteros; aos 21, em chute rasteiro para aproveitar cruzamento de Tomás Beristain (que brilharia pela Portuguesa Santista em tempos pré-Pelé de equilíbrio dela com o Santos, nos anos 40); e aos 35, usando a parte externa do pé esquerdo para, em pleno ar, aproveitar indecisão do goleiro Juan Besuzzo e do beque Alberto Cuello. O adversário conseguiu no máximo atenuar a onze minutos do fim do jogo, e ainda assim precisando de um pênalti para arrancar um segundo gol de honra; foi convertido por Luis Rongo, futuro matador no Fluminense.

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Lángara como estrela na Argentina; marcando seu segundo gol na estreia contra o River; e no clube mexicano Real España com José Manuel Moreno, uma das vítimas daquela goleada

O novato marcaria outras trinta vezes nas 24 rodadas restantes, ficando a seis gols do superartilheiro Arsenio Erico (do campeão Independiente), que vinha atuando desde o início do torneio; chegou a haver jogo em que o espanhol tanto conseguiu um hat trick como deixar de ir além ao desperdiçar dois pênaltis, nos 3-1 sobre o Atlanta. Ele também se destacava até quando o time pifava: em pleno Boedo, era historicamente surrado por 5-0 por um Huracán forte na luta pelo título. Nos seis minutos finais, o basco achou dois golzinhos de honra que foram providenciais na história do clássico: a maior goleada do dérbi seria justamente por 5-0, mas a favor do San Lorenzo e já em 1995.

Registros apontam que conseguiu marcar gol até de joelho, como o quarto em 5-1 sobre o Ferro Carril Oeste, sendo também dele o quinto – este, com mais refinamento, driblando o goleiro verdolaga Ángel Capuano (outro futuro campeão carioca no Fluminense) após receber assistência de Waldemar. Que ainda conseguiu quatro gols em um mesmo jogo no impiedoso 7-1 como visitante sobre o Argentino de Quilmes, placar aberto por Waldemar após assistência de cabeça fornecida pelo espanhol. Ou que quando seu gol foi o único do duelo, saiu após enfileirar três adversários driblados, na visita ao Tigre.

Na virada para 1940, treinado pelo artilheiro da primeira Copa do Mundo (Guillermo Stábile), o San Lorenzo visitou o Brasil pela primeira vez e saiu invicto: 5-1 no Botafogo com quatro gols de Lángara; 1-0 no Vasco e no Flamengo com ele marcando os únicos gols; 6-1 de um combinado Independiente-San Lorenzo com três gols do espanhol sobre um combinado carioca; três 0-0 com Botafogo, Flamengo e Vasco; e 4-2 no Flamengo com outro do basco. A fase era tão boa que Lángara relegou à reserva o formidável Agustín Cosso, que foi ao Banfield – Cosso havia feito 34 gols em 38 jogos pelo Ciclón em 1938 e 20 em 29 pelo Flamengo em 1937.

Em outros dois momentos com Leônidas da Silva, adversário dele na Copa do Mundo de 1934: no San Lorenzo 1-0 Flamengo de 1940 e como espectador da Copa Roca. Também de terno e gravata, os espanhóis Iraragorri (à esquerda, também jogara a Copa de 1934) e Zubieta (direita). O calvo é o massagista Giuliano

Em 1940, a artilharia não escaparia a Lángara desta vez, com 33 gritos. Mas a taça, sim: ali, o CASLA ficou só em 9º, depois de ser 5º no ano anterior. 24 gols de sua estrela conduziram os azulgranas em 1941, quando ficaram no vice-campeonato, quatro pontos atrás da grande esquadra do River Plate. Outro ano depois, novamente La Máquina foi campeã sobre o “clube dos espanhóis”, como o San Lorenzo havia se tornado graças a Lángara.

O espanhol virara ídolo dos conterrâneos que estavam imigrados na Argentina, em razão ou não da guerra, fossem bascos ou não – até porque os pequenos Centro Español (só afiliado na AFA em 1959) e o Deportivo Español (fundado apenas em 1956) não se faziam presentes no cenário, bem como o já extinto Hispano Argentino. Só no mês de maio de 1939, o mês da estreia de Lángara, dois mil espanhóis haviam se tornado sócios sanlorencistas. Mas em 1942 a principal referência ofensiva já era o jovem Rinaldo Martino, artilheiro do campeonato de 1942 com 25 gols, dez a mais que o ibérico.

Lángara chegou a disputar o início do torneio de 1943, onde marcou as últimas quatro vezes (de 110 gols) nos últimos seis jogos (de 121) desfrutados com a malha sanlorencista. Recebera grande proposta do Real España. Após apenas quatro anos, deixou o Ciclón como o segundo maior artilheiro da história da instituição até então, abaixo somente dos 164 tentos de Diego García, que ficara quinze anos ali. Os outros cinco que hoje também estão à frente de Lángara só o superaram posteriormente: José Sanfilippo, Rinaldo Martino, Rodolfo Fischer, Héctor Scotta e Alberto Acosta. El Vasco chegou a ser também o maior artilheiro cuervo no clássico contra o Huracán, com 9 gols.

Trio espanhol no San Lorenzo: Lángara com Ángel Zubieta e Nando García Lorenzo, que já havia defendido o Vélez ao exilar-se

Na artilharia da rivalidade de bairro, apenas Sanfilippo, com 16, o superou – no geral, está atrás também do antigo adversário Herminio Masantonio, que fizera 13 até 1940; e ao lado de outros dois jogadores do rival, Emilio Baldonedo e Miguel Ángel Brindisi, que também somaram 9 posteriormente. Novamente no futebol asteca, chegou a atuar com José Manuel Moreno (um dos goleados naquele emblemático 4-2 que serviu de estreia a Lángara no San Lorenzo) no Real España. Logo obteve as taças que vinham faltando: Copa do México da temporada 1943-44, campeonato mexicano da de 1944-45 e a Supercopa de ambas.

Mesmo já na casa dos trinta anos, as artilharias também não lhe deixaram, com Lángara sendo o máximo goleador da liga em 1944 e 1946. Até hoje, só Alfredo Di Stéfano (Argentina, Colômbia e Espanha) e Romário (Brasil, Holanda e Espanha) também foram artilheiros da divisão de elite em três países. Lángara foi além, conseguindo em três continentes.

Com a Segunda Guerra Mundial já encerrada, Lángara retornou ainda em 1946 à Europa, à Espanha e ao Real Oviedo; sua reestreia pela seleção deu-se justamente em reencontros com o San Lorenzo, que fez na virada de 1946 para 1947 uma vitoriosa excursão por Espanha e Portugal. Lángara até marcou para pôr a Furia à frente por 4-3 em 1º de janeiro, mas três minutos depois o “sucessor” Martino, autor do terceiro gol, tornou a empatar em um maluco 7-5 a favor dos argentinos.

No Real Oviedo, na seleção espanhola e com uma txapela, típica boina basca

Houve revanche dali a duas semanas, sem piedade para Lángara: até mesmo Zubieta deixou o gol dele sobre o próprio país em um inapelável 6-1 (!). Martino, por sua vez, estava mais do que talhado, deixando gols sobre Atlético de Madrid (duas vezes em 4-1), Porto (três vezes em 9-4), seleção portuguesa (quatro vezes em 10-4) e Sevilla, o campeão espanhol da temporada… e que precisou ser reforçado com reservas sanlorencistas para ficar no 5-5.

Depois de parar de jogar, Lángara foi novamente morar no México, escapando do período mais repressor da ditadura franquista. Como técnico, chegou a conduzir o pequeno Puebla ao título da Copa local em 1954. Assim, ele, que já havia vencido o campeonato chileno de 1951 (com o Unión Española, por sinal), acabou atraindo novamente um antigo clube: em 1955, para tentar resolver a pendência que deixara na Argentina, regressou a Boedo: “A sorte de ser goleador me juntou aos torcedores, mas me doeu não poder sair campeão com o San Lorenzo”.

A lacuna, infelizmente, ficou longe de ser preenchida também na nova função. Duas vitórias, quatro empates e duas derrotas no campeonato de 1955 fizeram Lángara decidir por voltar à Espanha. Morou na cidade de Andoain, em sua Guipúzcoa e bem longe do Gasómetro, até 22 de agosto de 1992, quando seu coração, após 80 anos, parou de bater.

Capas que a revista argentina El Gráfico dedicou a Lángara

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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