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Jorge Maldonado, o primeiro “Capitão América” do futebol argentino

Liderando o Independiente embalado antes da viagem a Milão pelo Mundial Interclubes de 1964, no final da carreira; e repetindo os icônicos visual e gesto em uma de suas últimas aparições públicas

“Quando cheguei ao clube, já vinham fazendo desde os começos dos anos 60 com Jorge Maldonado. Em 1963, o Independiente foi campeão e houve um jogo raro, creio que contra o Atlanta. Diziam que haviam se vendido, então Maldonado se reuniu com os garotos e lhe disse: ‘vamos demonstrar às pessoas que nós temos as mãos limpas’, e por isso levantam e mostram as mãos abertas. Lhes expliquei que se entram trotando, é uma desordem, um passa do outro, não serve. Tem que ir sempre caminhando. Lhes ressaltei que era importante pararem bem na metade do campo, e que o capitão deveria dar dois passos adiante e saudar aos quatro cantos. Que muitos insultariam, outros aplaudiriam, mas assim demonstras que aguentas os xingamentos, que tens personalidade e que vai ao campo adversário para ganhar. A mensagem é que essa camisa pesa”.

A declaração acima, dada em 2018 ao La Nación, é de Ricardo Pavoni, lateral uruguaio que chegou a ser o jogador mais vezes campeão do Independiente e da Libertadores – nas quais ganhou as edições de 1965, ano de sua chegada ao clube, e o tetra seguido levantado entre 1972 e 1975. El Chivo Pavoni chegou a Avellaneda para substituir exatamente La Chivita, alcunha que significa “O Cavanhaque” e apelidava Jorge Alberto Maldonado, o primeiro capitão de um time argentino vencedor da América. Nesse último fim de semana, ele teria completado 90 anos, se não tivesse falecido em 24 de março de 2012, já como um dos últimos remanescentes também da dourada geração argentina dos anos 40. Hora de relembra-lo.

Há divergências quanto à data de nascimento de Maldonado; a El Gráfico temática dos cem maiores ídolos do Independiente, de 2011, apontou como 5 de maio de 1929. Lançado no mesmo ano, o livro Quién es Quién en la Selección Argentina manteve dia e mês, mas para o ano de 1931. O ano de 1929, porém, provavelmente é o mais correto, segundo esta matéria de 1965 resgatada pela mesma El Gráfico em seu site. Ela celebrava um Maldonado de anunciados 36 anos, que àquela altura deixava o Rojo. Sim: a conquista da Libertadores de 1964 serviu também como despedida em alto estilo ao capitão dos campeões. Além disso, seu visto de desembarque no Brasil em 1961, ano em que enfrentou o Palmeiras pelas quartas-de-final da competição, também registra o ano de 1929, ainda que o envelheça em um dia, apontando a data de 4 de maio.

Registros sem a barbicha pelo Platense em 1956, na última capa do clube marrom na El Gráfico, e antes de anular Pelé no 5-1 sobre o Santos em amistoso de 1964

Certo é que Maldonado foi formato no Platense, ingressando em 1948 no time principal desse clube. Hoje mais lembrado como um raro time no mundo a usar a cor marrom e por ter revelado David Trezeguet, na época o Tense tinha outra aura, a de um time pequeno dos mais bem prestigiados do futebol argentino. Em tempos em que os grandes do país eram vistos como seis – as duplas Boca & River, Racing & Independiente e Huracán & San Lorenzo -, o Calamar foi o quadro chico que mais tempo sobreviveu na elite argentina até seu primeiro rebaixamento, em 1955; o Newell’s teria sua primeira queda em 1960, mas estreara na liga argentina em 1939, ao passo que o Platense batia ponto desde 1913 na primeira divisão. Também estreante em 1939, o Rosario Central já havia caído até duas vezes, em 1941 e 1951. Dos futuros campeões continentais, o Argentinos Jrs caíra em 1937, o Vélez em 1940, o Lanús em 1949 e o Estudiantes, em 1953…

O Platense não se limitava a ser figurante incaível, mas ocasionalmente fazia boas campanhas, com o terceiro lugar com a mesma pontuação do vice River em 1949 e o quarto lugar em 1954. Duas figuras suas inclusive reforçaram o lendário Millonarios de Di Stéfano no Eldorado Colombiano, casos do meia Antonio Báez e do goleiro Julio Cozzi. Maldonado, por sua vez, seguiu com a camisa marrom para ser justamente o último jogador do clube a receber capa na tal revista El Gráfico, na edição de 18 de fevereiro de 1956 – ou seja, já após o inédito rebaixamento como lanterna de 1955. Caiu para cima, contratado pouco depois pelo Independiente, ainda que o Rojo vivesse certa crise de identidade: não era campeão exatamente desde o ano de 1948 no qual Maldonado era um debutante, e via o vizinho Racing em melhor momento, com a Academia tendo se tornado o primeiro time a faturar um tricampeonato no profissionalismo (entre 1949 e 1951).

O defensor foi justamente a primeira peça do elenco campeão continental em 1964 a chegar. O jejum duraria doze anos, até hoje o tempo máximo de seca já suportado pelo Independiente, até acabar em 1960 – ainda que sob um futebol longe do agrado da torcida, sempre exigente de um jogo refinado. A campanha teve só duas vitórias por mais de gols de diferença, devendo-se muito à sólida defesa que Maldonado, como volante central, coordenava com os uruguaios Alcides Silveira e Tomás Rolán e outros futuros campeões da América: Roberto Ferreiro, vencedor também como treinador do Rojo (em 1974), e Rubén Navarro, cujo apelido Hacha Brava já dizia tudo. O clube garantiu na rodada final o título mesmo perdendo, para o Atlanta – talvez tenha sido a essa partida de 1960, e não à de 1963, que Pavoni se referia na declaração que abre a matéria.

Maldonado à frente dos colegas exibindo as mãos limpas do Independiente

De todo modo, a espera pela conquista era tanta que Maldonado deixou crescer uma barbicha que começou como promessa e foi repetida como superstição até tornar-se inseparável do defensor. Isso em tempos de primórdios de rock n’ roll, muito antes do visual ser aceito nas vertentes que o estilo musical ganharia na década que viria, muito menos no ainda inexistente heavy metal – quiçá então na “sociedade”. O título também serviu para estrear o Independiente na Libertadores, na edição de 1961. Na época, a competição ainda se chamava Copa dos Campeões da América e empregava o nome no sentido literal, sendo bem enxuta e já começando em mata-matas; os argentinos superaram o Barcelona de Guayaquil, mas caíram na fase seguinte para a Academia palmeirense.

Em paralelo, o Rojo decaía para sexto no campeonato nacional. Sobreveio um quarto lugar em 1962, ano em que Maldonado, já com 33 anos, pôde fazer seus únicos jogos pela seleção, já após a Copa do Mundo: dois amistosos contra o Chile pelo troféu binacional Copa Carlos Dittborn, em 7 de novembro em Santiago (1-1) e 21 de novembro em Buenos Aires (1-0), além de amistoso não-oficial contra o Boca em 18 de dezembro – os auriazuis, nas comemorações de seu primeiro título argentino em oito anos, venceram por 1-0 no campo do Huracán. A estreia pela Albiceleste aos 33 anos de idade foi um recorde de idade elevada para um veterano que se manteve até 2009.

Maldonado, que tinha 33 anos e seis meses superou marca de 1960 de José Nazionale, jogador do Lanús que tinha 33 anos e dois meses ao estrear em 1960; somente em 1991 é que outro jogador de 33 anos – e um mês – estrearia pela seleção, curiosamente, outro ídolo do Independiente, Miguel Ángel Ludueña. Em 2009, então, o excêntrico técnico Maradona deu as primeiras oportunidades a Rolando Schiavi e Esteban Fuertes, ambos na casa dos 36 anos. Mas o que poderia ser o ápice do reconhecimento a Maldonado terminou ofuscado pelo que viria a seguir. Em 1963, ele, já como um técnico em campo, seguia titularíssimo em novo campeonato ganho pelo Independiente.

Os vencedores da Libertadores de 1964 reunidos vinte anos depois, em 1984. Maldonado, de terno marrom e gravata azul ao centro, puxa a icônica saudação

Técnico em campo não era exagero: com 34 anos, La Chivita de fato se alternava nas duas funções, cada uma em um clube diferente: em tempos em que as partidas da elite só aconteciam aos domingos, com os sábados reservados às divisões de acesso, desde 17 de agosto de 1963 vinha ocupando-se aos sábados para treinar na segunda divisão o Tigre – em certa heresia, pois os rubroazuis são justamente o rival tradicional do Platense no Clásico de la Zona Norte. O título na elite, por sua vez, recolocou o Rojo na Libertadores, que não escaparia na edição de 1964. O ponto alto veio na semifinal, destronando o bicampeão, o Santos de Pelé. Na verdade, sem Pelé: lesionado, o Rei não esteve em campo, mas com ele presente o Peixe, naquele mesmo ano de 1964, já havia caído por 5-1 em amistoso que marcou a nova iluminação noturna da Doble Visera.

A vitória de virada em pleno Maracanã, revertendo para 3-2 uma derrota parcial de 2-0, recentemente voltou à tona em áudios em que Julio Grondona gaba-se de ter subornado o trio de arbitragem, levantando uma cortina de fumaça sobre a má atuação santista naquele jogo: o Jornal do Brasil apontou que “o Santos foi um time medíocre, sem nenhum poder ofensivo e com uma defesa falha do começo ao fim do jogo” e que o veterano Maldonado “dominou completamente o seu setor e numa das poucas vezes em que falhou, Peixinho marcou para o Santos”, além de registrar declarações do próprio técnico santista Lula de que “o quadro argentino é muito rápido. Seus jogadores correram o tempo todo, não dando chance ao nosso. Não faço nenhuma restrição ao triunfo do Independiente”. Detalhamos nesse outro Especial.

A classificação sobre os brasileiros foi depois confirmada na Argentina, a despeito da arbitragem poupar Almir Pernambuquinho de uma expulsão após cotovelada do temperamental atacante em Raúl Savoy. A entrada serena do Independiente em campo, com seu capitão dois passos à frente, passava a ganhar novos contornos, em imponência reforçada pela incomum barbicha do capitão – afinal, a braçadeira era do colega Navarro, impossibilitado de disputar o torneio em função de uma perna fraturada. Maldonado, após algum tempo sem usar o cavanhaque (como se vê em foto com o próprio Pelé antes daqueles 5-1), voltou a cultiva-lo nas fases agudas de La Copa. A conquista eternizou de vez o visual incomum para a época, mantido até como octogenário, como se vê na imagem que abre a matéria.

Maldonado nos vestiários do Maracanã com a bola do Independiente 3-2 Santos: capa dupla histórica da El Gráfico para celebrar os campeões da Libertadores de 1964

Maldonado ainda seguiu jogando para disputar o Mundial com a Internazionale. Após um triunfo em casa para cada lado, a derrota para La Grande Inter só foi sacramentada aos 5 minutos do segundo tempo da prorrogação do jogo-extra no neutro Santiago Bernabéu. No início de 1965, o veterano, ainda alternando-se entre Independiente e Tigre, anunciou sua saída do Rojo. La Chivita ainda jogou uma última partida oficial, em 17 de julho, reforçando o Tigre em campo contra o Unión pela segundona, em sua única aparição em campo pelos rubroazuis; como técnico, devolveu o time à elite na complicada fórmula de 1967, onde nem o campeão, o Defensores de Belgrano treinado pela lenda Ángel Labruna, tinha acesso garantido – era necessário ficar entre os primeiros de uma miniliga com os últimos da primeira divisão e nesse torneio os comandados pelo campeão da América asseguraram a terceira colocação. Não foi pouco: as temporadas de 1968 e de 1980 foram as duas únicas a contarem com o Tigre na elite argentina entre 1958 e 2007.

Um epílogo: naquela entrevista de 2018, o “sucessor” Pavoni, ainda em referência àquela saudação icônica puxada por Maldonado, explicava que fora, a pedido do treinador Ariel Holan, reensinada pelo uruguaio em 2017 à garotada roja que vinha se afirmando na Copa Sul-Americana. Indagado a respeito da receptividade, respondeu: “muito boa. Em um mês, um dos garotos veio e me disse: ‘sabe, Chivo, que sentimos essa força especial de veja-como-nos-xingam-mas-ainda-assim-vamos-vencer?’. E terminamos fazendo no Maracanã, nada menos”. Maracanazo que tivera sua prévia em 1964, em feito ainda maior bem captado pela El Gráfico: ela usou o festejo nos vestiários do Maracanã como imagem de capa após o título, e não algum registro propriamente dito das finais contra o Nacional – aliás, foi a primeira capa dupla da revista. Com Maldonado e seu característico cavanhaque segurando a bola do jogo.

https://twitter.com/adnCAI/status/1034466455671255040

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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