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Quando a Argentina pôde ser campeã no Brasil: vida e obra de Ermindo Onega

A imagem mais icônica de Ermindo Onega, ainda que mal colorida pela El Gráfico

Uma vez, o que era meu sogro, me disse: ‘aqui, a umas quadras, vai jogar Ermindo Onega’. Eu tinha 16 anos, estava namorando com Claudia [Villafañe, futura esposa]. Fui vê-lo e era tão distinto Ermindo, jogando, tocando, pegando na bola. Eu dizia: ‘veja que diferença, como gostaria de ser como Ermindo!’. Terminou o jogo e me aproximei para cumprimenta-lo” (Diego Maradona, em 2007)

Até 1978, a grande conquista internacional da Argentina não era seu primeiro lugar em número de títulos na Copa América e sim a obtenção da Copa das Nações, torneio que os então bi mundiais organizaram em 1964 para os 50 anos da seleção brasileira. A Albiceleste aplicou um sonoro 3-0 nos canarinhos. Roberto Telch fez os dois últimos gols, mas a imagem que simbolizou o triunfo foi a de Ermindo Ángel Onega abrindo os braços e soltando o grito ao comemorar o seu, o primeiro. E, tal como Rivellino no Corinthians, o troféu pelo país não o isentava de cornetas internas e uma saída conturbada do clube que amava, como símbolo involuntário do maior jejum – os longos dezoito anos que o River viveu entre 1957 e 1975. El Ronco faria hoje 80 anos.

“O jogador com quem quis me parecer sempre foi Ermindo Onega” (Osvaldo Ardiles, em 2010)

Fanático pelo River a ponto de levar consigo o escudo do clube em plena primeira comunhão, Onega nasceu em Las Parejas, interior santefesino, iniciando-se na equipe local do Sportivo Las Parejas. Calhou de ser descoberto por um olheiro do River, de sobrenome Pezzuti, que se alternava entre sua fábrica de móveis em Rosario com a busca de jovens talentos pelo interior da província. Ao vê-lo, o recomendou a Renato Cesarini, senhor de olho clínico – Cesarini havia montado a célebre La Máquina riverplatense dos anos 40 e àquela altura era o encarregado de dirigir as categorias de base millonarias. A indicação foi aprovada de imediato e logo incorporada na virada de 1956 para 1957 pelos juvenis do Millo.

Depois de Maradona, foi o melhor. Completíssimo. Era moderno em 1963“(Roberto Perfumo, em 2003)

O River havia acabado de negociar sua grande revelação da época, o jovem Omar Sívori, para a Juventus – e o próprio Cesarini também rumaria ao time de Turim. Onega logo foi visto na base como o potencial sucessor daquele craque; após um único jogo pelo sub-15, já foi colocado no sub-20, conciliando-o com o sub-16, onde foi o goleador do campeonato próprio dessa categoria. Então, na rodada final do certame de 1957, ele foi utilizado oficialmente pela primeira vez no time adulto, na lacuna deixada pela suspensão da lenda Ángel Labruna. Desse modo, estatisticamente, Onega é formalmente considerado um atleta campeão pelo River, o vencedor daquele ano no campeonato. Só que àquela altura o Millo já havia garantido matematicamente o título. E tampouco o jogo terminou festivo, com a goleada por 5-1 do San Lorenzo.

No River, foi oficialmente campeão argentino uma vez, mas só jogou após o título estar matematicamente confirmado

Numa manhã, eu estava lesionado, ou gripado… não sei, por algum motivo fiquei na cama, e vejo minha mulher entrar com o café da manhã e o jornal. Não gostei de sua cara, logo deu meia volta e saiu. Abro a página de esportes e leio uma notícia: morreu Ermindo Onega. Meus olhos se encheram de lágrimas. Fomos companheiros no Peñarol, pouco tempo, mas o suficiente para conhecê-lo e virarmos muito amigos. Ermindo caiu muito bem no Peñarol porque estava feito da mesma pasta que o resto do plantel: era um homem direito” (Elías Figueroa, em 1981)

Ele voltou a ser usado oficialmente pelo time adulto na 7ª rodada da Copa Suécia, em junho de 1958 – retratada justamente ontem, ela foi um torneio-tampão para manter os clubes em atividade de abril ao fim de junho, com a liga suspensa em consideração aos desfalques dos times para a seleção na Copa do Mundo realizada no país nórdico. Base natural da seleção após ser tri seguido de 1955 a 1957 (o primeiro dos três tris millonarios), o River era a equipe mais desfalcada, sem oito titulares que incluíam o machucado ponta Roberto Zárate, cortado da convocação pela lesão. O Gimnasia aproveitou e venceu por 2-1. El Ronco foi novamente acionado na 11ª rodada e marcou seu primeiro gol oficial pela equipe principal, mas sem evitar novo revés para o San Lorenzo, por 3-1. A liga foi retomada em julho a partir da quarta rodada, e na sétima a promessa reestreou no campeonato argentino, em derrota fora de casa por 3-2 para o Rosario Central.

O melhor jogador que vi? Pois isso tem resposta imediata… Pelé, não há outro Pelé. Esse é um fenômeno! Agora, de vocês, gostei muito de Ermindo Onega. Bom jogador!” (Alberto Spencer, em 1966)

Os primeiros gols na liga viriam na mesma Rosario, no minuto 14 e no 71 de um 4-3 sobre o Central Córdoba. Ainda meia-direita, foi deslocado para ser centroavante e rendeu: foi o artilheiro do elenco, com 15 gols, incluindo em cada encontro com o campeão Racing (derrota de 3-2 e vitória de 2-0), um em seu primeiro Superclásico (2-2), outro no Independiente (1-1 fora de casa) e uma primeira tripleta no reencontro com o Central Córdoba (5-2). O clube, porém, passou longe da conquista; base da seleção eliminada de forma vergonhosa no Mundial, o time foi bastante afetado, chegando a perder invencibilidade de três anos no Monumental já na retomada pós-Copa da liga – quando levou de 4-2 do San Lorenzo. Baque que seguiu forte para 1959: 12º no primeiro turno, o Millo pôde terminar em 7º, ainda assim sua pior colocação no profissionalismo, caindo nos dois Superclásicos; um deles, por 5-1.

A imagem que tenho de minha infância é a de Ermindo Onega” (Jorge Valdano, em 1999)

O declínio e a melhora do River estiveram diretamente atreladas ao jovem: ele pouco atuou no primeiro turno, se firmando a partir do segundo – quando foi então deslocado para a meia-esquerda, a posição que mais lhe agradava. Seus seis gols vieram todos no segundo turno e o clube decidiu investir em mais um Onega: naquele ano, seu irmão Daniel chegou aos juvenis. Reconhecimento que também se estendeu à seleção – em 25 de fevereiro de 1960, ele fez sua estreia pela Albiceleste. Foi em amistoso não-oficial no campo do Huracán contra o Atlético Tucumán, campeão no mês anterior da Copa da República. Era um 2-2 preparatório para o Torneio Pan-Americano, que não deve ser confundido com os Jogos Pan-Americanos; foi uma tentativa de Copa América “total”, unindo seleções da Conmebol de da Concacaf, mas que foi descontinuada após aquela terceira e última edição.

Luis Artime foi seu colega no River e na seleção antes de ser adversário por Independiente e Nacional. Fundaram outro clube juntos e hoje Artime é sócio do irmão Daniel Onega em loja esportiva

Onega fez ali seus quatro primeiros jogos oficiais: 0-0 e 2-0 (marcando seu primeiro gol) na anfitriã Costa Rica, 2-0 no México e derrota de 1-0 para o Brasil, que não impediu título da Argentina. Título que, por outro lado, reforçava a pressão sob seus ombros em Núñez em um momento conturbado, com diversas figuras históricas (e envelhecidas) dos bons tempos sendo negociadas: “primeiro [Eliseo] Prado e [Néstor] Rossi, depois Labruna e Alfredo Pérez, a coluna vertebral do grande conjunto foi se desmantelando. Ficou o Beto Menéndez, ainda imaturo para assumir a responsabilidade de ser o condutor. E Onega como uma tocha de esperança. Mas já não havia equipe. Não havia arquitetos no River; predominavam os pedreiros”, analisou certa vez a revista El Gráfico, citando ao menos cinco jogadores que o clube enviara à Copa de 1958. A nota continha essa lamentação de Onega: “um ano mais entre Prado e Labruna com o respaldo de Néstor Rossi era o que eu precisava para me criar no futebol de primeira divisão”.

De fato, o River começou mal o campeonato de 1960. Na rodada final alcançou o vice-campeonato por conta de uma grande recuperação no segundo turno, onde Onega anotou duas vezes em um 3-0 no campeão Independiente e outro no 5-1 sobre o time que realmente competiu com o Rojo pela taça, o Argentinos Jrs. Mas ascensão veio mais na base do pragmatismo do que com um futebol vistoso. Em prol do fútbol espetáculo, presidente do River e também seu par no Boca (em jejum desde 1954) encheram seus times de estrangeiros em 1961. A dupla chegou a tentar forçar um torneio de só 12 clubes para terem mais espaço para excursões no exterior, no que foram rechaçados. Na primeira rodada, Onega marcou quatro vezes em um 5-2 no Lanús, que não impediram de se alternar nos titulares com o brasileiro Delém e o espanhol Pepillo.

A falta de titularidade absoluta não o afastou inicialmente da seleção; ele somou três partidas entre maio e junho pela Argentina, todas fora de casa: 0-0 com o Paraguai, derrota de 4-1 para a Itália e empate não-oficial de 1-1 com a Internazionale. Mas resmungava em meio ao terceiro lugar em 1961: “toleram tudo do jogador de fora e o aguentam por uma temporada inteira ainda jogando mal. Precisam que justificar o investimento. Ao jogador da casa, não o aguentam nem o esperam. Não lhe perdoam a menor falha”. Ele acabou não lembrado para as eliminatórias à Copa do Mundo. No início de 1962, em 6 de fevereiro, teve uma grande oportunidade para chamar atenção e aproveitou bem: recebeu de Martín Pando, livrou-se do marcador e cravou longe do alcance de Laércio aos 15 minutos. Aos 25, retribuiu, dando assistência a Pando. Décio até descontou, mas o River bateu por 2-1 o mesmo Santos de Pelé que no decorrer do ano levantaria a Libertadores.

Mas o feito não bastou para que El Ronco fosse lembrado ao Chile. E nem que Onega fosse mais usado no clube: só registrou dois gols no campeonato porque foi rebaixado internamente para o time B do Millo, onde já pôde atuar com o irmão Daniel no campeonato da categoria. De longe, viu os colegas vivenciarem um vice traumático – o Boca finalizou seu jejum de oito anos praticamente no Superclásico da penúltima rodada, onde ambos chegaram igualados na liderança, com os auriazuis segurando o triunfo de 1-0 graças a um pênalti que os rivais perderam aos 40 do segundo tempo. A reação em 1963 foi recolocar Onega no time (ainda que deslocado à ponta-direita) e ganhar os seis primeiros jogos. Além de deixar 13 gols, municiou muitos para o superartilheiro Luis Artime. Parceria que soou como música na 5ª rodada, onde o Racing vencia até os 20 minutos finais. Período que bastou para Ermindo diminuir de pênalti e Artime anotar os três da virada para 4-2; o do 3-2, a partir de assistência do colega.

Argentina no Maracanã antes de enfrentar a Inglaterra na Copa das Nações: Antonio Rattín, José Ramos Delgado, Amadeo Carrizo, Abel Vieytez, Miguel Vidal, Carmelo Simeone; Ermindo Onega, Alberto Rendo, Pedro Prospitti, Alfredo Rojas e Roberto Telch.

O River terminou líder do primeiro turno e, nesse embalo, Onega voltou à seleção após mais de dois anos – já em outubro, anotando um gol em 4-0 sobre o Paraguai dentro de Assunção pelo troféu binacional Copa Chevallier Boutell. A Albirroja até venceria em Buenos Aires na volta por 3-2, sem levar o troféu. Mas se em 1962 o time só chegou à liderança na 26ª rodada, a partir de 1963 iniciaria um costume nada sadio de começar arrebentando para se entregar na reta final. Foi igualado pelo Independiente ao perder o duelo direto na antepenúltima rodada por 2-1 (o gol millonario foi de Onega) e ultrapassado na penúltima ao cair em casa justamente para um Boca sem chances de taça, mas sedento para atrapalhar. O Rojo terminou campeão. Agruras em Núñez, melhor sorte em Ezeiza: a Argentina foi convidada em cima da hora para substituir a Alemanha Ocidental para a Copa das Nações, organizada na virada de maio para junho de 1964 pela CBD.

Criticado no 2-0 contra Portugal, Onega tocou suavemente na saída de Gilmar para abrir o placar em um categórico 3-0 sobre o Brasil no Pacaembu: “foi uma das grandes emoções da minha vida. 3-0 no Brasil, lá. Foi para trás, toquei tabela com [Pedro] Prospitti, entrei só na área e quando Gilmar fechava toquei com a direita no poste esquerdo. Saí correndo como um louco e parei em seguida. Havia um silêncio impressionante e acreditei que o haviam anulado. O banco argentino saltava de alegria, mas não se escutava uma voz. Quando vi que o árbitro dava volta para o meio-campo, fui me abraçar com todos”, descreveu. Carrizo, por sua vez amado no River e criticado pela Argentina, em função da goleada de 6-1 sofrida no Mundial de 1958, redimiu-se pegando um pênalti de Gérson; Pelé se descontrolou, quebrando o nariz do marcador José Mesiano – cujo substituto, Telch, mostrou-se como o iluminado a marcar os dois gols seguintes. A inesperada conquista argentina se confirmou com o 1-0 sobre a Inglaterra no Maracanã.

Em julho, Onega foi protagonista de massacre ainda maior, agora pelo River, a vencer por 5-1 com dois gols dele um amistoso contra o Barcelona. Ele voltou à meia-esquerda e anotou 14 gols, mas no campeonato o time não deu liga, em um terceiro lugar longe de disputar seriamente a taça. Como se não bastasse, o Boca a garantiu em pleno Superclásico na penúltima rodada – graças àquele Beto Menéndez que, outrora ídolo millonario nos anos 50, servia o rival desde 1962 e anotou o gol do empate suficiente para o título auriazul. Mas Onega seguiu sorrindo na seleção, a levantar outras taças contra vizinhos: na virada de setembro para outubro, pelo troféu binacional Copa Carlos Dittborn, a Albiceleste aplicou um 5-0 no Chile com gol de Ermindo. De novembro para dezembro, ela recuperou-se de um 3-0 do Paraguai em Assunção com um inapelável 8-1 na volta em Buenos Aires por nova Copa Chevallier Boutell, com Ermindo anotando dois.

Para 1965, a grande contratação millonaria foi o regresso de Renato Cesarini. Onega superou até mesmo um sério traumatismo craniano sofrido em janeiro de 1965 (contra o Colo-Colo por um hexagonal amistoso, chegando a ter a vida em risco). Voltou depois de um mês e meio a treinar, tendo de aguentar um zumbido no ouvido esquerdo por mais dois. Em julho, já estava novamente a serviço da seleção, erguendo nova Copa Carlos Dittborn contra o Chile (1-0 em casa e 1-1 em Santiago). Depois, foi figura importante nas eliminatórias, com um gol no 3-0 sobre o Paraguai e dois em 4-1 na Bolívia, participando ainda do 2-1 nos bolivianos na ocasião da primeira derrota de La Verde dentro de La Paz para a Argentina. Seu River, em paralelo, encerrava o primeiro turno na liderança com quatro pontos de vantagem para o Vélez e o próprio Boca, quando vitórias valiam dois.

Com o irmão Daniel Onega, jogou junto também na seleção. Mas, apesar da imagem, nunca puderam saborear títulos oficiais pelo River

Mas outra vez sobreveio declínio na reta final. Outra vez com derrota para o Boca. Outra vez com Menéndez de carrasco: o antigo ídolo anotou o gol da virada por 2-1 na antepenúltima rodada, que permitiu aos xeneizes ultrapassarem o Millo. O rival manteve a vantagem e sagrou-se campeão. A Ermindo, restou o consolo de vazar Lev Yashin em um 1-1 com a URSS em dezembro. E a enfim ganhar a companhia do irmão Daniel Onega no time principal: o caçula estreou entre os adultos em amistosos naquele ano e ganharia em 1966 as primeiras chances oficiais. Naquele ano, a Libertadores, iniciada em fevereiro, pela primeira vez admitiu livremente também os vice-campeões nacionais. Daniel Onega explodiu desde o início, com dois gols já na estreia contra o Deportivo Lara. O irmão marcaria 17 gols, até hoje a maior artilharia individual em uma única edição no torneio. Na campanha, o River enfim sorriu diante do Boca, superado na fase de grupos e no quadrangular-semifinal, onde o bi seguido Independiente foi destronado.

Em maio, veio a decisão com o Peñarol, que venceu por 2-0 em Montevidéu e teve o título na mão no Monumental. Ermindo não deixou: seus dois únicos gols na campanha vieram no movimento triunfo de 3-2, onde os uruguaios estiveram duas vezes à frente do placar; o segundo e da virada, já aos 28 do segundo tempo, forçou pelo regulamento da época um terceiro jogo. A história que se seguiu é conhecida: na neutra Santiago, o irmão Daniel abriu o placar aos 37 minutos e Jorge Solari ampliou aos 42. Mas os aurinegros alcançaram o empate no segundo tempo e viraram para 4-2 no tempo extra. Novo título ganho perdido, que originou o apelido pejorativo de gallinas para os riverplatenses. Para Ermindo, o consolo estava à vista: a grande fase do irmão Daniel juntou-os na seleção em junho. Atuaram lado a lado pela Albiceleste no triunfo de 2-0 sobre o Cagliari, no 1-1 com a Polônia e, já na Europa, estiveram no 2-0 sobre o combinado de Copenhague (onde um substituiu o outro, com Ermindo entrando no decorrer do jogo para marcar o segundo gol) e na derrota de 3-0 para a Itália.

Apesar da artilharia recordista na Libertadores, Daniel não correspondeu, sem qualquer gol, e terminou cortado da lista final. Ermindo seguiu. E tranquilizou os nervosos colegas na estreia a partir de um drible no tão afamado Luis Suárez da favorita Espanha – e, sobretudo, ao fornecer o cruzamento que virou assistência na conclusão do goleador Luis Artime no lance do segundo gol no 2-1; em resposta, Helmut Schön ordenou que Franz Beckenbauer abortasse a armação de jogadas para se dedicar apenas a marca-lo na segunda partida. E os dois gênios se anularam. A Argentina simplesmente não avançava da fase de grupos desde a Copa de 1930, afastando esse fantasma em outra grande exibição de Onega: marcou um golaço no 2-0 no ferrolho suíço a 9 minutos do fim, encobrindo com um toque sutil a saída do goleiro helvético na bola lançada por Artime à grande área. Visto como um dos melhores da Copa e como condutor da Argentina, Onega tinha suas jogadas descritas como “pinceladas”.

Só um cuspe em um oficial britânico e uma tentativa de agredir o árbitro alemão-oriental na controversa eliminação contra a anfitriã Inglaterra teriam impedido-no de ser escalado para o time ideal do torneio. A FIFA também o puniu por três jogos internacionais. Ficou o reconhecimento do brutamontes inglês Nobby Stiles, ao ser indagado em 1968 pela El Gráfico (quando visitou a Argentina a serviço do seu Manchester United para enfrentar o Estudiantes pelo Mundial Interclubes) sobre qual foi o adversário que mais apreciara naquele embate: “Oniiiga” foi a resposta em pronúncia à inglesa. No retorno ao campeonato argentino, El Ronco foi novamente vice-campeão, mas sem que o Racing abrisse disputa séria pelo título. La Academia emendou ali 39 jogos seguidamente invicta, recorde que durou até 1999 e encerrado justamente em embate direto onde o Ermindo forneceu a assistência para o primeiro gol dos 2-0. A outra alegria, ainda na quarta rodada, foi anotar o terceiro gol de um 3-1 que significou a primeira vitória sobre o Boca na Bombonera em onze anos, que seria maior se ele não errasse um pênalti.

Duas imagens contra a Suíça na Copa de 1966 – a da direita, o lance do seu golaço sobre o ferrolho

A suspensão da FIFA privou-o de tomar parte na Copa América travada em janeiro de 1967, ano em que o calendário argentino se dividiu em dois campeonatos, Metropolitano e Nacional. Em nenhum o River beliscou a taça e sim na Libertadores, com o Racing voltando a prevalecer, agora nas semifinais. Ermindo ainda pôde fazer suas últimas aparições pela seleção, a partir de outubro – nas únicas vezes em que vestiu a braçadeira de capitão: 1-1 com o Paraguai em Assunção, um 6-1 não oficial sobre a liga de Posadas, derrota de 3-1 para o Chile em Santiago e 4-0 não-oficial sobre a liga de Comodoro Rivadavia. Oficialmente, foram 30 jogos e onze gols pela Argentina. Em 1968, quem seguiu na seleção foi o irmão Daniel, a despeito da boa fase de Ermindo. Além de municiar o caçula, fez doze gols e o River esteve no páreo pelos dois torneios: foi semifinalista do Metropolitano, com Ermindo anotando o gol de honra no jogo único contra o campeão San Lorenzo (3-1).

Mais duro foi no Nacional: o time de Núñez chegou à rodada final do Nacional com a necessidade de vencer o duelo direto com o Racing em Avellaneda para ser campeão. O irmão Daniel marcou um e Ermindo chegou a cobrar uma falta onde a bola bateu nas duas traves antes de ser agarrada por Agustín Cejas. O empate não favoreceu ninguém: o Vélez venceu seu jogo e se igualou aos dois gigantes, forçando um triangular-final em turno único no campo neutro do San Lorenzo. Ali, o River enfim venceu o Racing por 2-0 e se sagraria campeão contra o Vélez se a conclusão de Jorge Recio aos 37 do segundo tempo não fosse afastada pela mão do lateral velezano Luis Gallo, em irregularidade não punida pela arbitragem. Ficou no 1-1 após o millonario Luis Cubilla ainda acertar o travessão nos descontos. Não era mesmo para ser: folgando na rodada final, o time de Núñez se resignou em ver La V Azulada pela primeira vez campeã da elite graças à quantidade de gols marcados ao triunfar por 4-2 no Racing.

Desde muito antes daquela milésima decepção, as tribunas do Monumental já se dividiam entre “oneguistas”, que viam em Ermindo como o mais talentoso jogador do clube, e os “anti-oneguistas”, que o viam como o câncer do River. Cobrado para ser sempre nota 10 e o Superman a cada domingo, viu o próprio Labruna lamentar publicamente que via em Ermindo um jogador fenomenal, mas sem garra o suficiente. O meia replicara: “estou disposto a realizar qualquer trabalho em favor da equipe. Mas preciso saber se esse trabalho será útil. Não gosto de correr por correr. Muitas vezes, poderia fazer isso para o público acreditar que ‘sinto mais a partida’, correndo por todos os lados. Mas isso seria mentir à arquibancada. E eu jogo por minha verdade, não por uma mentira”. Ermindo deixou o clube em princípios de 1969 com pouco mais de 200 jogos e uma contagem de gols que varia entre 97 e cem cravados. Chegava a ter mais apoiadores genuínos em seus próprios rivais:

Ermindo Onega foi um craque. Vês essa foto? No campo do Estudiantes, os próprios torcedores do River o insultavam e nela estou lhe dizendo: ‘Ronco, não lhes dê bola, você sabe jogar o futebol’. Um jogadoraço espetacular” (Raúl Madero – capitão do Estudiantes multicampeão da Libertadores e depois médico da seleção campeã de 1986 -, em 2015)

Artime corre à esquerda, Ermindo e Perfumo encaram como predadores o árbitro (cuja careca encobre Rattín) contra a Inglaterra: a polêmica contra os anfitriões impediu que Onega estivesse no time ideal da Copa de 1966

Em 1984, ele foi relembrado pela El Gráfico sob os dizeres “foi o indiscutível discutível do futebol argentino. Indiscutível para os de dentro. Os que vivem e sentem o futebol com cheiro de vestiário, mesa de massagens, grama cortada na mesma manhã da partida. Discutível para os torcedores, para quem assiste futebol com paixão, com sede de vitória a qualquer preço, vivendo-o com os sentidos mas não com o intelecto”. A nota, além daquele depoimento de Nobby Stiles, continha a seguinte declaração de Antonio Rattín, tantas vezes adversário pelo Boca e o capitão que motivou a polêmica reação dos hermanos em 1966 ao ser injustamente expulso pela arbitragem: “precisamos acreditar mais em nós mesmos, no que temos, no que somos capazes de fazer. Por exemplo: aqui se pensa que Ermindo Onega é frio, que não vive o jogo. A mim não me interessa Ermindo caliente. Me basta e me sobra com Ermindo tímido. Não já jogador como ele”. El Rata reforçou sua admiração em outro momento, nas lacônicas palavras abaixo:

Um jogadoraço da puta que pariu” (Antonio Rattín, em 2013)

Ermindo atravessou o Rio da Prata para reforçar o Peñarol em 1969, o que na época significava abdicar da seleção, que não chamava quem atuasse no exterior por mais que se destacasse. E Onega teve bastante destaque no Uruguai, embora até naquele gigante calhasse de pegar a entressafra. Eliminado da Libertadores, com seis gols do argentino, e vice para o Nacional na liga uruguaia, os aurinegros (treinados pelo brasileiro Osvaldo Brandão) até faturaram em 1969 a Supercopa de Campeões Mundiais. A descontinuação desse torneio o tornou esquecido, mas a taça foi bastante prestigiada na época e Onega marcou no triunfo por 2-1 sobre o Santos de Pelé, sendo também o vice-goleador do elenco na temporada: 27 gols, abaixo só dos 36 de Pedro Rocha. Em 1970, Brandão limpou os veteranos astros Julio Abbadie e Juan Joya em prol de gente nova. Chegou-se à final da Libertadores após quatro anos, com Onega anotando sete vezes, mas o Estudiantes prevaleceu pela terceira vez seguida

Jogava a um ou dois toques, cabeceava muito bem. Por acaso não transmitia muito por um problema de personalidade. Na seleção foi um fenômeno, por isso penso que, se nas demais equipes em que jogou tivesse encontrado a compensação que precisava, teria se convertido em um fora de série. Era preciso defender Ermindo, cuida-lo, apoia-lo. Quando o fizeram sentir isso, na seleção, se transformou no capo da equipe” (outra vez Roberto Perfumo, em 1995)

A derrota na final continental veio ainda no fim de maio de 1970 e o desmanche veio forte: Brandão voltou ao Brasil, destino também de Pedro Rocha e lenda Néstor Gonçalves (recordista de jogos e títulos pelos carboneros) pendurou as chuteiras em novembro. O Nacional, que havia contratado o velho parceiro Artime, foi novamente campeão com uruguaio em 1970. E em fevereiro de 1971, foi a vez do goleador-mor da Libertadores, Alberto Spencer, pedir passe livre – ainda que o prognóstico fosse promissor naquele mês: com gols de Onega aos 5 minutos do primeiro tempo, o Peñarol teve uma de suas mais recordadas vitórias no Superclásico, na pré-temporada, pela Copa Montevidéu. Foi o “clássico da segunda fuga” do Nacional (a “primeira” deu-se na célebre campanha da “Esquadrilha da Morte” de 1949, natural base do Maracanaço).

Seus outros clubes argentinos: o Vélez, onde teve parceria digna com Carlos Bianchi, e o Renato Cesarini, onde disputou a liga provincial rosarina

Ensandecido, o rival fraturou o reforço iugoslavo Ilija Petković (o mesmo técnico que barrou o xará “carioca” de ir à Copa de 2006) ainda aos 33 do primeiro tempo, gerando briga campal a render as expulsões do aurinegro Alfredo Lamas e do tricolor Atilio Ancheta aos 35, seguidos aos 43 pelo tricolor Ildo Maneiro. Já no início do segundo tempo o Nacional perdeu Juan Mujica e Julio Montero Castillo para o chuveiro. Aos 9, o argentino Raúl Castronovo então ampliou para 2-0. Reduzidos a sete homens, os rivais, para evitar uma goleada, forçaram então o fim do jogo: no minuto seguinte, o zagueiro Juan Carlos Blanco tentou forçar a própria expulsão e, ao não ser “atendido”, fez-se de lesionado para obrigar a partida a ser suspensa. Mas na Libertadores a outrora potência da década anterior caiu ainda na fase de grupos e viu o Nacional ser, pela primeira vez, campeão. Nacional que levantaria uma tríplice coroa com a liga uruguaia e o Mundial Interclubes. E tome mais desmanche, com Héctor Silva e Ladislao Mazurkiewicz rumando ambos ao futebol brasileiro… a declaração abaixo já é do próprio Onega:

Eu sempre cheguei tarde. Cheguei ao River quando tinha 17 anos, com idade de quinta categoria juvenil. E apareci jogando no time B. Me esperavam como o sucessor de Sívori, no mesmo ano em que foi à Itália. 1957 foi o último grande momento do River com aquelas grandes figuras que eram Labruna, [Félix] Loustau, Pipo [Néstor]Rossi, Federico Vairo… ao lado dessa gente, qualquer garoto com ganas e condições, como era eu quando vim de Las Parejas, podia caminhar com os olhos fechados. Mas já estavam partindo. Tivemos nós que lidar, e sempre se faz necessário ter algum homem de experiência ao lado, sobretudo para não enlouquecer, aguentar e reagir quando vem a hora ruim… depois vieram estrangeiros, com os quais fazia ser muito difícil jogar. O melhor de todos, que era o peruano Joya, largaram em seu melhor momento, o venderam em seguida ao Peñarol. Ali deixou uma lembrança inapagável. E quando passei eu ao Peñarol, despareceram os homens fundamentais, como mesmo Joya. Também ao Peñarol eu havia chegado tarde”.

Ele acertou com o Vélez para 1972. O Fortín vinha de um campeonato quase ganho em 1971 e manteve boa fase, com o 5º lugar no Metropolitano (a um ponto do pódio) e o 4º geral no Nacional. Municiando o superartilheiro Carlos Bianchi, El Ronco atuou 29 vezes e marcou seis, um deles no próprio River – em derrota de 5-3 no Monumental. Onega deixou uma grata recordação no bairro de Liniers, mas optou por não seguir; em 1973 e 1974, só manteve a forma em amistosos, sem vincular-se oficialmente a nenhum clube. Em 1975, criou em Rosario com os velhos parceiros Artime, Jorge Solari e Daniel Onega o clube Renato Cesarini, em homenagem ao sábio que tanto lhe bancara desde os juvenis no River. Embora dedicado a formar jovens (como Santiago Solari, sobrinho de Jorge, e Javier Mascherano), o time chegou a ser representado por uma equipe adulta nos Torneios Nacionais, após credenciar-se na liga municipal rosarina mesmo com um time de veteranos que incluía ainda o goleiro Edgardo Andrada.

Em paralelo aos primórdios do Renato Cesarini, Onega retomou a carreira por dois anos no Chile, defendendo o La Serena entre 1975 e 1976. Enquanto se relançava no La Serena, o River enfim finalizou seu jejum no Metropolitano de 1975 para logo tomar de assalto o campeonato argentino na metade final da década. Ganhou também o Nacional em 1975, foi vice da Libertadores e do Nacional em 1976, venceu o Metropolitano de 1977 e novamente em 1979. Em 23 de dezembro daquele ano, o Millo, tal como em 1975, conquistou a dobradinha ao sagrar-se vencedor também do Nacional. Mas sob luto desde a antevéspera. No quilômetro 100 da Rota Nacional 9, perto da cidade de Zárate, Ermindo fez uma manobra brusca em seu Ford Taunus para evitar que ele, a esposa, uma filha e o irmão Daniel se chocassem com um veículo vindo na contramão. Mas acabou capotando seriamente. Naquele 21 de dezembro de 1979, os familiares puderam sobreviver. Ele morreu a caminho do hospital local.

https://twitter.com/afa/status/1208220546707705858

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

2 thoughts on “Quando a Argentina pôde ser campeã no Brasil: vida e obra de Ermindo Onega

  • Daniel Lima

    Que belo texto, agora conheço melhor a história desse grande craque.

  • Lucas

    Muy buena crónica se entiende bien con el traductor de google, el ronco un crack total. Abrazo riverplatense.

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