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Foi de um argentino a 1ª vitória da Ferrari na Fórmula 1: Froilán González, 100 anos

Juan Manuel Fangio é o sinônimo automático da Fórmula 1 com a Argentina. Maior campeão dela no século XX e o maior da história para o amigo Ayrton Senna, o pentacampeão pode ter sido ultrapassado em títulos, mas ainda detém marcas relevantes – como destacamos nesse Especial. Contudo, o automobilismo internacional não deixou de ter outros destaques argentinos. Falecido em 2021, Carlos Reutemann foi vice em 1981 muito pela briga interna na Williams com o colega Alan Jones, em que pese a capacidade de Nelson Piquet, um pontinho à frente. Outro vice-campeão foi José Froilán González, para o próprio Fangio em 1954, ano em que soube ganhar as tradicionais 24 Horas de Le Mans. E que hoje completaria 100 anos.

Oficialmente, Froilán González registrou somente duas vitórias na Fórmula 1, ambas em Silverstone, embora vencesse muitas outras provas… mas em tempos em que nem todas rendiam pontuação ao campeonato. Uma das duas vitórias oficiais foi simplesmente a primeira vitória da Ferrari na modalidade, em 14 de julho de 1951. Ele viveu até os 91 anos incompletos, partindo em 15 de junho de 2013. Na ocasião dos 90 anos, teceu um longo monólogo à principal revista esportiva argentina, a El Gráfico. Agora, com os cem anos, traduzimos a íntegra aquela matéria, assinada por Pablo Vignone sob o título “Este sou eu”. A versão original é acessível clicando aqui.

Dentre os principais pontos da nota, a proximidade de Froilán com Fangio (longe de ser um rival, havendo inclusive no Museu Fangio, em Balcarce, um espaço dedicado aos feitos do amigo) e com Il Commendatore Enzo Ferrari; como só correu por acaso aquela prova histórica à escuderia em Silverstone; e diversas contextualizações que soam pitorescas sobre o jeito de se pilotar em seu tempo. Respeitamos as caixas altas do texto original, deixamos em itálico os estrangeirismos e complementamos em colchetes outras contextualizações necessárias. Apreciem abaixo!

JÁ ANDO A BATERIA, no meu motor sobra pouca nafta. Mas ainda gira. Completo 90 anos no dia 5 desse mês e sou um dos pilotos de Grande Prêmio mais veteranos que estão com vida: o outro é o francês Robert Manzon, cinco anos acima de mim [nascido em 1917, Manzon, último sobrevivente da temporada inaugural da Fórmula 1, em 1950, faleceria em 2015]. Não digo que sempre a fundo, mas vivi com grande intensidade.

Em dois momentos com o amigo Fangio: sendo parabenizado por ele naquela histórica vitória inaugural da Ferrari, em 1951, e nos boxes do autódromo de Buenos Aires, em 1952

EU VIA QUE MEU PAI fazia as trocas, para frente, para trás. Vivíamos em La Colonia, nas redondezas de Arrecifes. Um dia, eu tinha 7 ou 8 anos, subi, troquei o câmbio e apertei o botão de ligar. O carro saiu para trás. Assim o tirei do galpão e o deixei. Meu pai ficou louco: ‘mas quem me saiu com o carro!?’, se perguntava.

ERA BRAVO QUANDO GAROTO. Fui aluno por três anos em San Nicolás e um ano em La Plata, com os salesianos. Eles tinham um Plymouth ano 36 e eu o pilotava. “Froilancito’ – me dizia o padre Silva -, ‘tens que me levar a Buenos Aires’. E eu o manobrava com a batina longa. Um dia me levaram para jogar futebol em Bernal, peguei minha mala e escapuli à casa da minha tia em San Martín. Veio meu pai me buscar. Demorou uma semana para chegar. Não havia caminhos como hoje. Quando voltávamos, me perguntou o que queria fazer. “Me meter na agência da Chevrolet”, lhe pedi. Fui trabalhar com meu tio Julio Pérez. Era o ano de 1939, me colocaram para reparar baterias e o ácido me fazia buracos no macacão.

MEU TIO JÁ ENTÃO CORRIA. Como eu tinha a chave da oficina, ia de noite e o colocava em marcha. De manhã, Julio encontrava o motor do carro ainda quente. “Quem me terá andado nele?”, se perguntava. Morreu em 1940, correndo as Mil Milhas [Argentinas]; e meu velho não quis saber mais nada com as corridas.

GANHEI MINHA PRIMEIRA CORRIDA com o pseudônimo “Canuto”, para que a família não soubesse. Meus irmãos sim sabiam. No dia seguinte, na mesa, meu pai lia o jornal de Arrecifes.
-Veja, Froilán, aqui dizem que este Canuto é daqui, tens ideia de quem possa ser?
-Como vou saber, pai, há tantos loucos em Arrecifes…
Mas me pareceu que tinha ficado mexido… troquei o pseudônimo pelo de “Montemar”, o nome do cavalo de um amigo que ganhava todas as quadras.
-Froilán, no jornal dizem que ganhou o de Arrecifes. Sabes quem é Montemar?
-Como vou saber, pai…

Me expulsaram de casa quando me descobriram.

JUAN ERA AMIGO DO MEU TIO. Eram da mesma idade, ambos pilotos da Chevrolet, sabiam de mecânica. Por isso, conhecia Fangio. Mas a relação se estreitou porque veio a uma corrida da Força Limitada em Arrecifes com seu carro, que seu amigo Rentería dirigia. Nessa corrida ia brigando eu com Alfredo Pián, quando o motor se arrebentou faltando duas voltas. Nos fizemos tão amigos que terminou sendo o padrinho do meu primeiro casamento. Fomos amigos até o dia em que morreu.

Froilán, a Ferrari e o capacete rudimentar da época

EU NÃO GOSTAVA MUITO da estrada, preferia os circuitos. A Mille Miglia [tradicional prova italiana de resistência disputada até o fim dos anos 50] não me atraía, corri muito pouco no Turismo Carretera [o campeonato argentino de automobilismo]. Mas agora ando com as carruagens de então e me pergunto como podia ser que nós pilotássemos estes carros dessa época. É que vínhamos do campo, de manobrar os arados, e eu dirigia caminhões.

UM AMIGO ME BAIXOU a suspensão. Estive suspenso por uns seis meses, por agarrar pelo cangote um comissário esportivo, Alberto Lodieu. Não me deixava largar uma corrida em Retiro, não me permitia trocar as velas de ignição e saí estafando. Me deram bandeira preta e vim devagarzinho aos boxes, porque sabia o que aconteceria. Quis me bater com a bandeira. “Não me toque, porque vou te tirar a cabeça com uma porrada”, reagi. Nessa época, eu brigava com qualquer um. Um “amigo” me tirou a sanção, hehe.

ESSA FOI A PRIMEIRA vez em que fui à Casa de Governo. Pedi um terno à Suixtil, eu não tinha, andava sempre de macacão, se era caminhoneiro! Me leva outro amigo e lhe perguntam:
-O que aconteceu ao teu amigo, matou alguém?
-Não, como vai matar… o suspenderam.
-Quem o suspendeu?
-O Automóvel Clube.
-Ah, sim? É preciso lhe baixar a suspensão, então.

Faz telefonarem ao Automóvel Clube Argentino, o presidente era o Dr. Anesi. “É preciso baixar a suspensão de Froilán. Da parte do General Perón”.

EM POUCO TEMPO fomos à Europa com a equipe do Automóvel Clube Argentino. Perón nos deu o cargo de “Delegados Obreiros” e recebíamos 800 dólares. Íamos cruzando a Praça de Maio e eu digo a Juan: “tchê, que cargo nos deram esses caras?”. Quando veio a Revolução de 1955 [o golpe que, sob o infame – e esquecido – bombardeio que matou centenas de civis a esmo pela aeronáutica, depôs Perón], à merda com os delegados obreiros. Para sair do país, pedíamos autorização.

NÃO ENTENDO NADA DE POLÍTICA. Mas sempre fui peronista. Com Perón, estreitamos a relação em 1950, quando começamos a ir à Europa. Era louco pelos carros, mas não andava forte. Nas motos, sim. Quando voltamos, a fins de 1950, nos perguntou:
-Garotos, não precisam de nada?
-Presidente, porque não nos faz um autódromo?
-E que problema há? – nos respondeu. E o fez.

Contraponto (ou talvez complemento) à imagem anterior

VIAJAR ERA UMA AVENTURA. Em 1950, voamos à Europa: Buenos Aires, Rio de Janeiro, Natal, Dacar, ficamos uma noite para dormir ali. Logo, Lisboa, Madrid, Roma e dali íamos de trem até Milão.

OS PILOTOS éramos todos peso pesados. Juan, eu, éramos todos gordos. Por aí eu era um pouco mais… quando vivíamos em Galliate, o povoado de Achille Varzi [célebre piloto dos anos 40], com a equipe argentina, íamos andar de bicicleta até Novara, uns 20 quilômetros. Mas a cada tanto eu me perdia em alguma lanchonete… mandava pra dentro uns sanduíches de prosciutto e os esperava até que passassem de volta. Quando íamos correr na Inglaterra, carregávamos tudo no caminhão: os macarrões, o chianti…

QUASE ME JOGO NO MAR em Monte Carlo. Corria com uma Maserati do Automóvel Clube Argentino, e me deixaram a tapa do tanque de nafta sem assegurar. Na primeira freada, me vem todo o combustível sobre a costa, o compressor largou fogo pelo escapamento e peguei fogo… por um momento, pensei em atirar o carro na baía para apaga-lo, mas o parei e rodei pelo piso. Sofri queimaduras de segundo grau.

CORRI POR ACASO em Silverstone. Me ofereceram o carro, uma Ferrari de quatro litros e meio, em Reims, França, porque um dos pilotos deles, Dorino Serafini, havia quebrado uma perna. Não dormi nessa noite, e no dia seguinte testei nas ruas de Reims, porque os carros eram guardados nas garagens da cidade, não no circuito. Não me saí mal, mas tive que dar o carro a Ascari [Alberto Ascari, primeiro bicampeão mundial de Fórmula 1, em 1952 e 1953] em plena corrida e ficamos em segundo. Como ia pensar que na corrida seguinte ia ganhar? Terminou sendo o circuito em que ganhei mais corridas: cinco. E não porque gostasse dele mais do que outros. Simples casualidade.

ESTAVA MUITO NERVOSO, faltavam uns cinco minutos para a largada e começou a soar uma sirene que me deixou louco. Me deu uma dor de estômago. Desde os boxes se via a caixa de madeira, dali tirei um pedaço de jornal à minha mulher e me mandei, passando-os como tiro em duas mulheres que havia perto da porta. Os nervos haviam feito o seu trabalho e foi tremendo… quando saí, vi o letreirozinho: dizia Ladies, senhoras. Por isso estavam as velhas! Ganhei a corrida por ligeiro.

O DIRETOR DA PROVA ERA CHARLES FAROUX, que antes da largada nos reuniu e começou a dar instruções. Eu não entendia nada, tinha um intérprete. “O que disse o francês?”, lhe perguntei. “Que o primeiro que se mova, lhe impõe um minuto de espera…”. Juan me disse: “nem te movas”. Faroux começou a conta com os dedos, cinco, quatro… na primeira fileira, estávamos eu, Juan, Ascari e Farina [Frank Farina, primeiro campeão mundial de Fórmula 1]. Ninguém se moveu, nem quando Faroux baixou a bandeira. Ficamos patinando e [Felice] Bonetto passou todos nós.

Em capas da revista El Gráfico, que voltou a lhe entrevistar nos seus 90 anos – ocasião em que foi retratado à direita, folheando uma capa sua dos anos 50

FUI A MARANELLO depois do triunfo e me ofereceram o mesmo contrato do Ascari e [Luigi] Villoresi. Eu não sabia nada de contratos, nem sequer entendia italiano, então a única coisa que perguntei foi se o seguro estava incluído. “Todos os meus pilotos estão cobertos”, me disse o Commendatore [apelido de Enzo Ferrari, o lendário chefe da escuderia]. “Então, onde é preciso assinar?”, perguntei. Recebíamos 2.500 dólares por cada corrida, e nos davam 150 mil liras [a moeda italiana pré-euro] a cada vez que testássemos o carro nesses caminhos sinuosos das redondezas de Maranello. No ano seguinte, não fiquei: fui com Juan à Maserati, que nos pagava melhor. Deu uma bagunça das grandes.

ESSA FERRARI FOI o melhor carro que pilotei, embora a BRM [British Racing Motors, escuderia desaparecida nos anos 70] fosse mais potente. Mas a quatro litros e meio, nunca me deixou na mão. Esse carro com que ganhei em Silverstone agora é propriedade de Bernie Ecclestone. O emprestou a Fernando Alonso para que desse umas voltas em Silverstone, no ano passado, quando se completaram 60 anos. Alonso é um piloto bárbaro, mas também me agrada Vettel.

PUDE TER SIDO CAMPEÃO. Em Reims, tivemos que compartilhar com Ascari os pontos do segundo lugar. Em Silverstone, eu ganhei, em Nürburgring e em Monza ganhou Ascari. Fomos à Espanha definir e disse a Juan que um de nós dois tinha que ganhar o título: “ou você ou eu”. No fundo da reta, íamos a 329 Km/h e nossas luvas se dissolviam. Juan foi campeão, apesar de um problema com a caixa; e eu foi segundo, remontando.

O CAMPEONATO MUNDIAL tem hoje vinte corridas, mas em 1954 tinha seis ou sete. Apesar disso, nesse ano eu ganhei um montão de corridas de Fórmula 1 sem pontuações, que se estivessem integrado o campeonato me davam o título. Não me queixo. Eu não fui à última corrida desse torneio, estava muito deprimido pela morte do Pinocho Marimón [Onofre Marimón, outro piloto argentino da categoria na época] em Nürburgring. A Ferrari queria me mandar a Barcelona com a única máquina da equipe. “Commendatore, não vou” – lhe disse. “Sinto o campeonato perdido, já não tenho mais nada a fazer, esperemos o próximo ano”. Mike Hawthorn [futuro campeão em 1958 na Fórmula 1] interveio e ganhou, Juan foi campeão e eu fiquei com o vice-campeonato.

SEMPRE ME RELACIONEI bem com a Ferrari. Não discutia nunca com o Commendatore. Outros pilotos me tinham ranço por isso, porque o criticavam e diziam que os carros não funcionavam. Mas quando Don Enzo perguntava a mim o que tinha para agregar, eu lhe respondia: “Commendatore, tudo bem, nenhum problema”, e isso não pegava bem nem com Ascari nem com Villoresi. Até o último momento, sempre que estive na Europa eu dava uma volta por Maranello para cumprimenta-lo. Não precisei nunca fazer agendamento: sempre me atendia. Agora faz tempo que não posso viajar, mas acontecia o mesmo com seu filho Piero Lardi.

Outro registro feito para a nota de dez anos atrás

A CORRIDA MAIS DIFÍCIL que me tocou correr foi [as 24 Horas de] Le Mans. Quase toda a corrida com chuva e névoa. E as 24 Horas me pediam que pilotasse a maioria, assim que estive umas 17 horas com esse carro que a princípio não tinha nada, colocaram uma bolsa de areia molhada para que tivesse mais firmeza. Houve mortos, chuva até a madrugada, na última parada o carro não arrancava…

CALHOU AO SCHUMACHER pilotar a Ferrari 375 da minha vitória em Silverstone. Foi em uma festa da efeméride, muita gente, e vem e me diz: “andei no seu carro e não sei como faziam para correr nesses carros. Eu não poderia”. Lhe respondei em seguida: “eu tampouco poderia pilotar o teu, porque de computação não entendo nada”. Os carros de agora, com tantas teclas… a mim, me deixem com a alavanca.

HOJE A SEGURANÇA é uma prioridade, antes não se concebia isso. Eu jamais pensei que ia me acontecer algo. Não usávamos capacetes, e sim gorros de lã ou depois de couro; os primeiros capacetes tiramos do polo. Fazíamos uns buracos na frente para não passar tanto calor. É que esses carros tinham o motor na dianteira e nos matavam com o calor. Às vezes, colocávamos folhas de alface ou de repolho entre o capacete e a cabeça para irmos um pouco mais frescos.

SIGO DIRIGINDO. Não sei o que faria se não pudesse conduzir. Vou todos os dias à garagem com meu carro, tenho o registro, tenho alguns carnês da polícia… provo todos os carros que a Fiat lança, a cada tanto dou uma volta em uma Ferrari. No ano passado, quando se completaram os 60 anos do triunfo em Silverstone, fizeram uma festa no autódromo e subi em um carro histórico: a Maserati que Raúl Riganti conduziu nas 500 Milhas de Indianápolis de 1940, um carro que é dos Pérez Companc [família mais rica da Argentina]. Elena, minha esposa, me pediu que desse só uma volta. Mas me entusiasmei… e dei duas. Se não pudesse dirigir, não sei o que faria.

SEMPRE VOU ÀS HOMENAGENS que me convidam, não posso dizer não. Recarrego as baterias, fico contente como uma margarida quando me junto com as pessoas. Agora faço 90 e que mais posso pedir? Gostaria que estivessem meu filho Julio e Juan [Fangio]. Julito teve má sorte, vivia na Itália e veio à Argentina me ver, foi fazer esqui e sobre o esqui lhe deu um infarto fulminante e partiu. Quão bem me faria tê-lo agora!

QUANDO VEJO um esportista argentino ganhar no exterior, me causa muita alegria, porque me traz tantas recordações… em nossa época, era muito pouquinhos os que andavam conosco na Europa, comigo e com Juan. Cada um cumpriu seu ciclo, mas recordar a história de vez em quando é muito lindo.

https://twitter.com/_F1_Retro/status/1577686127451987974

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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