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Cem anos do primeiro título argentino do Huracán

Quando o profissionalismo argentino foi escancarado a partir de 1931, o Huracán era o terceiro clube com mais títulos na liga: quatro, abaixo dos nove do Racing e dos seis do Boca. O rival San Lorenzo tinha três, o Independiente somava somente dois (e ambos comemoraram os seus primeiros já depois da taça huracanense inaugural) e o River, um só. A gordura dos dourados anos 20 propiciou que o Globo inspirasse diversos xarás fundados país adentro como nenhum outro (ao menos xarás que alguma vez jogassem a primeira divisão nacional) e seguisse visto como “sexto grande” sem maiores contestações ao menos pelo meio século que se seguiu, mesmo que desde então só ganhasse a elite no já distante 1973. Há cem anos, acabava o primeiro dos cinco torneios festejados pelos quemeros. Hora de contar essa história, ilustrada com arquivo do essencial perfil tuiteiro @HuracanRetro.

Prólogo

O Huracán chegara meteoricamente à primeira divisão na virada de 1913 para 1914, antes mesmo do San Lorenzo, por sinal. Ainda em 1914, inaugurou-se o estádio na Avenida La Plata com Chiclana, primeiro campo mais longevo do clube até ser sucedido nos anos 40 pelo palácio Tomás Adolfo Ducó. E, em 1916, o time teve seus primeiros jogadores na seleção argentina: o lateral-esquerdo Pedro Martínez e o atacante José Laguna, presidente e refundador huracanense – este, de modo até curioso, pois comparecera como espectador e foi convocado em plena arquibancada para o duelo com o Brasil, até marcando gol.

Ainda em 1916, o sul da província de Buenos Aires pariu o Huracán de Ingeniero White, participante do Torneio Nacional de 1968 e 1971. Em 1917, o clube original terminou pela primeira vez no pódio da primeira divisão, em terceiro, o que talvez inspirou a criação em 1918 de um Huracán na província de Corrientes, na cidade de mesmo nome.

Curiosamente, tal como o Juventus-SP, as cores e uniforme do xará correntino viriam a emular justamente o rival da equipe homenageada – no caso, o San Lorenzo. Esse time teria a importância de revelar em 1968 (quando participou de um torneio-repescagem para o Nacional) o zagueiro Francisco Sá, futuro jogador mais vezes campeão da Libertadores. O clube participou da primeira divisão na temporada 1995-96, como último representante de Corrientes até hoje na elite.

Já o ano de 1919 foi marcado por uma cisão na liga argentina. Tudo começou quando a então Associação Argentina de Football rejeitou as nomeações de representantes de alguns clubes, que ignoraram a postura. Ela então os suspendeu provisoriamente as afiliações deles: eram nada menos que o multicampeão Racing (então hexacampeão seguido, desde 1913), o então bivice River, o já tradicional Independiente (que liderava o certame de 1919), além de Platense, Tigre e Estudiantil Porteño. Embora a medida tivesse caráter temporário e não fosse uma expulsão definitiva, os clubes receberam solidariedade: San Lorenzo, Gimnasia LP, Atlanta, Defensores de Belgrano, Estudiantes de Buenos Aires e San Isidro insistiram que a penalidade fosse revista.

Irredutível, a AAF reagiu expulsando a todos eles, que então criaram a dissidente Associação de Amadores (ainda que o amadorismo já começasse a ser de fachada, como seria denunciado ao longo da década). Boca e Huracán remanesceram como principais clubes da AAF, em duopólio que lhes rendeu seus primeiros títulos argentinos justamente a partir daquele cisma – travando uma espécie de Superclásico daquela década, a ponto de até hoje a torcida huracanense ter nos auriazuis sua segunda maior rivalidade; o Estudiantes de La Plata era outra camisa tradicional a permanecer.

Inicialmente, o Boca se deu melhor, ganhando seus dois primeiros títulos argentinos nas edições de 1919 e 1920. Em ambos, o Huracán foi apenas terceiro e passou longe da briga pela ponta. Mas, em paralelo, ganhou um primeiro título para além das divisões de acesso, a Copa Estímulo de 1920; era um torneio oficial que mantinha em atividades os clubes enquanto a liga se pausava ao longo de alguma Copa América. Na liga, embora não disputasse para valer o título, só teve uma derrota – um 2-1 em casa para o Sportivo Palermo. Mas seria a última derrota quemera em seu estádio até 1924.

Figuras célebres do título

Daqueles primórdios, já apareciam alguns jogadores reconhecidos entre os cem maiores ídolos quemeros em livro que o Clarín lançou para o centenário do clube, em 1908. Por ordem de antiguidade, o zagueiro Agustín Alberti já datava dos primórdios de um clube que já jogava na rua bem antes da fundação ser formalizada; na verdade, refundação: sabe-se de atividades datadas pelo menos até 1903 até que o citado José Laguna, imigrante de Salta, assinasse como presidente na ata oficial de 1908.

Os irmãos Alberti: Jorge (à esquerda), jogador dos anos 30 e 40, é o recordista de partidas pelo Huracán, enquanto Agustín ganhou 1921. Na outra foto, o efêmero mas histórico Luis Monti

Com a recusa inicial da liga em admitir o Huracán, Laguna manteve-se ativo no Independiente, inclusive figurando no elenco vice-campeão de 1912, até voltar em 1914. Alberti, por sua vez, seguiu fiel ao Globo. E foi o capitão do acesso da terceira divisão à segunda no mesmo 1912 emendado no acesso da segunda à primeira em 1913. Ele já era naturalmente um veterano em 1921, só participando de alguns jogos. Deixaria de herança uma linhagem familiar: seu irmão caçula Jorge Alberti viria a ser o recordista de jogos pelo clube, já nos anos 30 e 40.

O ano de 1915 registrou a estreia do lateral-direito Miguel Fontana, mas ele não durou muito inicialmente; voltou ao time exatamente em 1921 desde o Vélez, após ter estreado pelo Globito ainda em 1915. Não chegou a ser o mais assíduo na campanha, com apenas seis partidas (teria mais regularidade na conquista seguinte), mas era um reconhecido pé-quente: só perdeu quatro vezes nas 39 partidas de liga em que participou.

Em 1916, foi a vez do ponta-esquerda Jaime Chavín aparecer no time adulto. Seu forte era mais os cruzamentos do que os gols – só computou doze em 74 jogos pelo clube. Com a cisão, ele inicialmente seguiu no Huracán, participando da campanha vencedora da Copa Estímulo de 1920. Mas então partiu ao River, sendo titularíssimo do primeiro elenco millonario campeão argentino, na liga dissidente de 1920 (com a reunificação das ligas em 1927, os títulos dissidentes seriam convalidados como oficiais também), só finalizada em janeiro de 1921.

El Ruso voltou a Parque de los Patricios por mais cinco partidas na campanha de 1921, o que lhe possibilitou integrar a seleção argentina campeã pela primeira vez na Copa América, naquele ano – ela, obviamente, não convocava quem atuasse na liga dissidente. Já em 1919 apareceu o goleiro Ernesto Kiessel, que teve uma senhora revanche. É que sua estreia havia sido desastrosa: um 7-0 para o Boca, pior goleada do Globo no amadorismo.

Mas já em 1920 El Alemán Kiessel se tornava o primeiro goleiro que o clube cedia à seleção. E conseguiu apagar a lembrança embaraçosa: excetuando a estreia, jogou mais (61 vezes) do que sofreu gols (59), algo notável em tempos sem maiores retrancas. Ele seria o outro representante huracanense na seleção campeã da Copa América de 1921, embora não chegasse a entrar em campo.

O ano de 1920 viu a chegada dos três únicos elementos presentes nas quatro conquistas quemeras naqueles anos 20 (a última, celebrada já em meados de 1929 pelo torneio ainda válido pelo ano de 1928): o volante Ramón Vázquez, que viria a ser o primeiro presidente da associação mutual de ex-jogadores do clube; e o meia-esquerda Ángel Chiesa, que não tinha faro de gol para os padrões da época (embora terminasse na vice-artilharia do campeonato, com 15 gols) nem habilidade dribladora, mas sabia entregar a bola. Eles dois criariam laços até familiares, como concunhados (suas esposas eram irmãs entre si) e também como sócios de uma sapataria que abriram naquele mesmo 1921.

Chiesa seria o recordista de gols e partidas pelo clube no amadorismo: 110 em 225. Nada que lhe desse vaidade: “tinha vergonha ante os aplausos das tribunas. Sentia desejos de me esconder. É que não estava acostumado às multidões” foi uma declaração sua constante naquele livro lançado pelo Clarín para o centenário do clube. O zagueiro Juan Pratto jogou só um pouco menos que ele, 214, e ainda teria tempo de ser um dos primeiros jogadores que o futebol argentino exportou ao europeu. E não era a qualquer clube: então maior campeão italiano, o Genoa levou-o para a temporada 1930-31 junto com Guillermo Stábile, colega de Huracán campeão de 1928 e recém-artilheiro da primeira Copa do Mundo.

Ainda demoraria até 1924 para que Stábile aparecesse no Huracán. O papel de homem-gol no primeiro título coube a mais uma novidade de 1920: Guillermo Dannaher, que já naqueles tempos se notabilizava por uma jogada que lembrava o drible foquinha de Kerlon. Era mesmo forte no jogo aéreo e tinha grande senso de colocação. Seria o artilheiro do torneio (o primeiro jogador do Huracán a conseguir isso), com 24 gols. El Inglés era o mais perto de uma celebridade futebolística que havia no elenco: já havia defendido a seleção entre 1912 e 1914, a partir dos clubes Tiro Federal, de Rosario, e do Argentino de Quilmes. Inclusive, uma notícia errônea de sua morte em 1917 já havia aparecido na imprensa, em tempos de bem pouca atenção da imprensa ao futebol.

Federico, Vázquez, Pratto, Kiessel, Podestá e Marchioli; Ginevra, Brenna, Chiesa, Dannaher e Gibezzi. Segunda rodada de 1921, antes do 3-0 no Sportivo Palermo

Dannaher teria um passo bem fugaz no Huracán, mas fez o suficiente para eternizar-se – foram só 26 partidas, mas com trinta gols marcados, e, sobretudo, a artilharia do campeonato (também a primeira a algum jogador do Globo) que marcou o primeiro título argentino à equipe do bairro de Parque de los Patricios.

Por fim, o próprio ano de 1921 rendeu as aparições de duas figuras históricas no futebol, embora não exatamente pelo papel desempenhado naquele título, pois jogaram bem pouco – e só depois ganhariam fama. O volante Luis Monti só esteve em quatro partidas, a primeira delas o 2-1 em 6 de setembro contra o Sportivo Palermo. Vinha junto do irmão Enrique do time campeão da segunda divisão da liga dissidente de 1920, o General Mitre. Os irmãos Monti viraram um caso raríssimo de bicampeã seguida de segunda com primeira divisão por clubes diferentes. E um caso ainda mais raro de campeões argentinos por Huracán e San Lorenzo, pois logo rumaram em 1922 ao time vizinho.

Sobre Luisito, a enciclopédia do Clarín reconheceu que “no pouco tempo em que esteve em Parque de los Patricios, foi uma constante seu excelente desempenho na metade do campo, posição que era quase seu habitat natural”. Luis Monti ainda voltaria ao Huracán como técnico na temporada que marcou a inauguração do atual estádio, em 1947. Mas no futebol ele fez história sobretudo como único a jogar finais de Copa do Mundo por países diferentes: vice pela Argentina em 1930, campeão pela Itália em 1934.

Césareo Onzari, por sua vez, estreou em 1921 ainda mais na reta final, no penúltimo (ou antepenúltimo, como esclarecermos) jogo da campanha. Se eternizou como autor do primeiro gol olímpico do futebol, já em 1924, no clássico da Argentina com o Uruguai. Ganhou continuidade apenas em 1922 e também esteve presente no título de 1928, embora se ausentasse do outro dos quatro campeonatos (o de 1925) por participar emprestado ao Boca na vitoriosa excursão europeia dos auriazuis.

O plantel de 1921 tinha ainda os seguintes nomes: Miguel Azuain, Juan Bagnera, Eduardo Baldinelli, Andrés Brenna, Juan Carbone, Cecchi, Domingo Di Lorenzo, Cayetano Federico (presente em doze jogos), Domingo Gibezzi, Miguel Ginevra (o mais assíduo desses nomes, com 16 partidas, junto aos citados Chiesa, Dannaher e Vázquez), Francisco Marchioli e Felipe Podestá.

Desses outros nomes, somente Bagnera, Cayetano, Fontana, Ginevra repetiriam a dose no título seguinte (além dos citados Chavín, Chiesa, Kiessel, Laguna, Onzari, Pratto e Vázquez), embora nova taça viesse já na edição seguinte. Passemos, enfim, à campanha de 1921.

O campeonato

O torneio teria o desfalque do Banfield, que resolveu se bandear para a liga dissidente – isso inclusive fez com que aquela Copa Estímulo de 1920 terminasse atribuída ao Huracán, pois originalmente ambos, líderes de seus grupos, travariam uma final.

Também haveria problemas com o Platense, que internamente também passava por uma cisão. Houve uma equipe representando-o no torneio paralelo e outra no certame oficial. A luta política dos marrons pesaria no desfecho do torneio, a ponto de seus jogos na liga oficial terminarem anulados após apenas oito partidas.

A formação que a reta final consolidou: Fontana, Vázquez, Kiessel, Pratto, Enrique Monti e Luis Monti; Ginevra, Laguna, Chiesa, Dannaher e Onzari.

Bicampeão seguido pelos torneios de 1919 e 1920, o Boca atravessava uma ligeira crise e foi a sua vez de ficar apenas em terceiro: quem mais perseguiu o Globo foi o Del Plata, clube extinto do bairro de Barracas (vizinho a Parque de los Patricios, gerando certa aura de clássico ao duelo), onde tinha campo na esquina das ruas Iriarte e Vélez Sarsfield. Na verdade, foi o inverso – o Huracán passou a maior parte do certame atrás do concorrente, embora só perdesse uma única vez em dezoito jogos e produzisse quase o dobro de gols. Seriam 54.

Desde o início se demonstrou a faceta goleadora da Quema: a estreia foi um 4-0 (Brenna, Ginevra e dois de Chiesa) como visitante para cima do Porteño, em 17 de abril, seguido de um 3-0 (Brenna e dois de Dannaher) no dia 25 sobre o Sportivo Palermo. Ambos esses clubes eram vizinhos no bairro de Palermo, com o Teño sediado na esquina Valentín Alsina com Los Paraísos (atual Agustín Méndez) e o Sportivo, na esquina Fitz Roy com El Salvador. O primeiro, outrora campeão argentino em 1912 e 1914, deixaria o futebol ao fim da década para focar-se no rúgbi enquanto o segundo entraria em um ostracismo com a era profissional, se desafiliando da AFA em 1984.

Antes da terceira rodada, o time sagrou-se campeão: foi em 4 de maio de 1921 que, diante da retirada do Banfield antes do agendamento tardio de uma final pela Copa Estímulo de 1920, a associação oficial proclamou o Huracán como campeão daquele torneio. Em 8 de maio, em casa, o Globo não fez jus a isso: ficou só no 1-1 com o Sportivo del Norte (Dannaher abriu o placar, mas Cánepa igualaria), outro extinto – como indicava o nome, se situava no extremo norte da capital, no bairro de Núñez, na esquina de Manzanares com Blandengues (atual Avenida del Libertador). Uma semana depois, bateu por 3-2 fora de casa o Del Plata, gols de Di Lorenzo e dois de Dannaher para os vencedores.

Em 22 de maio veio a única derrota dos futuros campeões de 1921, na visita ao Nueva Chicago (1-0). Como uma reação, em 29 de maio o Huracán viu o ídolo Laguna regressar a campo, na primeira de suas doze aparições na campanha. A equipe visitou o El Porvenir (hoje na quarta divisão, o clube da cidade de Gerli ainda era sediado em Avellaneda, no distrio de Piñeiro) e arrancou um 1-1. Dannaher, para variar, assinalou o gol quemero.

Junho começou com um clássico com o Boca na casa rival e uma primeira das cinco aparições do veterano Agustín Alberti na campanha: um movimentado 2-2 no dia 5, em que os quatro gols saíram entre os 20 e os 35 do segundo tempo (Dannaher abriu o placar, Juan 25, a cabeça de Dannaher fez outro aos 29 e Juan Manuel Ferreyra então reigualou). Então veio a apresentação mais sonora dos futuros campeões – o 7-1 sobre o Sportivo Barracas no dia 12. Equipe poderosa nos anos 20, batendo inclusive forças europeias, o Sportivo comemorou nesse 2021 a subida da quarta à terceira divisão, alegria ofuscada pela promoção do vizinho Barracas Central à primeira.

No dia 26 foi a vez de bater em La Plata o Estudiantes por 3-2 (Dannaher e duas vezes Chiesa), fechando o primeiro turno. O segundo turno começou em 3 de julho e novamente não houve dó contra o Porteño: 5-1, com Dannaher, Chiesa, Pratto e duas vezes Laguna na súmula de gols. Nem do El Porvenir, que levou de 6-1 no compromisso seguinte, já no dia 17, com uma tripleta de Dannaher e outra de Chiesa anotando o massacre. Em 31 de julho, 2-1 no Nueva Chicago, jogo de reestreia de El Ruso Chavín – que até marcou o segundo gol, para a festa da multidão que compareceu para revê-lo; Dannaher fez o primeiro.

A volta de Chavín, por outro lado, causou desgosto em Brenna, que pulou fora. O mês de agosto só teve dois jogos: com  dois de Dannaher e outro de Chiesa, aplicou-se 3-0 no Sportivo del Norte no dia 7 (última partida com Alberti e também a reestreia de Fontana, presente em todas as seguintes) e 4-0 sobre o Estudiantes no dia 14, no qual Enrique Monti estreou pelo Globo. Ele e o irmão Luis vinham jogando na liga dissidente pelo Mitre, mas o clube recém-ascendido nela foi descontinuado com o torneio paralelo em andamento; além dos Monti, Onzari também chegaria do Mitre para a reta final. Na estreia de Enrique, Dannaher e Laguna marcaram duas vezes cada sobre os pincharratas.

Em setembro só houve a partida contra o Palermo, 2-1 no dia 4. Essa por sua vez marcou a  estreia de Luis Monti (que seguiria em todos os jogos seguintes) e também a terceira e última partida de Chavín na campanha, que pausaria para a Copa América – e seria bagunçada pela entrada tardia do Platense no certame. Dannaher e Laguna marcaram os gols da rodada que colocou o Huracán na liderança: 25 pontos, contra 24 do Del Plata, que, porém, tinha uma partida a menos. O Boca corria por fora, com 22 pontos, mas também um jogo a menos.

O foco da associação em outubro seria a Copa América realizada em casa e o campeonato de seleções provinciais, que tomaram conta do calendário do mês. No Huracán, outro fator a tirar o foco ao menos do presidente do clube, Aldo Cantoni, foi o assassinato do governador de sua província (a de San Juan, onde o próprio Cantoni também governaria posteriormente) em 21 de novembro – ao menos é o que sugere a nota oficial publicada hoje pelo clube, que voltaria a jogar somente no dia 27 daquele mês: um 3-1 sobre o Sportivo Barracas, gols de Chiesa e duas vezes Dannaher.

O jogo seguinte, por sua vez, marcou a estreia de Onzari. Não seria uma partida qualquer: naquele 4 de dezembro, houve o duelo direto com o líder Del Plata pela liderança. O novato Onzari então recebeu a seguinte orientação do artilheiro Dannaher: “você fique na ponta esperando o passe, enquanto o jogo for pela ala nossa, mas não me fiques aí se a bola vier pela direita, porque então não servirás para nada!”. Kiessel, Pratto e Enrique Monti, Luis Monti, Vázquez e Fontana, Ginevra, Laguna, Chiesa, Dannaher e Onzari foi a onzena escalada àquela virtual final.

Onzari e Monti, os nomes então obscuros que brilhariam ao longo da década, foram pé-quentes juntos: o 3-0 foi construído em um lapso de nove minutos, entre os 27 e os 36 do primeiro tempo, anotados por Dannaher, pelo próprio Onzari e pelo veterano Laguna, que precisou retirar-se a sete minutos do fim da partida após uma lesão.

Então vieram as grandes polêmicas do campeonato. Ainda com chances de título, o Boca recebeu em 11 de dezembro o Nueva Chicago. Mesmo em casa, perdia por 2-1 até a partida ser suspensa aos 22 minutos do segundo tempo, por agressão da plateia ao árbitro. No dia 18, foi a vez do Huracán enfrentar pela primeira vez o Platense. Ao fim do primeiro tempo, ficaram no 0-0. No intervalo, então, o capitão do Tense concordou em ceder os pontos da partida ao Huracán, que teve ares de amistoso no segundo tempo: 4-0, gols de Onzari, Dannaher, Chiesa e Laguna. A princípio, a tabela mostrava o Huracán com 31 pontos, Del Plata com 27 mas um jogo a menos e o Boca com 25, mas dois jogos a menos.

Pressionada por Boca e Del Plata, a liga reagiu anulando todos os jogos do Platense, embora não o desafiliasse. A medida na verdade atrapalhou mais o Del Plata: ele, que no mesmo dia 18 venceu o Sportivo Palermo, despediu-se do torneio no dia 25 com um 2-1 no Sportivo del Norte e parou nos mesmos 29 pontos que o Huracán passara a ter após a perda de seus pontos contra o Tense. O Del Plata teria chances matemáticas de título se pudesse jogar as duas partidas que teria contra o Tense. Já o incidente entre Boca e Chicago permaneceu sem resolução; era mais prático aguardar a partida direta entre os auriazuis e o Globo, designada já para aquele 8 de janeiro de 1922.

Com o tempo, se difundiu a versão de que o Huracán já teria entrado campeão devido à derrota do Boca para o Chicago, o que não é verdadeiro diante de ainda haver àquela altura uma pendência da confirmação da derrota boquense contra o clube do bairro de Mataderos. Os auriazuis tinham que vencer o líder e concluir com uma virada os minutos que faltavam contra o Chicago, o que também provocaria uma co-liderança e a necessidade de um jogo-desempate com o rival. Já o Globo, além de confirmar o título de um jeito mais simplificado, teria pela frente as estatísticas: jamais havia derrotado os rivais. A mesma escalação vencedora na decisão contra o Del Plata deu conta de resolver as duas coisas.

A escalação visitante Rosario Galeano, Domingo Costa e Sebastián Fabiano, José Alfredo López, Mario Busso e Alfredo Elli, Antonio Sánchez, Juan Pisa, Leonardo Fabiano, Pablo Bozzo e Joaquín Mange (em negrito, dois vencedores da Copa América de 1921) começou a ser batida aos 44 minutos do primeiro tempo, quando Dannaher abriu o placar. El Inglés fechou a conta aos 26 do segundo. Ao fim, diante da desnecessidade prática de ordenar a retomada dos treze minutos pendentes do Boca contra o Nueva Chicago, a liga confirmou o resultado de 2-1 da equipe verdinegra. O pódio ficou com Huracán 31 pontos, Del Plata 29 e Boca 25.

Epílogo: os anos de ouro 

O leitor talvez note a ausência de menções a Rosario Central ou Newell’s, seja no campeonato ganho pelo Huracán, seja entre os clubes dissidentes. De fato, apesar da importância rosarina ao título argentino na Copa América de 1921, suas forças ficavam oficialmente à margem: apesar do nome, o campeonato argentino era restrito oficialmente à Grande Buenos Aires e La Plata, o que só mudaria em 1939.

Os recém-campeões antes da Copa Ibarguren no fim de janeiro de 1922: Baldinelli, Fontana, Vázquez, Enrique Monti, Luis Monti e o massagista Martínez; Chiesa, Kiessel, Laguna, Ginevra, Dannaher e Carreras.

Canallas e leprosos ficavam restritos á sua própria liga municipal, embora regularmente se travasse de 1913 a 1925 (e depois de 1936 a 1940) a chamada Copa Ibarguren entre os campeões “argentino” e rosarino para definir de modo mais verdadeiro o melhor time do país. O Huracán, de fato, tomou um vareio do Newell’s semanas depois, levando de 3-0 (dois gols de Atilio Badalini e outro de Julio Libonatti, ambos recém-vencedores da Copa América, na qual Libonatti fora artilheiro e autor do gol do título) no jogo único realizado em 29 de janeiro no estádio do Boca – que, por sua vez, concluiu apenas em 5 de fevereiro de 1922 a Ibarguren ainda válida por 1920. Se deu ainda pior, sofrendo 4-0 do modesto Tiro Federal.

Na liga dissidente, o Racing ganhou em 1921 seu oitavo título argentino em nove anos. La Academia inspiraria em 1924 a fundação do Racing de Córdoba, seu xará mais expressivo, vice-campeão nacional em 1980. Independiente e San Lorenzo ganhariam seus primeiros títulos na sequência, mas sem parecer gerar a mesma comoção daquele Huracán: sacudindo a poeira da Ibarguren, sagraria-se bicampeão seguido em 1922 com a mesma espinha-dorsal de 1921, mesmo sem os irmãos Monti. E até daria um troco no Newell’s na edição de 1922 da Ibarguren.

Mas o tal Racing de Córdoba seria mesmo a única imitação pura de algum grande a ir longe. Sem inspiração no Independiente, nascera em 1913 em Mendoza o Independienta Rivadavia (participante mendocino contínuo nos Nacionais e de cores branca e azul marinha) e, em 1916, o Independiente de Trelew (figurante no Nacional de 1972 e alvirrubro) surgiu na Patagônia. O San Lorenzo de Mar del Plata, criado em 1921 e rubronegro, foi o outro único Sanloré na elite; foi um assíduo representante marplatense ao longo do Torneios Nacionais, existentes de 1967 a 1985, sofrendo inclusive o primeiro gol da carreira adulta de Maradona.

A era dourada do Globo, por sua vez, repercutia mais a sério em corações e mentes pelo país na década em que o futebol efetivamente tornou-se uma paixão nacional. Apenas os diversos San Martíns (em homenagem ao herói-mor da independência) e as dezenas de Gimnasias y Esgrimas conseguem rivalizar em representantes diversos pelo país (mais como orientação esportiva dos fundadores do que propriamente uma homenagem ao mais expressivo desses clubes, o de La Plata).

Em 1923, o sul da província de Buenos Aires, inspirado no mais recente bicampeão argentino, ganhou o Huracán de Tres Arroyos, que revelaria Rodrigo Palacio e até seria o único Huracán de primeira divisão na temporada 2004-05. Também em 1923, ainda em 4 de março, o Huracán original choraria a morte precoce do goleiro Kiessel até voltar a a sorrir na liga em 1925, ano de título também na Ibarguren – e da fundação do Huracán de San Rafael no interior da província de Mendoza. Como o correntino, ele homenageou rivais: suas cores e o uniforme emulam o do Boca. Os sanrafaelinos jogariam o Torneio Nacional em 1974 e 1981.

Dannaher, apunhalado em uma briga de bar em Quilmes em 1927 (curiosamente, dez anos depois de quando foi dado como morto pela primeira vez), foi outro ídolo chorado cedo demais. Naquele ano, a Patagônia ganhou o Huracán de Comodoro Rivadavia, participante do Torneio Nacional de 1971 (junto do de Ingeniero White e do original), 1974 (junto ao original e ao de San Rafael) e 1976.

Por fim, o clube do artilheiro Stábile ganhou a liga reunificada de 1928, encerrada já em meados de 1929 – quando o interior de Mendoza pariu o Huracán Las Heras, com alguma originalidade no plágio do escudo do original, duplicando a letra H no balão, com um L ligeiramente abaixo. Ele participou da edição final do Nacional, em 1985.

Apesar do notável jogo aéreo do artilheiro Dannaher (em destaque), o Huracán foi derrotado pelo Newell’s pelo tira-teima “moral” de 1921. Mas haveria troco na edição seguinte

https://twitter.com/CAHuracan/status/1479847881024679940

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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