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Jacobo Urso, o mártir do San Lorenzo

Jacobo Urso em forma de grafite em um canto do bairro de Boedo: “a vida e a alma pelas cores”

Originalmente publicado no aniversário de 120 anos de Urso, em 17 de abril de 2019, revisto, atualizado e ampliado

Em 6 de agosto de 2022, fez-se cem anos sem Jacobo E. Urso, que poderia ser lembrado principalmente como o primeiro jogador do San Lorenzo aproveitado pela seleção argentina – e em tempos em que o Ciclón ainda era um clube de bairro, sem nenhum título na elite ou expressão difundida país adentro. Mas se já contamos em 2020 a tragédia relativamente recente da joia cuerva Mirko Saric, a de Urso merece ser resgatada como exemplo máximo de devoção às cores azulgranas, a quem ele literalmente dera a vida.

Nascido em Dolores, mas crescido no bairro portenho de Caballito junto de uma família que incluía nada menos que onze irmãos, ele incorporou-se junto de um deles, Antonio (também destacado na época e depois vocal sanlorencista), aos juvenis do San Lorenzo em 1915 – precisamente o ano em que o clube estreou na primeira divisão. Ainda sem casa própria, o Sanloré vinha jogando naquele 1915 exatamente em Caballito, no campo do Ferro Carril Oeste. A estreia de Urso no time adulto veio em 7 de maio de 1916, com pitadas de destino: a ocasião marcou justamente a inauguração do primeiro estádio erguido pela equipe em seu terreno na Avenida La Plata, onde posteriormente seria erguido o lendário Gasómetro… foi em vitória por 2-1 sobre o Estudiantes, pelo quinto compromisso da equipe no campeonato argentino daquele ano.

Naquela ocasião histórica, Antonio Moggio abriu o placar para os anfitriões aos 25 minutos e Elizardo Fernández ampliou aos 35, com Lamas descontando aos 15 do segundo tempo. Urso ali atuou como lateral-esquerdo na escalação alinhada com José Coll, Alberto Coll e José de Campo, Juan Saccardo, Federico Monti e Urso, Alfredo Etchegaray, Fernández, Moggio, Cayetano Urio e Luis Gianella – nomes que incluíam alguns dos fundadores do clube, criado em 1908. A escalação platense foi Suárez, Galuplamis e Castro, Toloza, Ferreira e Aranguren, Capellini, Tetamanti, Duarte Indart, Casauben e Lamas.

San Lorenzo de 1917: Urso, Alberto Coll, José Coll, Gaddi, Saccardo e Barrera; Ponce, Lanterno, Botacchi, Carreras e Gianella. O goleiro Coll e o ponta Gianella eram fundadores e estiveram na primeira e na última partida de Urso

Apesar do resultado auspicioso, Urso tardou cinco jogos para voltar a ser usado, agora na lateral-direita de um 0-0 em visita ao Gimnasia de Buenos Aires. Após outra ausência, reapareceu exatamente no nascente clássico com o Huracán. Novamente na lateral-direita, esteve no triunfo de 1-0 na casa rival. Depois, foram cinco jogos seguidos de ausência até aparecer na lateral-esquerda da escalação que perdeu de 1-0 para o Platense. Apesar do revés, foi a partir dali que ganhou alguma sequência de partidas, mantida para o início do campeonato seguinte. Embora fosse novamente sacado diante de uma série de derrotas, retomou a titularidade na metade final (inclusive, marcando um raro gol em 7-1 sobre o Atlanta) de uma campanha discreta para o Ciclón.

O torneio seguinte, por sua vez, foi terrível para o clube, que sofreu séria ameaça de rebaixamento até engatar quatro vitórias nos cinco jogos finais. Em contraste, Urso não só foi titular absoluto em toda a campanha (seja numa lateral ou na outra) como manteve-se intocável no início do campeonato de 1919, onde ocasionalmente atuou também como zagueiro. Sua força de vontade e temperamento foram então reconhecidos pela seleção para um encontro contra o Uruguai em Montevidéu, pelo troféu binacional Copa Newton, em 24 de agosto de 1919. A Argentina perdeu por 2-1, mas para o San Lorenzo aquilo representou a estreia de um jogador seu pela Albiceleste.

Por muito tempo, também foi a única aparição de um azulgrana na seleção. É que exatamente uma semana depois, em 31 de agosto, um empate com o Estudiantes de Buenos Aires foi o último compromisso do campeonato de 1919 antes de um cisma: San Lorenzo, River, Racing e Independiente romperam com a associação argentina oficial perante a FIFA e criaram um torneio em separado com outras equipes, dentre as quais Vélez, Gimnasia, Tigre, Platense e outras. As principais camisas que permaneceram na associação oficial foram as de Boca e Huracán, em cisma só resolvido em 1927, provocando assim um hiato de convocações de jogadores das equipes “renegadas” até a reunificação.

À esquerda, registro de Urso em ação pela seleção, na única partida que fez pela Argentina

Por outro lado, a reunificação convalidaria a oficialidade da liga “rebelde”, na qual o San Lorenzo alcançou seu primeiro pódio no torneio de 1920. Ainda que longe dos líderes (River, em seu primeiro título na elite, e Racing), terminou em terceiro. O vice-campeão Racing vinha inclusive de um heptacampeonato ainda recordista, entre 1913 e 1919, sustentando uma invencibilidade de anos em seu estádio, quebrada exatamente pelo time do bairro de Boedo: o Sanloré venceu os dois compromissos com a Academia. Os outros quatro dos cinco gols de Urso pelo clube na liga se deram exatamente nessa edição, no 1-0 sobre o Estudiantil Porteño (de pênalti), no 4-2 sobre o San Isidro, no 3-2 sobre o Vélez (de pênalti) e no 5-1 sobre o Lanús.

O Ciclón manteve-se nas primeiras colocações em 1921 e começou a angariar uma crescente torcida fiel, além de despertar interesse gradual para além da Grande Buenos Aires: foi o ano em que o clube fez seus primeiros amistosos pelo interior do país, no 1-0 sobre o Sarmiento em Junín, no 1-1 com a seleção rosarina, no 3-1 sobre a seleção tucumana B e no 3-0 sobre a tucumana principal. Urso esteve nesses três jogos. O torneio de 1922, só finalizado em 1923, veio então para marcar uma estreia e uma despedida. Aquele foi a campanha em que a equipe reforçou-se com Luis Monti, nome histórico no futebol pelos títulos obtidos nos rivais San Lorenzo e Huracán, por integrar a Juventus penta italiana nos anos 30 e, sobretudo, por jogar finais de Copa do Mundo por países diferentes (Argentina em 1930, Itália em 1934). Monti havia, justamente, acabado de ser, em janeiro daquele 1922, integrante do primeiro título argentino do Huracán.

A despedida, por sua vez, foi de Urso. Ele a princípio nem começaria jogando aquela partida contra o Estudiantes de Buenos Aires pela 13ª rodada, no estádio que este clube então tinha nos bosques de Palermo, mas a lesão de um colega fez com que fosse alinhado na escalação José Coll, Pedro Omar e Enrique Monti, Luis Monti, Luis Vaccaro e Urso, Alfredo Carricaberry, Lindolfo Acosta, Felipe Galíndez, Alfredo Larmeu e Luis Gianella. O oponente escalou-se com Héctor Muschietti, A. Bortagaray, Juan van Kamenade, L. Lagarde, D. Comoli, H. O’Gorman, J. Rodríguez, A. Penzi, D. Odino, M. Beautemps e M. Mirassou. O único gol do jogo foi marcado por Galíndez aos 35 minutos, mas o que marcaria a partida foi uma cotovelada em choque com o oponente Comoli, conforme detalhou o Diccionario Azulgrana (o livro Quién es Quién en la Selección Argentina afirma que Van Kamenade, outro atleta de seleção, também envolveu-se no lance).

Urso retratado no leito de morte, em nota jornalística em que ele próprio rechaçava a má intenção dos adversários em sua lesão; e a bandeira que cobriu seu corpo exposta no museu do San Lorenzo

Urso não sabia, mas o incidente quebrou-lhe uma costela, que por sua vez perfurou um rim. Ele, porém, fez questão de continuar jogando para não deixar em desvantagem seu time, em tempos em que não se permitiam substituições. Ao fim da partida, então, a adrenalina deu lugar de vez à dor aguda e ele foi encaminhado ao Hospital Ramos Mejía; essa é a versão clássica, mas o próprio Diccionario Azulgrana fornece outra, atribuída a Cayetano Molteni: segundo ele, Urso e os colegas se dirigiram primeiramente ao Café Dante após o jogo para tomarem algumas cervejas. O frio excessivo da bebida é que teria complicado o quadro da lesão e o feito enfim buscar a internação hospitalar. O certo é que, após duas cirurgias, Urso chegara a apresentar uma boa melhora após retirar o rim afetado – a ponto de, 48 horas antes de falecer, conseguir dar a entrevista retratada acima e até pedir que o clube conseguisse o adiamento do jogo contra o concorrente River, pois esperava poder participar.

Sobreveio então uma súbita piora e não resistiu, sendo velado no clube. Seu cortejo circulou pelo estádio e atraiu até mesmo jogadores do Teplitzer, clube de alemães da Tchecoslováquia que fazia excursão pelo Rio da Prata na época (inclusive com jogos contra a seleção argentina, dois dias antes da morte de Urso, e em São Paulo). Comoção que também arrefeceu por um momento a rivalidade entre as duas ligas: cerca de três semanas depois da morte da tragédia, as duas associações realizaram um jogo beneficente à família do atleta. Foi em 2 de setembro, com as jogadores de ambas as ligas misturando-se em um combinado trajado de branco e outro de azul, travando no estádio do San Lorenzo um amistoso cujo pontapé inicial foi dado exatamente pelo capitão do Teplitzer, Karel Koželuh. Único sanlorencista presente, Felipe Galíndez inclusive abriu o placar da vitória branca por 2-0.

Mesmo sob um abalo daqueles, Galíndez e outros colegas souberam aplicar um 3-0 no Vélez no primeiro jogo após o enterro do companheiro (em uma rodada em que todas as equipes portaram braçadeiras negras, sob fâmulas e meio mastro e minutos de silêncio) e conseguiram ter chances de título até a rodada final do torneio de 1922. A taça inédita veio enfim na edição seguinte, com Jacobo Urso lembrado de imediato em minuto de silêncio puxado pelo goleiro Caldano – o irmão Antonio Urso ainda integrava o elenco e chorava também a perda da mãe, falecida apenas oito meses depois de Jacobo e que vinha sendo contemplada com pensão mensal pelo clube.

A camisa especial que o San Lorenzo dedicou a Urso para o aniversário de cem anos do martírio do ídolo

Jacobo nomearia um time da cidade de Saladillo e, sobretudo, o museu do San Lorenzo, onde suas cinzas estão guardadas dentro de sua estátua; outro item do museu é a bandeira azulgrana que cobriu-lhe no velório. Quando o San Lorenzo completou 50 anos, tratou de ressaltar seu mártir em uma placa inscrita em um dos setores do Gasómetro antigo – e devidamente transportada para o Nuevo Gasómetro, em sua arquibancada norte. Ela dizia: “ao cumprir meio século de vida, o Club Atlético San Lorenzo de Almagro, que tu tanto amaste, te aclama como o perfeito desportista”. 

Com o centenário do falecimento, seus familiares foram homenageados pelo clube a quem o jogador dedicara literalmente a própria vida. Simbolicamente, contra o mesmo adversário contra quem o símbolo estreara no time adulto, o Estudiantes de La Plata, um sobrinho-neto e dois sobrinhos-bisnetos puderam ser aplaudidos em 7 de agosto antes do pontapé inicial no 0-0 válido pela 12ª rodada da superliga – partida para a qual o manto sanlorencista fora acrescido de uma insígnia em memória de Urso.

De homenagens anteriores, cabe destacar uma de 2014, próxima dos 115 anos de Urso (e aos cem de sua chegada ao Sanloré), na qual San Lorenzo TV exibiu em seu canal no YouTube um curta metragem, com direito a ator interpretando o ídolo – no vídeo que encerra essa nota. Outra homenagem veio em forma de poema compartilhado nos 120 anos pelo perfil no twitter do “Museu Jacobo Urso”. A última estrofe é “Paz na tumba daquele/que acaba de marchar/e que soube conquistar/no futebol seu louro/Paz na tumba daquele/que marchou ao infinito/Paz para aquele hermanito/que se foi como um milagro/do San Lorenzo de Almagro/Paz eterna, Jacobito!”.

Familiares de Urso homenageados em 7 de agosto de 2022

https://twitter.com/SanLorenzo/status/1556447167686103040

https://twitter.com/SanLorenzo/status/1555964943060566017

https://twitter.com/SanLorenzo/status/1555750804186927105

 
 

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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