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Luto no San Lorenzo com a perda do ídolo Enrique Chazarreta, da Copa 74

Enrique Salvador Chazarreta não foi um craque vistoso. Seu apelido era inclusive El Obrero, como retratado com humor nessa produção da revista El Gráfico. Dedicação e títulos, contudo, fizeram o nome Chazarreta (a pronúncia é “Tchaçarêta”) ser “gravado a fogo e situado no seleto grupo dos ídolos”, nas palavras que iniciam o verbete dele no Diccionario Azulgrana, livro publicado no centenário do San Lorenzo e que registrou todos os jogadores que defenderam o time do Papa. Foi o suficiente também para ir a uma Copa do Mundo, prêmio nem sempre alcançado por gente mais habilidosa na Argentina. Ontem, o ídolo não resistiu a uma forte pneumonia.

Chazarreta nasceu no interior do interior: veio ao mundo na cidade de Coronel Du Graty, na província do Chaco, em 29 de julho de 1947. De início, jogava no ataque, mais precisamente na ponta-esquerda, começando no ignoto Marcelino Ugarte da cidade natal. Pôde saltar a um dos principais clubes provinciais, o Sarmiento da quente capital Resistencia – não confundir com o da cidade bonaerense de Junín, o mais conhecido. Em 1967, foi campeão na liga chaqueña. E o San Lorenzo foi apostar no ponta.

Ele estreou pelo novo clube em 16 de fevereiro de 1968, como titular em amistoso contra o Gimnasia LP. O clube de Boedo venceu por 3-0. Chazarreta voltou a campo três dias mais tarde, em outro amistoso do fim de pré-temporada. Saiu do banco já improvisado como volante, sem evitar derrota de 3-2. Começou o histórico Torneio Metropolitano, mas o técnico sanlorencista, o brasileiro Tim, não confiou no reforço. Pedro González era um ponta-esquerda mais maduro. No decorrer da campanha, o chaqueño só era usado em amistosos que a permeavam. E saindo do banco, como em um 8-2 no Unión Progresista de Río Negro em 5 de maio ou até numa volta ao Chaco, em 1-0 sobre os ex-colegas do Sarmiento em 3 de julho.

Alongado pelo goleiro reserva Roberto D’Alessandro na semifinal do Nacional de 1971, marcada pela primeira decisão por pênaltis do futebol argentino: Chazarreta terminaria herói

Em 4 de agosto, o San Lorenzo consagrou-se como o primeiro clube campeão invicto no profissionalismo argentino sem que Chazarreta registrasse uma só partida na campanha histórica. Recebeu novos testes ainda naquele mês, em excursão ao Paraguai: o Cerro Porteño venceu por 3-1 em 15 de agosto e, 24 horas depois, ficou-se no 0-0 com o Olimpia. Sem vingar, ele foi então emprestado ao Argentinos Jrs para 1969. A equipe do bairro de La Paternal escaparia do rebaixamento por um único ponto naquele ano, mas a experiência serviu para “foguear” o jovem de 22 anos no cenário grande.

Em 1970, ele voltou ao bairro de Boedo. O técnico Tim já havia voltado ao Brasil, mas o sucessor Pedro Dellacha tampouco permitia minutos ao ponta no Torneio Metropolitano e apenas alguns em amistosos, como os travados com brilho na Europa em julho. Foi apenas em 18 de outubro que ele, enfim, fez sua primeira partida dita “oficial” pelo San Lorenzo, isto é, em jogo pelo campeonato argentino. E foi titular, ainda como ponta-esquerda, em um 5-0 sobre o Gimnasia y Esgrima de Mendoza, pelo Torneio Nacional. E foi contra esse mesmo clube que ele marcou seu primeiro gol como cuervo, no returno, em derrota por 3-2.

O ano da afirmação foi o de 1971. O técnico novo, o ex-goleiro flamenguista Rogelio Domínguez, tirou-o da ponta para volante armador. Naquele lugar, pôde se firmar e, mesmo mais recuado, deixar seus gols: foram cinco na campanha de quinto lugar do Metropolitano. Aplicou duas vezes a lei do ex em um 3-0 no Argentinos Jrs e deixou o dele em um 3-0 dentro de Avellaneda sobre o Racing e em um 4-1 no Rosario Central. No Torneio Nacional, o time foi ainda mais longe. Chazarreta contribuiu diretamente com quatro gols: dois um 7-1 no Central Córdoba de Santiago del Estero, outro em 2-0 fora de casa no Huracán de Bahía Blanca (não confundir com o tradicional rival sanlorencista, sediado no bairro portenho de Parque de los Patricios) e por fim em 5-1 no Rosario Central. Mas ficou mais recordado como nome da classificação à final.

Time bi de 1972: Pitarch, Villar, Villalba, Rezza, Irusta, D’Alessandro, Rosl, Heredia, Salinas, Guerreño e o técnico Lorenzo; Telch, Espósito, Cocco, Veglio, Ayala, Sanfilippo, Chazarreta, Glaria e Figueroa

A semifinal opôs o Ciclón ao Independiente, que havia sido o campeão do Metropolitano. E o Rojo abriu 2-0. Pois os azulgranas souberam nos acréscimos do segundo tempo arrancar o empate, mantido ao fim da prorrogação, forçando a primeira vez em que uma partida do campeonato argentino se encaminhou a uma decisão por pênaltis. Chazarreta saiu como melhor em campo no tempo regulamentar e converteu, já na série de alternadas, a cobrança que garantiu seu time na decisão. Veio um grande anticlímax, onde o outrora goleado (duas vezes) Rosario Central venceu de virada. A diretoria cuerva não perdoou o técnico Domínguez por ter barrado para a final os já ídolos Victorio Cocco e Carlos Veglio, titulares desde 1968.

Juan Carlos Lorenzo, treinador da Argentina nas Copas de 1962 e 1966, veio para o lugar de Domínguez e manteve a base do antecessor. Inclusive a estadia de Chazarreta no meio. O clube faturou o Metropolitano com seis pontos de vantagem sobre o vice Racing, em tempos onde vitórias valiam apenas dois e não três. Para o Nacional, El Toto Lorenzo promoveu Chazarreta (de um único gol no Metro, no 4-1 sobre o Gimnasia) a cobrador de pênaltis. E ele foi dando conta do serviço: assim deixou o dele no 3-1 sobre o Bartolomé Mitre de Posadas, no 3-1 sobre o Vélez, no 3-0 sobre o San Martín de Mendoza e no 3-0 no clássico com o Huracán, vazando pela primeira vez o rival de bairro.

Com bola rolando, Chaza fez os únicos gols de dois triunfos fora de casa, sobre o Independiente de Trelew e San Martín de Tucumán. O San Lorenzo seguiu invicto e, dono da melhor campanha geral em um torneio que dividiu os participantes em dois grupos, classificou-se diretamente à decisão enquanto a dupla Boca (líder do outro) e River (segundo na chave do Sanloré) travou uma semifinal – a foto que abre a matéria mostra a comemoração do volante por essa vaga direta. Deu River e um tira-teima em jogo único ocorreu em 17 de dezembro no estádio neutro do Vélez. Chazarreta esteve a onze metros da consagração: aos 44 minutos do segundo tempo, coube a ele bater novo pênalti. Mas chutou para fora.

Penúltimo agachado na seleção com outros três do San Lorenzo (Heredia e Telch em pé, Ayala agachado) antes do 3-2 sobre a Alemanha Ocidental dentro de Munique, em 1973. Apenas Correa e Guerini não iriam à Copa de 1974

Ainda assim, o futuro Papa Francisco pôde comemorar bem o próprio aniversário: a prorrogação viu o heroísmo se personalizar em Luciano Figueroa (sem parentesco com o xará dos anos 2000), que marcou seu único gol na campanha que garantiu ao San Lorenzo o ineditismo de vencer em um mesmo ano os dois campeonatos argentinos travados – além de trazer um segundo título invicto no profissionalismo a um time que não só jogava por música como virou uma, “Bravos Gauchos de Boedo”, a escala-lo nos versos “con Irusta y Glaria/con Espósito y Rosl/El recuerdo de Fischer también estará/Rezza, Telch, Chazarreta/Ayala y Heredia/con García Ameijenda, Cocco, Scotta/Y otros más”.

Chazarreta não deixou de lamentar a chance perdida, mas o título o livrou de crucificações. E, em 31 de janeiro de 1973, ele já pôde estrear pela seleção, em jogo-treino contra o combinado da cidade de Tandil, surrado por 6-0. Substituiu o atacante Ramón Ponce no decorrer do jogo e seis dias depois fez a estreia oficial, em derrota de 2-0 para o México em amistoso na capital asteca. O técnico era Omar Sívori, que usou assiduamente o volante: foram mais sete jogos oficiais ao longo de 1973 (em especial, um 3-2 em Munique sobre a Alemanha Ocidental, na terceira partida de Chaza pela Albiceleste) e onze não-oficiais; nessas, deixou seus únicos gols, em derrota de 2-1 para o clube Las Palmas e em 4-1 sobre o clube Deportivo Mandiyú.

O volante fazia por onde, intocável em um San Lorenzo que seguia forte seguiram fortes: primeiramente, terminou em terceiro no Metropolitano (desempenho só ofuscado pelo título memorável do rival Huracán, que não pôde vencer os dois clássicos) enquanto, em paralelo, chegavam às semifinais da Libertadores – sucumbindo à maior experiência copeira do campeão Independiente. O zagueiro Ramón Heredia, o atacante Rubén Ayala e o técnico Lorenzo partiram para o Atlético de Madrid ainda antes do fim do Metro, mas o timaço soube manter gás na primeira fase do Torneio Nacional; o Ciclón foi líder de seu grupo, o que valia vaga a um quadrangular-final. Mas nela se limitou a empatar sem gols com a surpresa Atlanta, perdeu de 3-2 para o River e ficou no 1-1 em outro título para o Rosario Central.

O irmão Pedro Chazarreta, Carlos Veglio, ele, Victorio Cocco e Oscar Ortiz em 1974, ano do último título de uma era no estádio Gasómetro

Na seleção, Sívori quis sossego após assegurar a classificação à Copa do Mundo (os argentinos estavam muito pressionados após a perda da vaga para a de 1970) e seu lugar foi ocupado pelo triunvirato formado por Víctor Rodríguez, José Varacka e Vladislao Cap, que tinham suas próprias ideias. Chazarreta jogou menos: cinco jogos não-oficiais (marcando no 2-1 sobre o Sportivo Pedal e no 2-0 sobre o Atlético Tucumán), três amistosos oficiais pré-Copa e uma única partida no Mundial, no 1-1 com a Itália, na primeira fase de grupos. Foi sua partida final pela Argentina. Ele ainda seguiu na Europa em julho, reforçando o San Lorenzo nos prestigiados torneios amistosos da Espanha; num deles, deixou um gol em 2-2 com o Atlético de Madrid recém-vice europeu, pelo torneio Villa de Madrid.

No bairro de Boedo, moral não faltava mesmo: naquele mesmo 1974, o volante emplacou a contratação do irmão Pedro Chazarreta; a campanha morna no Metropolitano deveu-se mais aos contínuos desfalques da espinha-dorsal da retaguarda para a seleção (além de Chaza, foram à Alemanha também o zagueiro Rubén Glaria e o volante Roberto Telch, que reencontraram os ex-colegas Ayala e Heredia). No Torneio Nacional, os mares foram mais tranquilos para o novo treinador, Osvaldo Zubeldía, consagrado no Estudiantes multicampeão internacional na década anterior. Líder de seu grupo, o San Lorenzo desse vez manteve o pique para a fase final, agora um octogonal. De quebra, deu um troco no Rosario Central, vice-campeão. Chazarreta contribuiu com cinco gols, incluindo no clássico com o Huracán (2-2).

O anticlímax é que o título não garantiu o campeão na Libertadores de 1975: só para aquela temporada, a AFA inventou de prever que as duas vagas no torneio viriam de um quadrangular entre campeões e vices do Metropolitano e do Nacional, fase que acabou virando um triangular pelo Central ter sido vice nos dois. O troco foi respondido com os rosarinos se classificando junto ao rival Newell’s para La Copa. Foi o fim do período de mais seguida dominância do San Lorenzo no cenário argentino. No Metropolitano de 1975, um clube já em crise financeira despencou para 11º apesar dos recordistas gols do artilheiro Héctor Scotta. Chazarreta deixou seus últimos três gols e despediu-se no 2-2 com o Atlanta, em 8 de junho, ainda pela 24ª rodada. A torcida teria de aguardar mais vinte anos (até o Clausura 1995) para encerrar-se a pior seca do clube.

A foto esquerda ilustrou o perfil dele na edição especial em que a El Gráfico elegeu em 2011 os cem maiores ídolos do San Lorenzo

Precisando fazer caixa, o time aceitou vender o ídolo para o Avignon, que estrearia na primeira divisão francesa. A experiência foi um desastre, com os novatos terminando na lanterna e rebaixados na Ligue 1 de 1975-76. Ficou por mais uma temporada de uma equipe à beira do colapso (ela deixaria o profissionalismo em 1981) e seguiu nas divisões de acesso francesas pelo Alès até 1979, quando veio para o “mundo ascenso” argentino: o recém-rebaixado Gimnasia o repatriou para 1980. Embora ficasse nas primeiras colocações na Primera B em 1980 e 1981, o Lobo passou longe de subir.

Chaza pendurou as chuteiras na segundona em 1982, justamente o ano que viu o outrora poderoso San Lorenzo presente naquele cenário. O volante estava no último time salvo da degola à terceirona, o Deportivo Morón. Mesmo a experiência europeia não lhe permitira um pé de meia. Seu colega mais ilustre naquele grande San Lorenzo dos anos 70, o zagueiro Jorge Olguín (único daquele elenco a ir à vitoriosa Copa de 1978; o ponta Oscar Ortiz foi a ela já defendendo o River) vociferou à revista El Gráfico, em 2014: “quando se completaram os cem anos do clube, convidaram um montão de gente e me deu pena como o organizaram: estávamos sentados atrás, na obscuridade, enquanto subiam ao cenário todos garotos mais novos. Creio que o San Lorenzo não respeita a história. Por aí dão um trabalhinho a um ex-jogador para que vá às divisões de base e creio que merecem algo mais que isso”.

Olguín seguiu: “veja, há uns dias se inaugurou a associação de ex-jogadores do San Lorenzo e não foi um só diretor. Na mesma associação está vivendo Chazarreta. Andava em um táxi e o despejaram da pensão, então se lhe deu um lugar para viver. E isso que Chazarreta deu muito ao clube, hein? A associação lhe deu um lugar, não o clube. O San Lorenzo não lhe dá nada, por isso te digo que não respeitam a história. Se te chamar de vez em quanto e te dar uma medalhinha é respeitar a história, estamos confusos. Poderiam colaborar com a associação, que lhe deem aos ex-jogadores a possibilidade de ter uma obra social. No Boca fizeram uma associação bárbara, tiram 1% do contrato de cada jogador que assina e com isso ajudam a muitos ex-jogadores”.

Oficialmente, ele deixou trinta gols em 193 partidas suando em azulgrana.

 

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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