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Deportivo Merlo: a face do bem…e do mal

Olhando a imagem, tem-se a impressão de que se trata de uma torcida comum. Não é

Um torneio de futebol sempre pode apresentar uma surpresa, principalmente se for de mata-a-mata e ainda mais de partida única. Porém, imaginar que uma equipe pequena chegaria às semifinais de um torneio como a Copa Argentina é outra conversa. Foi exatamente isso que fez o Deportivo Merlo, equipe jovem para os padrões argentinos, com quase 60 anos. Contudo, o Merlo revela outras facetas. Trata-se de um clube organizado e com um planejamento ímpar na Argentina. E tem mais: possui uma das barras mais violentas do país, uma torcida com especificidades só dela. Vejamos.

Um pouco de história

O Merlo foi fundado em 1954 por um grupo de jovens com pouca diversão na região do Parque San Martín, no Merlo, Oeste da Grande Buenos Aires. Da brincadeira às disputas regionais foi um só pulo. O clube que havia sido fundado para a diversão via-futebol e para representar a região nas disputas futebolísticas entre todos os bairros do entorno de Buenos Aires.

Porém, em 1968, a AFA decidiu intervir na bricadeira, que era de muitos, diga-se. Decidiu que para continuar a existir, e filiado à entidade, todos os pequenos clubes deveriam ter um estádio e uma sede decente, além de um bom número formal de sócios. Foi então que a partir da ajuda de um ex-jogador de futebol, Raúl de León, a entidade fez uma concessão e ofereceu ao Merlo um prazo de quatro meses para se adaptar às novas exigências. Data daí o primeiro grande momento de integração do pequeno clube com a sua gente. Com os esforços da comunidade o estádio foi erguido no plazo. As árvores da praça foram transformadas na madeira que gerou a primeira arquibancada do Charro.

A sede mesmo foi um mero improviso até o ano de 1974. Uma propriedade foi adquirida para esse fim, ali mesmo, no Parque San Martín. Para consegui-la, diversos sócios hipotecaram as suas próprias casas como garantia. Este foi o segundo grande momento da integração entre o Melo e seus torcedores.

Como presente à comunidade, o clube conseguiu um ano depois, em 1975, o título do Torneio Reducido e subiu pela primeira vez na sua história à Primeira C, a quarta divisão para os clubes metropolitanos da Argentina. Foram 11 anos nesta categoria, até que em 1986 foi favorecido por uma reestruturação da AFA e subiu para a B Metro. Sem estrutura para assegurar a permanência na Categoria, o clube voltou à Primeira C em 1994, onde ficou por seis temporadas. Retornou à B Metro no ano 2000, após conquistar pela segunda vez o título do Torneio Reducido. Duas temporadas depois, estava novamente na quarta divisão. Em 2006 foi campeão da Categoria e voltou para a B Metro. Três temporadas depois, dava um passo gigantesco na sua história e chegava à B Nacional, a segunda divisão argentina, onde está até hoje.

Campanha na Copa Argentina

Por pertencer a B Nacional, o Merlo entrou no torneio apenas nos 32 avos de final. Venceu por 2×0 o Deportivo Guaymallén de Mendoza. No duelo, havia mais torcedores mendocinos do que charros, já que a equipe do Oeste não conta com torcedores fora de seu reduto. Na etapa seguinte, eliminou o Estudiantes de La Plata nos pênaltis (5×4), após empatar em zero nos 90 minutos. Nas oitavas, eliminou o embalado Sarmiento de Junín por 2×1 e passou às quartas-de-final. Para a surpresa de muitos, eliminou o segundo time da primeira divisão, dessa vez o Tigre, por 2×1 e se credenciou para as semifinais da Copa Argentina. Agora, vai enfrentar o Boca Juniors, até pouco tempo um sonho bem distante do amado Charro do Oeste da Grande Buenos Aires.

Em todas as partidas, prevaleceu a maturidade de uma equipe que sabe muito bem o seu real tamanho e como deve atuar diante de adversários menores ou maiores que ele. Apenas o prêmio recebido pelo triunfo sobre o Tigre, 500 mil pesos, equivale a todos os custos da equipe com o futebol, no prazo de dois meses. Nada mal para um clube que faz misérias para honrar, como poucos, os seus encargos financeiros.

A Face do Bem

Até 2007, o Merlo vivia a sanfona de subir e descer de divisão, e estava muito distante de chegar à B Nacional. O clube era uma bagunça e um enorme precipício flertava de maneira intensa com a amada instituição do Oeste da Grande Buenos Aires. Foi então que o presidente do clube, Ariel Veja, e os demais dirigentes, tiveram a feliz ideia de profissionalizar a administração do clube. A World Sport Managament chegou para encarar a tarefa, para a qual a maior dificuldade foi a de lidar com as críticas e a desconfiança à sua chegada no Charro.

Reviravolta administrativa

Alguns princípios foram adotados de imediato. Entre eles o de jamais atrasar ou deixar de pagar salários aos jogadores e funcionários do clube. Além disso, determinou-se que haveria uma completa cisão entre o trabalho dos dirigentes e a barrabrava, que detinha muita influência sobre o elenco e a instituição como um todo. A partir desse momento, o clube adotaria medidas para aumentar o número de sócios, atrair e bem tratar aos torcedores, ao mesmo tempo em que deixaria os barras no seu devido lugar, nas populares do estádio José Manuel Moreno.

Dois anos depois, o número de sócios aumentou de 300 para quase 2 mil aficionados. Além disso, chegou finalmente à segunda divisão argentina, pela primeira vez na sua história. Dentro e no entorno da sede a nova administração espalhou o verde, devolvendo ao lugar uma paisagem muito próxima daquela que por ali existia na década de 70, quando o local foi adquirido por heroicos hinchas e dirigentes do clube. Também tratou de pintar todas as paredes que envolvem a instituição. Esta prática estava relacionada a outro princípio adotado a partir de 2007: a de fazer do clube um orgulho para os moradores do lugar também pela sua beleza, pela sua limpeza e pela ordem geral.

Um detalhe sobre os novos administradores é que todos eles têm o mesmo perfil do presidente Ariel Vega: são jovens, profissionais liberais e com ideias modernas para a gestão do clube. O curioso é que entre eles quase não se encontrava um que torcia pelo Merlo. De lá para cá, as obras nunca pararam. A principal delas, a reforma (que será quase uma reconstrução) do estádio está em curso em San Martín.

O outro princípio que chama a atenção é o planejamento para crescer. No Merlo, não impera a ideia de subir agora para a elite argentina. A proposta é a de permanecer na B Nacional por um tempo, de maneira que o clube tenha condição de se estruturar para enfrentar os desafios de uma primeira divisão. Atualmente a equipe ostenta a 13ª posição da tabela, além de não correr riscos com o rebaixamento. Este é o sonho possível para o Merlo hoje: ser uma equipe de meio de tabela na B Nacional.

A Face do mal

A barrabrava do Merlo foi fundada por Jorge Zalazar, que até hoje empresta seu nome à organizada do Charro. Ficou 20 anos no poder, mas se foi. A partir daí seus cinco filhos homens disputam o controle da barra e muitas vezes valorizam mais essa disputa do que o próprio clube. “Lá em casa, era só do clube que a gente falava, de nada mais”, disse Dante em uma entrevista a um meio local, da Argentina.

Rigorosamente, Dante, ex-atacante do próprio clube nos anos 90, ficou no lugar do pai e deveria ser o chefe de toda a torcida. Porém, os irmãos se dividiram quanto ao assunto e jamais se entenderam. Essa divisão também se refletiu na barra. Uma parte dela passou a representar apenas o Parque San Martín, enquanto a outra, o perigoso bairro de la Matera, que recrutava os novos hinchas do clube a partir do momento em que ele começou a se destacar nas divisões do acesso argentino. No comando da primeira, estava Dante; no da segunda, a de La Matera, Matías, que tinha como apoio o outro irmão, Carlos.

Tentativas de assassinato, agressões a propriedades com coquetel molotov, pedradas, tiros etc. Brigas generalizadas, facadas e tiros. Tudo isso tem feito parte do dia-a-dia do Merlo. Enquanto o clube sofre com perda e transferência de mandos a outros estádios, além de atuar sem a presença de torcida (o que onera seus cofres), os irmãos Zalazar apenas aprofundam o seu ódio visceral contra todos, mas principalmente contra eles mesmos. “Não me importa que sejam meus irmãos, minha família é o Merlo e os hinchas da barra. Mato e morro por eles”, disse Dante. E continuou. “Exemplo disso foi o que fiz meses atrás, quando expulsei daqui aqueles bandidos e traficantes drogados de La Matera”. “Agora que o clube está bem, os hinchas de lá querem voltar, apoiados justamente pelos bandidos do lugar”.

A peleja é velha, mas se incrementou em uma partida pela B Metro, na temporada 2008/09. O cotejo era contra o Deportivo Morón. No entorno do estádio, um cenário de guerra, dentro dele, a partir das tribunas, a direção dava sua última cartada para eliminar do clube o duro castigo de jogar quase sempre longe de sua torcida. Os dirigentes do Charro quase conseguiram; mas em razão dos confrontos, a Coprosede ainda piorou a punição, estendendo-a até os dias de hoje, na B Nacional. Só para se ter uma ideia de como foi a briga, no entorno da cancha do Charro, existia, para o duelo contra o Gallo Morón, a média de um policial para cada dois torcedores no estádio. De nada adiantou.

Em 2002, Dante Zalazar saiu de uma prisão de segurança máxima onde cumpriu dois anos de reclusão pelo assassinato de uma jovem de 16 anos. Um crime cruel cometido a facadas e com requintes de sadismo. Também seu irmão Caio foi a julgamento mas apenas Dante foi penitenciado. Antes desse crime, seu nome esteve envolvido em outro suposto assassinato e em alguns crimes de estrupro. Quando saiu da prisão, se deu conta que o setor da barra por ele controlado havia perdido terreno para a quem ele chama de “bandidos da Matera”. De lá para cá os enfrentamentos entre os irmãos foram muitos, mas o cume ocorreu em 2009.

Resolvido a matar o irmão Caio, Dante foi à casa materna disposto a “resolver” de vez o problema. Quando Caio pegou sua arma para “se defender”, levou dois tiros do irmão. Contudo, para a infelicidade de ambos, as duas balas acertaram o corpo da mãe. Um projétil acertou sua mão; o outro, o seu abdômen. Maria Inez Díaz Zalazar foi tentar apartar a briga e quase foi assassinada. A partir disso, o clima de vingança se intensificou na região do Parque San Martín. E também a jura, de ambos os irmãos, de que um deles deve assassinar o outro, assim que tiver oportunidade para isso.

“Aqui não tem essa história de ceder espaço para eles”, disse Dante Zalazar, “Vamos fazer tudo aquilo que for necessário para manter o que temos. E é claro que todos nós andamos armados; afinal, se alguém deseja te agredir você precisa saber se defender”. E finalizou: “ E hoje em dia, amigo, ninguém é tonto para guerrear apenas com os punhos. E se teu inimigo vem armado, você precisa responder da mesma forma”.

Joza Novalis

Mestre em Teoria Literária e Lit. Comparada na USP. Formado em Educação e Letras pela USP, é jornalista por opção e divide o tempo vendo futebol em geral e estudando o esporte bretão, especialmente o da Argentina. Entende futebol como um fenômeno popular e das torcidas. Já colaborou com diversos veículos esportivos.

10 thoughts on “Deportivo Merlo: a face do bem…e do mal

  • Pinilla

    De novela isso aí, principalmente a parte da barra. Coisa de louco. Daria um belo filme.

  • Leandro Winkelmann

    Ótimo texto. Parabéns!

  • Cristina

    A cadeia resolveria se as coisas por lá na argentina não fossem parecidas com o que acontece por aqui. Boa matéria., mais uma vez.

  • Adriana

    Concordo com o primeiro comentário, isso é de filme. Mas como pode o autor chamar um club desses de organizado com uma torcida dessas?

  • Joza Novalis

    Caríssima Adriana, veja, a organização do clube não tem nada a ver com a sua torcida. No caso do Merlo até que a direção do clube fez tentativas de “educar” a barra. Desistiu e hoje pratica uma política de permitir o acesso às arquibancadas de outros torcedores, os comuns, n ão ligados à barra. Mas o Merlo é organizado sim. Como poucos na Argentina. Obrigado pelo acesso e prestígio ao site.

  • Endrigo

    O presidente desse clube é do grupo que dirige o Merlo? Não entendi isso.

  • Joza Novalis

    Meu caro Endrigo, o presidente do clube não faz parte da empresa que administra o Merlo. Mas tem a particularidade de ser um jovem trabalhador na faixa de uns 40 anos. É dono de um posto de serviços automotores. Um tipo que gerencia o clube e até faz faxina no local.

  • Estebán de León

    En realidad, “pocho” Arizmendi (gerenciador) es el que maneja los hilos ahí

  • Maicon

    Caramba, excelente texto sobre “El charro”, um clube que se mostra bastante estruturado e que deverá estar na primeira divisão, se manter esta boa administração. Agora, o que é dose é ver uma briga de irmãos pelo poder de uma barra, isso é demais!

  • Maravilhosa essa matéria. Incrível como vocês deste site são sérios. E quase o Merlo elimina o boca, seria bem legal.

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