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Osvaldo Cruz, o argentino do primeiro Brasileirão do Palmeiras

Osvaldo Cruz remete primordialmente ao célebre sanitarista brasileiro, cujo nome não por acaso é empregado em Fundação produtora de vacinas – logo ele, vilanizado pela ignorância alheia na Revolta da Vacina. No futebol, o médico dá seu nome a um clube da segunda divisão paulista (da cidade homônima, que deu ao mundo a estrela de basquete Magic Paula e os locutores Osmar Santos e Oscar Ulisses) e ao antigo troféu binacional disputado entre Paraguai e Brasil, nos moldes da Copa Roca que os brasileiros travavam com a Argentina e da Taça Rio Branco, com o Uruguai. Mas a grande figura esportiva é o ponta-esquerda Osvaldo Héctor Cruz. Ídolo no Independiente, foi campeão brasileiro com o Palmeiras dois anos após jogar uma Copa do Mundo, e faz 90 anos hoje!

Um rei sem coroa no Rey de Copas

Nascido na própria Avellaneda, Cruz ingressou nos juvenis do Independiente em 1945 e foi promovido em 1951 ao time adulto. Estreou oficialmente na 7ª rodada, em um 5-1 sobre o Atlanta – jogando na ponta-direita mesmo. Néstor Santos ocupava a ponta-esquerda, mas Cruz já assumia a posição em sua quinta partida (2-0 visitando o Chacarita, na 16ª rodada). Juan Navarro ficava na ponta-direita e eventualmente Juan Romay, como meia-direita, eram outras peças que circulavam pelo ataque. O primeiro gol veio na 20ª rodada, empatando no 3-1 de virada em La Plata sobre o Gimnasia. Bonito: em voleio, pegando de primeira um rebote da defesa adversária.

Os gols seguintes representaram também a primeira tripleta, em um 4-2 no San Lorenzo: abriu 2-0 com um tiro rasante, após passe do centroavante Carlos Lacasia; assinalou o 3-1, driblando o zagueirão Oscar Basso antes de concluir duas vezes – o goleiro Mierko Blazina havia rebatido mal no primeiro chute; e fechou o placar ao interceptar com oportunismo um recuo do zagueiro azulgrana José Glinni. Na 26ª, ele, de bicicleta, fez o quinto de um 6-1 sobre o Atlanta. Ainda deixaria o dele em um 7-1 no Lanús, em um 4-1 no Estudiantes e no 3-0 sobre o Ferro Carril Oeste. O Rojo teve o melhor ataque de 1951, com 74 gols marcados (Cruz, além de marcar sete, contribuiu com cinco assistências, além de outro gol sair em rebote da trave a um chute do ponta), enquanto o arquirrival Racing somara apenas 60… mas terminou campeão, muito por uma defesa que sofreu 37 gols em 32 jogos.

A retaguarda do Independiente fora vazada 51 vezes e assim Cruz e colegas nem no pódio ficaram, em 4º. Esse desequilíbrio foi acompanhado de perto pelos brasileiros, em um amistoso em 1º de dezembro no Maracanã com o Flamengo, que abriu 2-0, tomou o empate e terminou vencendo por 4-2 no primeiro tempo – para, no segundo, ver os argentinos primeiro defenderem em dois lances um pênalti e virarem para 5-4, só então sofrendo um empate final em 5-5. O quinteto ofensivo dos visitantes ainda estava em Navarro, Carlos Cecconato, Ángel Omarini, Ernesto Grillo e Cruz. Mas foi já na 1ª rodada do torneio de 1952 que o time jogou pela primeira vez com seu quinteto mais célebre.

E isso que ainda houve 76 assistências conhecidas na liga argentina. Imagem do EstadísticasCAI

Rodolfo Micheli assumia a ponta-direita como peça final que faltava estrear, complementando-se a Cecconato naquele flanco, com Lacasia de centroavante (apesar dos três gols de Omarini sobre o Flamengo) e o lado esquerdo permanecendo com Grillo e Cruz. De todos os cinco, Cruz era justamente o menos tecnicamente elogiado, embora reconhecido pela velocidade, pela qualidade das assistências (foram registradas dez naquele torneio, onde contribuiu indiretamente ainda com outros dois gols, em tiros livres sobre faltas que sofria) e pelo chute forte – na derrota de 3-2 para o Lanús em casa pela 11ª rodada, chegou a marcar aproveitando um rebote do travessão a outro chute seu.

Trata-se ao menos da opinião corrente em perfis dele publicados no livro Quién es Quién en la Selección Argentina, de 2010 (daqueles cinco, seria justamente ele o único a embarcar para uma Copa do Mundo): “era rápido, não muito hábil, mas sim perigoso para encarar em diagonal na área adversária, generoso para ajudar seus companheiros, o complemento ideal de jogadores mais talentosos que ele. (…) Sempre foi o menos elogiado, eclipsado pela capacidade dos outros, mas seu aporte resultou muito valioso”; e na edição especial em que a revista El Gráfico elegeu os cem maiores ídolos do Independiente, em 2011: “dos cinco, (…) era o menos reconhecido. Apesar disso, (…) foi o de maior regularidade e o de mais larga trajetória com esta camisa”.

Bem, em 1952, além das dez assistências de Cruz, foram onze gols dele na liga argentina. O Independiente, novamente, teve o melhor ataque do campeonato: 72 gols. Em 2005, no centenário do clube, a edição especial lançada pela revista El Gráfico exaltou bastante aquela ofensiva: “Micheli Cecconato Lacasia Grillo Cruz se diz assim, sem vírgulas, sem pensar-se, como se respira ou se pisca”, um quinteto “que o sócio vitalício repete como o padre repete o Pai-Nosso”. Mas a defesa não ajudava, levando 58 – enquanto que a do Racing, sofrendo apenas 33, permitiu ao rival terminar à frente mesmo com apenas 50 gols marcados. A dupla de Avellaneda fechou o pódio para o campeão River (de 65 gols marcados e 48 sofridos).

Sujando a cara na seleção

A seleção argentina não teve dúvidas. Em 24 de março de 1953, ela já utilizou quatro dos cinco atacantes do Independiente em um jogo-treino contra a seleção municipal de Mendoza, um 5-0 que marcou a estreia de Micheli, Lacasia e Cruz pela Albiceleste; o “intruso” era José María Sánchez, atacante do Banfield usado ao invés de Cecconato. E, em 14 de maio, não teve jeito. Se a defesa empregou jogadores de Boca e Racing, na ofensiva a linha Micheli-Cecconato-Lacasia-Grillo-Cruz foi integralmente utilizada, algo inédito a qualquer clube na seleção. E não foi em qualquer ocasião: foi para receber a Inglaterra, ainda vista com reverência no futebol independentemente do seu boicote às três primeiras Copas do Mundo e ao vexame na de 1950.

Os dois quintetos mágicos. À esquerda: Micheli e Cruz em pé, Cecconato, Lacasia e Grillo antes do triunfo sobre a Inglaterra; à direita: Micheli e Cruz atrás, Cecconato e Grillo no meio e Bonelli à frente

De virada, a Argentina venceu por 3-1, em humilhação tamanha a um lado que os britânicos mitigam aquela partida sustentando terem empregado seu time B – enquanto que, do lado argentino, a data virou “o dia do futebolista” até 2020 (quando a AFA, para protestos do nonagenário Micheli, alterou para a data de “um outro jogo” contra os ingleses, em 1986). O mesmo quinteto foi utilizado três dias depois, na revanche oportunizada aos Three Lions, um 0-0 que só durou 24 minutos e terminou suspenso pela chuva torrencial que inviabilizou o prosseguimento. Micheli-Cecconato-Lacasia-Grillo-Cruz ainda estiveram juntos também no 1-0 sobre a Espanha, em julho. “Inexplicavelmente, nunca jogaram no Teatro Colón” foi como concluiu-se aquela nota na revista do centenário. Era uma referência ao grito da torcida por aqueles artistas: “ao Colón, ao Colón!”.

Curiosamente, eles não chegaram a ser tão efetivos no campeonato de 1953. O Independiente desceu para 52 gols (Cruz marcou somente três, mas forneceu novamente dez assistências) e terminou apenas em 4º, mas foi à forra na rodada final, onde o Clásico de Avellaneda poderia propiciar o título ao grande rival. Naquele 22 de novembro, Cruz fez o quarto de um 5-1 sobre o Racing, que ficou em 3º, a quatro pontos do campeão River. E teria mais: ao fim da temporada, o Rojo embarcou para a Europa e em 8 de dezembro encarou no Santiago Bernabéu um Real Madrid recém-reforçado com Alfredo Di Stéfano. Os visitantes aplicaram um memorável 6-0 – especial também por ser, por oito anos, a última derrota madridista em casa para estrangeiros, até caírem para os gols brasileiros do River em 1961. Os 6-0 até hoje são também a pior derrota caseira dos merengues.

Até vale dizer que o Real Madrid, na época, não era o principal time nem mesmo da capital espanhola – venceria naquela temporada 1953-54 apenas o seu terceiro título espanhol e o primeiro em mais de vinte anos. Tudo bem: o Valencia, que já tinha três títulos antes em La Liga, levou de 3-0 no dia 15. O Atlético, então o clube madrilenho mais vencedor (quatro títulos espanhóis), tomou de 5-3 no dia 23. A viagem então prosseguiu para um quadrangular natalino em Lisboa, com o Boca e a dupla Benfica e Sporting, então o mais poderoso time lusitano, vencedor dos seis dos últimos sete campeonatos portugueses. Sobre os alviverdes, Cruz marcou duas vezes em um 8-1 que valeu ao Rojo aquele troféu amistoso. Incrivelmente, o primeiro tempo terminou ainda em 1-1. Outro detalhe: a partida se deu em 27 de dezembro, apenas 48 horas depois de um econômico 2-1 no Benfica.

Em janeiro de 1954, então, o pessoal de Avellaneda ainda ganhou de 3-1 de uma virtual seleção holandesa, com Cruz anotando o segundo. Em meio à excursão, Lacasia lesionou-se e deu lugar a Ricardo Bonelli. Ainda houve alguma transição de quintetos: a linha Micheli-Bonelli-Lacasia-Grillo-Cruz somou onze partidas não-amistosas juntos, com trinta gols, por sinal a de média mais alta (2,8 gols por jogo) que a clássica Micheli-Cecconato-Lacasia-Grillo-Cruz (27 jogos, 53 gols, média de 1,96) e a formação que mais durou: Micheli-Cecconato-Bonelli-Grillo-Cruz registraram 49 jogos juntos e exatos cem gols pelo Independiente, em média de 2,08.

O Independiente que surrou de 6-0 o Real Madrid no Bernabéu: José Varacka, Barraza, Emilio Varacka, Violini, Arias, o técnico Crucci e Abraham; Micheli, Cecconato, Lacasia, Grillo e Cruz

O ano de 1954 começou promissor, inclusive para Cruz, que, com duas bombas, fez o primeiro e o segundo de um 3-0 sobre o Boca na Bombonera na 2ª rodada. Contra os cinco grandes, o Rojo só deixou de vencer uma partida, um 0-0 com o River; dentre outras dez assistências de Cruz (a contribuir ainda com um pênalti cavado além dos seis golzinhos), destaque a uma de voleio para Bonelli fechar um 2-0 no clássico com o Racing. O problema foi a pouca seriedade contra os pequenos, tomando muitos empates em retas finais. No fim das contas, o próprio Boca seria campeão e o Rojo, o vice, mesmo tendo o melhor ataque novamente (61 gols). Assim, a seleção continuou empregando mais algumas vezes todo o quinteto vermelho, agora com Bonelli – como em um 3-1 aberto por Cruz sobre Portugal dentro de Lisboa em 28 de novembro. Na seleção, o novo quinteto também foi mais prolífico, com quatro jogos e 14 gols, média de 3,50!

O obituário de Cecconato, em 2017, enfatizou uma estatística bem sonora: “no total, Grillo fez 90 gols pelo Independiente, Lacasia 61, Bonelli 55, Micheli 53, Cecconato 51 e Cruz 45. Deixando de lado a seleção e as partidas amistosas, chegaram a 355 gols. Nenhum ataque, nem sequer La Máquina do River, logrou um recorde semelhante”. Contudo, aqueles amistosos acabaram sendo a limitada vitrine daqueles craques à Europa: a Argentina deliberadamente não participou das eliminatórias à Copa do Mundo de 1954, ainda receosa de um possível vexame sem as estrelas que haviam se exilado, sobretudo no Eldorado Colombiano, após o insucesso da famosa greve de 1948. Mas a Copa América fez alguma justiça, na edição de 1955, travada ao longo de março – após o Independiente saborear em janeiro um quadrangular com Austria Viena, Estrela Vermelha (ambos derrotados por 3-0) e River (5-4).

Já na Copa América, Micheli-Cecconato-Bonelli-Grillo-Cruz foram usados integralmente nas três primeiras partidas: 5-3 no Paraguai, 4-0 no Equador e 2-2 com o Peru. A Argentina seria campeã e Micheli, inclusive o artilheiro do torneio. No decorrer de 1955, contudo, foi a vez de o Independiente ter a melhor defesa, mas com um ataque menos calibrado como antes, com 48 gols – com Cruz só marcando dois, mas fornecendo onze assistências aos colegas, além de forçar um gol contra (no placar mínimo sobre o Gimnasia, em La Plata). O time voltou a ficar em 4º e longe do campeão, o River. Em 1956, foi pior: 7º lugar. Cruz, com sete assistências, um pênalti cavado e seis golzinhos, mantinha-se relativamente assíduo na seleção em comparação aos outros; ausente da Copa América de 1956, foi chamado para a de 1957, travada em março e abril.

Com apenas 25 anos, Cruz era o mais experiente de outro quinteto celebrado na Argentina, a de Los Carasucias de Lima, “Os Cara-Sujas de Lima” – com o racinguista Omar Corbatta na outra ponta, o também racinguista Humberto Maschio na meia-direita, o boquense Antonio Angelillo de centroavante e o craque riverplatense Omar Sívori na outra meiaLos Carasucias (gíria argentina para moleques) fizeram 8-2 na Colômbia, 3-0 no Equador, 4-0 no Uruguai, 6-2 no Chile e garantiu por antecipação o título em um 3-0 fechado com gol de Cruz (aproveitando com oportunismo um rebote de Castilho aos 46 minutos do segundo tempo) sobre um Brasil que, mesmo ainda sem Pelé e Garrincha, já reunia a espinha-dorsal que triunfaria na Suécia. Mas o campeonato argentino de 1956 ficou mesmo como o último a reunir o quinteto mágico, que já não parecia tão mágico: Grillo esteve só na primeira rodada de 1957, já em 5 de maio, seguindo ao Milan. Cecconato não acertou uma renovação de contrato e, após sete partidas, escondeu-se no futebol de Mendoza.

A seleção arrasadora da Copa América de 1957. Cruz é o último agachado nos “Cara-Sujas de Lima”

Abriu-se assim alas para futuros ídolos feitos Camilo Cerviño, Ramón Abeledo e Walter Jiménez mas o Independiente voltou a ser 7º. Cruz marcou um único gol no torneio e as assistências se reduziram a três, mas foi levado para a Copa do Mundo de 1958 – na qual Grillo ausentou-se mesmo marcando na final da Liga dos Campeões de 1957-58, pois não se chamava quem atuasse fora do país (o que também já era o caso do terceto Maschio-Angelillo-Sívori, igualmente todos no futebol italiano, enquanto o goleiro Rogelio Domínguez triunfava pelo Real Madrid sobre o Milan de Grillo naquela final continental). Enfraquecida, a Albiceleste sofreu um de seus grandes vexames históricos, eliminada por um 6-1 da Tchecoslováquia. Cruz foi uma das tantas figuras queimadas para sempre pelo “desastre da Suécia”, não sendo mais chamado para a seleção.

Seu Independiente também não ajudava: em 1958, com apenas Cruz (resumido a 16 partidas e uma só assistência acompanhando os quatro gols) e Bonelli remanescendo de outros tempos após Micheli ser vendido ao River, o Rojo ficou em 8º e viu o Racing ser o campeão. Em 1959, com a venda de Bonelli ao futebol mexicano, o ponta tornou-se o último daquele ataque a ainda figurar por Avellaneda – e ajudou com seis assistências além dos três golzinhos. O Rojo, que não conseguia ser campeão desde 1948, terminou em terceiro, mas longe de disputar com o campeão San Lorenzo. A falta de taças oficiais não impediria que Cruz, o volante José Varacka e diversos outros colegas mencionados fossem reconhecidos como ídolos eternos no clube. Mas ele tratou na época de buscar outros ares e assim negociou com o Palmeiras.

No primeiro Palmeiras campeão nacional

Com efeito, a matéria da Revista do Esporte que noticiava sua contratação revelava que ele já jogava sem contrato com o Independiente havia três anos, algo nada anormal naqueles tempos de leis de passe leoninas contra os jogadores. “Não foi difícil a minha vinda para o Palmeiras. Meus dirigentes concordaram em dividir comigo o dinheiro pago pelo passe. Agora estou com 30 mil cruzeiros mensais e digo: assinei, em São Paulo, o melhor contrato de minha carreira (…). Quando estava acertando a situação no Palmeiras, fui procurado por um clube italiano, mas não voltei atrás da palavra empenhada. Ficando no Brasil, estou muito mais perto da Argentina. A camaradagem existente no Parque Antártica vai facilitar muito a minha tarefa de adaptação. Quero ajudar o Palmeiras a conseguir grandes vitórias”.

De fato, em tempos sem disparidade financeira, técnica e glamourosa do futebol europeu em relação ao do Cone Sul, não raramente astros argentinos naqueles tempos preferiam, pela proximidade da casa, vir ao Eixo Rio-São Paulo – e vice-versa. A negociação envolveu ainda o acerto de dois amistosos, em ida e volta, entre Palmeiras e Independiente, que até colocaram em jogo a “Taça Adhemar de Barros”. E foi aplicando a lei do ex que Cruz fez seus primeiros gols como palestrino: foram dois no impiedoso 5-1 na estreia, em 9 de março, no Pacaembu. No restante do mês, enfrentou ainda o Flamengo, Portuguesa e Santos pelo Torneio Rio-São Paulo, além do Guaratinguetá em um amistoso, passando em branco – tudo conforme as estatísticas suas constantes no excelente portal Verdazzo.

A chegada de Cruz ao Palmeiras, em nota da “Revista do Esporte”

A revanche com o ex-clube, disputada no estádio do Huracán, se deu já em 1º de abril, antevéspera da primeira rodada do campeonato argentino de 1960. Cruz voltou a marcar, agora em um 5-3 dos visitantes. Viriam então onze jogos sem gols do argentino, até anotar dois em um 7-2 em amistoso com o Bonsucesso, já em 30 de setembro… em meio a isso, o Rio-São Paulo havia terminado com o Verdão abrindo a metade inferior da tabela de dez times e o campeonato paulista já havia começado.

Na campanha estadual, ele registrou tentos inicialmente no 2-2 com o Juventus na Rua Javari e no 1-0 em Campinas sobre a Ponte Preta. Ainda antes do fim do Paulistão, começou a Taça Brasil, em uma semifinal com ares de final antecipada: opôs o Palmeiras com o campeão do Rio-São Paulo, o Fluminense, enquanto na outra chave Fortaleza e Santa Cruz duelavam para encerrar a chave Norte-Nordeste. Os cariocas saíram do Pacaembu com um 0-0 valioso, mas na volta foram derrotados pelo placar mínimo em pleno Maracanã.

A melhor fase de Cruz veio naquele período, marcando na virada de outubro para novembro os seus outros gols no estadual (1-1 com o Guarani na casa palmeirense e 3-0 sobre o Botafogo de Ribeirão, também no Palestra Itália), embora os palmeirenses já não estivessem com chances de alcançar o líder Santos. Ironicamente, foi também naqueles dias que o Independiente, justamente, encerrou seu longo jejum, prevalecendo na corrida contra o azarão Argentinos Jrs. Mas o ponta não deixaria de ter seu próprio título nacional particular.

Em 22 de dezembro,  o favoritismo paulista na decisão brasileira foi confirmado com um 3-1 sobre o Fortaleza dentro do Presidente Vargas, mesmo sob um calor tropical de lembranças sofridas ainda vívidas em relato dado em 2020 pelo argentino ao site oficial do Palmeiras, de onde recolhemos a foto que abre essa matéria. Mas o resultado não dava exatamente ares protocolares à volta: não havia critério de saldo de gols ou de gols fora de casa, com uma eventual vitória simples nordestina bastando para forçar um terceiro jogo (o Maracanã seria o palco, mas o Correio Paulistano até divulgou que os tricolores concordaram no eventual uso do Pacaembu para o possível tira-teima, com contrapartida de renda dividida); o benefício do Palmeiras, além do fator casa, se resumia a jogar pelo empate – o Diário da Noite até publicou um prudente “não se pode afirmar que eles estão de antemão vencidos” sobre os visitantes.

Dois registros de Cruz na final da Taça Brasil de 1960, onde marcou duas vezes

De fato, o Fortaleza abriu o o placar, logo com sete minutos, naquele 28 de dezembro. Na jogada, Charuto concluir após triangulação com o artilheiro daquela Taça Brasil, o ponta Bececê. Mas a zebra galopou pouquíssimo: aos dez, o Palmeiras já havia virado, com Romeiro e Chinesinho – o segundo gol veio em assistência de Cruz, que cruzou para a conclusão do colega, craque que segundo o próprio Cruz merecia ser mais relembrado (“foi um dos melhores com quem atuei”, enfatizou naquele relato ao site oficial do Verdão). Logo aos 12, então, “uma belíssima jogada entre Cruz e Romeiro terminou com a conclusão de Julinho”, cujo arremate entrou no gol após ser desviado pelo próprio Romeiro. Aos 21, Julinho Botelho fez então seu próprio gol na súmula. Aos 44, Charuto descontou, premiado em uma tentativa de longa distância aceita por Valdir.  Mas o argentino afastou qualquer chance de imponderável no início do segundo tempo, anotando gols aos 8 e aos 11 minutos.

Em um lance, ele tocou “com categoria” após ser lançado por Romeiro, no relato do Diário da Noite (a reverberar que “o argentino apresentou uma atuação das melhores”), que exaltou mais seu outro gol – descrito pelo Jornal dos Sports assim: “recebeu de Chinesinho, driblou uma porção de cearenses, chutou sem ângulo marcou”. Depois vieram gols de Chinesinho, aos 25, e de Humberto Tozzi, aos 33, para encerrar um inapelável 8-2, até hoje a maior goleada já vista em alguma final brasileira. Cruz tornou-se o segundo argentino campeão brasileiro, e o primeiro como jogador – seu único antecessor foi Carlos Volante, treinador do Bahia campeão por 1959.

Mas, ainda que com chave (e medalha) de ouro, aquela também seria praticamente a despedida de Cruz. Ele ainda entrou em campo em dois amistosos de pré-temporada em janeiro travados em Goiânia, no 1-0 sobre o Vila Nova no dia 28 e no 2-1 sobre o Dínamo Bucareste dois dias mais tarde – sendo substituído no decorrer desse jogo pelo reforço Bececê. Em 1º de fevereiro, contudo, o ponta e o clube não chegaram a um acordo por renovação, em notícia lamentada na edição do dia seguinte do Correio Paulistano:

“Não se pode dizer se a diretoria do Palmeiras errou ou acertou. Seu departamento de futebol profissional esteve reunido ontem e decidiu convocar o jogador Cruz para informar-lhe de sua dispensa do quadro da Água Branca, já que não foi possível chegar a um acordo do ponto de vista financeiro com o ponteiro canhoto esmeraldino. (…) Não resta a menor dúvida que, após o período de apogeu de Rodrigues [nota do Futebol Portenho: Rodrigues “Tatu”, curiosamente, estava no futebol argentino naquele ano, pelo Rosario Central], ninguém mais envergou a camiseta onze do Palmeiras com a classe do ponteiro argentino Cruz. O rapaz começou mal, mas sua produção foi crescendo dia a dia, até se tornar um expoente do ataque ‘periquito’, só encontrando rival no meia Chinesinho, também um maestro na arte de jogar bola. O passe de Cruz pertence a ele mesmo. Para renovar, o ponteiro solicitou do Palmeiras apenas um milhão e meio de cruzeiros. A diretoria deliberou não aceitar tal preço. Cruz deixará o Parque Antártica e retornará possivelmente ao futebol portenho. É pena, porque o moço prometia…”.

Djalma Santos, Valdir, Valdemar Carabina, Aldemar, Zequinha, Jorge e o técnico Osvaldo Brandão; Julinho Botelho, Humberto Tozzi, Romeiro, Chinesinho e Osvaldo Cruz

No Rojo e em outro Rojo

Aquela nota do Correio Paulistano concluía com declaração do diretor palmeirense Nelson Duque: “infelizmente, não foi possível chegar a um acordo. (…) Dispensamos, portanto, o craque argentino, sem dúvida um bom ponteiro. O passe lhe pertence. Ele fará dele o que quiser”. Cruz, no fim das contas, voltou ao Independiente. Campeão argentino de 1960, o Rojo estrearia na Libertadores na edição de 1961, mas não se mostrou ainda um Rey de Copas, caindo logo no primeiro duelo, em tempos onde a competição era enxuta (aceitando somente os campeões nacionais) e já começava em mata-matas. Ironia: foi contra o Palmeiras.

Cruz esteve em campo assim como outros candidatos a fazer valer lei do ex: o técnico do Independiente era justamente o treinador recém-campeão com o Palmeiras, Osvaldo Brandão, no primeiro ciclo do brasileiro na Doble Visera – para onde rumara justamente em negócio recomendado por Cruz aos cartolas do time de Avellaneda. Brandão, por sua vez, havia sido substituído no Parque Antártica por um argentino que havia defendido o Independiente como jogador, Armando Renganeschi. E quem sorriu foi Renga: o Verdão, futuro finalista daquela edição, arrancou um 2-0 em plena Avellaneda (no estádio do Racing mesmo) em 4 de maio e uma semana depois bateu por 1-0 no Pacaembu.

No 6º lugar da liga argentina de 1961, o veterano disputou outras treze partidas oficiais naquele ano, registrando um único gol, no 5-2 sobre o Argentinos Jrs – mas contribuindo ainda em outros cinco, com três assistências, um gol contra adversário forçado pelo veterano e em uma falta que sofrera e acabou convertida. Em 1962, a camisa vermelha e calções azuis vestidos seriam o de uma ambiciosa Unión Española, que já havia tentado emplacar em 1961 outro astro argentino, Héctor Rial, pentacampeão europeu com o Real Madrid do compadre Di Stéfano. Foram três temporadas no Rojo de Santa Laura, normalmente rondando os cinco primeiros lugares em tempos de dominância do Ballet Azul da Universidad de Chile.

O xará do célebre sanitarista é um dos últimos remanescentes dos anos 50 do futebol argentino – não tão glorificados como o dos 40, mas ainda com uma constância vencedora no continente. Dos cinco Carasucias de Lima, apenas ele e Maschio seguem vivos, após as perdas de Corbatta em 1991, de Sívori em 2005 e de Angelillo em 2018. Das duas formações do quinteto vermelho que virou alviceleste, restam apenas ele e Micheli: Lacasia partira ainda em 1975, sem ver um ilustre sobrinho brilhar no Real Madrid, e foi seguido em 1998 por Grillo, em 2009 pelo substituto Bonelli, em 2018 por Cecconato. E é o único remanescente do primeiro Palmeiras campeão brasileiro.

Atualização em 27-12-2022: Micheli faleceu nessa data, tornando Cruz o último sobrevivente daquele quinteto mágico do Independiente

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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