Especiais

100 anos da 1ª taça do Racing, nova era que “argentinizou” o campeonato

1913
Ohaco e Olazar, que se revezavam na capitania do Racing. Jogaram todo o hepta

Há exatamente um século, o Racing era campeão argentino pela primeira vez, o que por si só já seria histórico. Mas o título teve muito mais simbolismos. Foi o primeiro de sete seguidos que o clube conseguiria, ainda um recorde seu; foi o primeiro de um dos “cinco grandes”, grupelho que formaria com o rival Independiente, Boca, River e San Lorenzo; e, talvez o detalhe mais lembrado: abriu uma nova era no futebol nacional, pois até então só clubes oriundos da comunidade britânica, em 20 anos de disputas, haviam sido campeões: St. Andrew’s, Lomas Athletic, Belgrano Athletic, Alumni, Porteño.

A rigor, o Racing não teria sido o primeiro campeão “nativo”: uma semana antes, em 21 de dezembro, um campeonato com clubes dissidentes, onde estava o Independiente, foi vencido pelo Estudiantes. Mas a taça do Racing simbolizou mais. Desde o uniforme “argentino” do time, trajado nas cores da bandeira, até o hepta enterrar quaisquer dúvidas que o football, com seus chutões, chuveirinhos e lentidão, passava a ser fútbol, com destreza, habilidade e alguma malandragem latina.

A inspiração para o uniforme veio em 1910. Era o ano do centenário da Revolução de Maio, movimento que desencadeou a independência. Ainda na segundona, o Racing passou a usar as cores da bandeira e enfim conseguiu sobre o Boca um título que insistia em escapar: chegara perto em 1908, perdendo para o River (contamos ontem: clique aqui) e em 1909, para o Gimnasia y Esgrima de Buenos Aires.

Estrelas da companhia

O campeão colhia frutos de inovações para a época, como concentração dos jogadores, em cômodos anexos ao estádio, e treinos como aquecimento. É o que diz o livro Racing, de 1966. Também havia uma preocupação com a preparação física, tarefa dada a Modesto Alvear – normalmente referido como técnico do elenco, embora os próprios jogadores na prática é que definissem escalação e tática, limitando Alvear a um voto de Minerva nesse aspecto, quando necessário. Nesse aspecto, o principal líder era o capitão Juan Ohaco, filho de outro Juan Ohaco, homem que havia oferecido dez anos antes instalações para o clube formar seu campo, na época da fundação. E irmão mais velho do principal craque: Alberto Bernardino Ohaco, autor, inclusive, dos gols do jogo do título. A taça, na época, também serviu para isso: celebrar os dez anos de vida do Racing, nascido em 1903.

Aos 24 anos, Alberto Ohaco já era um “veterano”, pois estava na final da segunda divisão perdida para o River em 1908 – e jogaria pelo time até 1924. Esteve em todo o hepta e também na oitava taça, em 1921. Dos campeonatos argentinos vencidos pelo Racing no amadorismo, só não jogou o de 1925. Foi ainda o primeiro racinguista na seleção, desde 1912 e é o maior artilheiro da instituição, com 202 gols. Por sinal, foi artilheiro dos campeonatos de 1912, 1913, 1914 e 1915. Só Maradona conseguiu cinco artilharias.

O segundo maior artilheiro do clube também estava lá: apesar de gordinho, Alberto Marcovecchio fez 187 gols, sete deles em um único jogo naquele 1913, contra o Unión (pela Copa Competencia, precursora da Copa Argentina). Jogou de 1912-22 pelo clube, ganhou vinte troféus por ele, entre copas da época e campeonatos argentinos: é o racinguista mais vezes campeão juntamente do zagueiro Armando Reyes, que entrou naquele ano no time e ficou até 1923. Durante a era amadora (até 1931), foi ele o jogador do Racing mais vezes usado pela seleção, vinte.

Outros campeões também foram marcados por trajetórias largas e vitoriosas: o ponta-esquerda Juan Perinetti defendeu a equipe de 1908 a 1920 e, embora fundador do sumido Talleres de Remedios de Escalada (clube tradicional na época e rival original do Lanús), era tão apaixonado pelo Racing que, mesmo com o time perdendo raras vezes, chorava quando isso acontecia, daí seu apelido de El Llorón. Já Francisco Olazar é descrito como o melhor volante que o Racing já teve (tinha bom cabeceio e chute de longa distância) e o primeiro grande capitão dele. Como El Negro Reyes, ficou de 1913-23.

O atacante Juan Hospital, autor do gol da única derrota racinguista no título da segundona em 1910, se apaixonou pelo algoz e solicitou jogar nele. Ficou de 1912-22. O goleiro Carlos Muttoni faria travessia inversa: ao pedir à tesouraria que lhe comprassem chuteiras novas, foi penalizado como se atentasse contra o amadorismo e dispensado. No ano seguinte, Muttoni jogaria pelo Independiente. Jogador de seleção como os demais mencionados, acabou se tornando o primeiro a defende-la tanto como Blanquiceleste como Rojo (isso se deu no primeiro Brasil-Argentina da história, em 1914).

Só outro (Gabriel Calderón, nos anos 80) conseguiu o mesmo. Mas Muttoni nunca deixou de ser racinguista e até se recusou a enfrenta-lo em 1919, já pelo Sportivo Barracas. O Racing, aliás, proibia em seus estatutos que sócios jogassem contra até equipes que usassem as mesmas cores do clube. Sabe-se ainda que, em tempos da pirâmide invertida em 2-3-5 (ou 2-3-2-3, para ser mais preciso com os posicionamentos) imperando como esquema tático, o Racing já reforçava o meio-campo recuando um dos atacantes em potencial, em inusual formação de 2-4-4.

1913-2
Perinetti, Marcovecchio e Reyes

Um último simbolismo daquele título que completa um século: La Academia, o apelido que mais orgulha o clube, teria surgido naquela campanha, bem antes do hepta se concretizar (depois do hepta, aliás, o máximo que o campeonato argentino já viu foram tricampeonatos seguidos. O primeiro, de 1949-51, foi do Racing). O livro La historia del primer más grande afirma que a revista La Verdad assim escreveu em 1913 a respeito da equipe: “seus jogadores mostraram uma maestria própria de uma Academia”. Ainda que tenha sido em referência a um jogo do torneio sub-17, quando os juvenis aplicaram um 7-2 no Boca, em 27 de abril. Ironicamente, somente um dos garotos acabaria aproveitado futuramente no time adulto, Juan Barreto.

Resumo breve do campeonato

O campeonato de 1913 teve uma fórmula um tanto amalucada em vez dos sóbrios pontos corridos. Isso porque o número saltou de 6 clubes para 15, em manobra da Associação Argentina de Football de estancar a ida de clubes para o órgão do campeonato dissidente, o da Federação Argentina de Football, criada no ano anterior em processo que já explicamos: clique aqui. Os novos clubes vinham das divisões inferiores. Foi com essa canetada que o Boca, então na segundona, chegou à elite: clique aqui.

O torneio se iniciou em 13 de abril e, à altura de outubro (um mês castigado por fortes chuvas primaveris que chegaram a causar inundações e estas, mortes, além de gramados estragados), nada de começar o segundo turno. Em 8 de outubro, deliberou-se uma saída para acelerar o calendário: alterar a fórmula com o torneio já em andamento, abrindo-se mão de um segundo turno propriamente dito, isto é, com os jogos de volta em relação aos do primeiro turno. Os quinze participantes foram divididos em três grupos (embora a pontuação até então acumulada se preservasse para o restante do torneio), mas não de forma exatamente salomônica; os quatro times já sem chances de título ficaram na chamada “zona C”, apenas para brigarem contra o rebaixamento.

Já as zonas “A” e “B”, por sua vez, reuniriam respectivamente cinco e seis equipes, e seus líderes travariam então uma final pela taça. Descontente com as mudanças, o Belgrano Athletic, um dos últimos bastiões da velha guarda ainda ativos, não aceitou prosseguir no torneio. Com isso, desconsiderando-se a final, os times do grupo A terminariam a temporada com 18 jogos contra 19 do grupo B e 17 do grupo C.

O remendo, ao menos, não mascarou como o torneio vinha se desenrolando: ao fim do primeiro turno, os três melhores foram os que se manteriam até o fim pelo título: Racing, San Isidro e River terminaram empatados na liderança com 24 pontos, cinco à frente do quarto, o Belgrano Athletic. Na segunda fase, Racing (de apenas dois gols sofridos em seus dez jogos fora de casa em todo o torneio, amostra do poderio sobretudo defensivo do campeão) e River ficaram no mesmo grupo e voltaram a empatar na liderança, com 31 pontos, dez à frente do 3º colocado, o Platense.

Por outro lado, volta e meia esses três não desfilavam sua qualidade nos gramados. Parte disso se deve a um efeito dominó: chuvas eram motivos comuns para adiamentos por conta da precariedade dos gramados da época, propiciando que alguns clubes chegassem a ter cinco rodadas disputadas a menos do que outros – e dificultando um acompanhamento acurado do desenrolar da campanha não só entre a imprensa (que, naqueles tempos, não costumava ter setores especializados voltados aos esportes), mas até aos próprios jogadores.

Nisso se desdobrava a um cenário não era raro em que times com rodadas a dever acabassem, quando elas eram enfim reagendadas, adotando o W.O. ao constatar que já não tinham chances de título ainda que vencessem todos os jogos pendentes. O próprio Racing acabaria não atuando no mês de outubro diante dessa desistência dos adversários. Em seu grupo, o San Isidro foi líder isolado com 32, cinco à frente do segundo, o Boca.

Empatados, Racing e River precisaram de um play-off para definir quem pegaria o San Isidro na final. Deu Blanquiceleste, com sobras: 3-0 e vingança assegurada pela polêmica perda de 1908, quando o River foi campeão com um 7-0. Aliás, alguns ex-jogadores do River na decisão de cinco anos antes estariam em campo pelo San Isidro, casos de José Morroni e Elías Fernández, o primeiro riverplatense na seleção.

Hora de detalhar mais a campanha do campeão.

Jogo a jogo até a final

13 de abril: 6-0 no Banfield (em casa, para 7 mil pessoas). O futuro heptacampeão seguido, curiosamente, abriu o placar exatamente aos 7 minutos de jogo. Foi em cabeceio de Marcovecchio sobre um Banfield que exatamente ali estreava na primeira divisão. O adversário até teve chance de empatar, aos 6 minutos do segundo tempo. Mas outro estreante, o goleiro Carlos Muttoni (que já até havia atuado, mas em amistosos de menos de 90 minutos na pré-temporada), pegou o pênalti cobrado pelo banfileño Juan Rhom. A goleada logo se construiu: aos 16 minutos do segundo tempo, foi a vez do Racing ter um pênalti a seu favor, convertido por Alberto Ohaco. Marcovecchio anotou o 3-0 logo aos 20 e, no minuto seguinte, Alberto Ohaco já assinalava 4-0. Aos 28, ele concluiu sua tripleta. Marcovecchio quis o mesmo e fechou o placar aos 38.

20 de abril: 5-0 no Olivos (em casa, para 8 mil pessoas). Jogo resolvido rapidamente com outra equipe estreante na elite: aos 10 minutos, Alberto Ohaco abriu o placar e aos 20, Marcovecchio ampliou – ambas assistências do esforçado Raúl López, que substituía na ponta o nervoso Juan Viazzi, irmão caçula de Pedro Viazzi, um dos fundadores do clube. De cabeça, Perinetti praticamente matou o jogo aos 35. Ele mesmo fez o quarto, aos 5 de um segundo tempo em que os alvicelestes preferiram se poupar para prevenir lesões (algo muito mais comum em tempos de terrenos irregulares, sendo natural um rodízio de jogadores na escalação), acatando conselho dado nesse sentido pelo secretário racinguista (Luis Carbone, homem de quarenta anos dedicados à administração do clube). O quinto gol, vindo da cabeça de Ángel Betúlar, só veio aos 44.

1º de maio: 4-0 no Platense (fora de casa, para 4 mil pessoas). Quase a partida foi adiada pela chuva, postergada até o campo adversário secar um pouco mais diante da falha da drenagem. O Platense sabia jogar naquele barro, a ponto de ser apelidado de Calamar (“lula”) justamente por seus jogadores enlameados parecerem sido atingidos por tinta. A paciência da arbitragem premiou os visitantes, que logo aos 10 minutos abriram o marcador, com Alberto Ohaco. Aos 40, Marcovecchio ampliou. E então vieram dois gols-relâmpago já aos 26 e aos 29 do segundo tempo: o adversário Genaro Barreto fez contra ao tentar salvar arremate de Raúl López e A.B.O. anotou mais um.

1913-01
Ochoa, Muttoni e Reyes; Betúlar, Olázar, Juan Ohaco e Pepe; Viazzi, Alberto Ohaco, Marcovecchio, Hospital e Perinetti

18 de maio: 5-0 no Estudiantil Porteño (em casa, para 7 mil pessoas). Curiosamente, o mandante oficial foi o adversário, que concordou em utilizar o estádio racinguista em troca da renda. Assim, formalmente a goleada saiu a favor do visitante, cujo goleiro Muttoni chegava a brincar que era “quase um desempregado” por não ter que trabalhar. Naquela rodada, Juan Hospital, enfim livre do serviço militar obrigatório, pôde estrear. A tônica de resolver cedo o placar se manteve: Alberto Ohaco abriu o placar aos 7 e aos 30 Marcovecchio ampliou. O 3-0 veio aos 43, com Perinetti. O placar foi alterado somente aos 33 e aos 43 do segundo tempo, em mais dois gols de Marcovecchio. Mas, apesar da campanha irrepreensível, o Racing ainda não era líder, com apenas quatro jogos contra os seis já disputados por San Isidro (cinco vitórias e um empate) e Boca (quatro vitórias, um empate e uma derrota).

25 de maio: 3-0 no Estudiantes de Buenos Aires (em casa, para 10 mil pessoas). Sem Betúlar, que ainda precisava conciliar-se com o serviço militar, o Racing teve vida relativamente mais complicada contra um adversário então renomado na elite. Marcovecchio abriu o placar aos 12, mas os outros gols só vieram a partir dos 28 minutos do segundo tempo – primeiramente, com Hospital, ao passo que Ohaco fechou o marcador aos 36. Entre esse jogo e o próximo é que ocorreu a famosa tarde dos seis gols de Marcovecchio sobre o Unión, duelo travado em 8 de junho pela Copa Competencia.

22 de junho: 4-1 no Belgrano Athletic (em casa, para 11 mil pessoas). O adversário tinha somente um gol a menos do que o Racing no torneio e inspirava receio. O time de Avellaneda não teria o contundido Ricardo Pepe, mas Betúlar estava autorizado por seu sargento a jogar. Os visitantes endureceram na primeira etapa, ainda que Alberto Ohaco abrisse o placar logo aos 3 minutos. No restante, não teve vida fácil diante da cerrada marcação ordenada pelo oponente Santiago Pío Gallino, ex-racinguista que cuidava pessoalmente de Marcovecchio (ciente da dificuldade deste em arrematar de primeira desde a esquerda, normalmente precisando de mais movimentos para dominar a bola por ali) enquanto orientava os colegas como monitorarem A.B.O. Aos 4 minutos do segundo tempo, o Racing sofreu então um primeiro gol no torneio: Horacio Vignoles, curiosamente um uruguaio que jogou pela seleção argentina, encerrou a invencibilidade de Muttoni para empatar. Os visitantes, que tinham consigo também Arnoldo Watson Hutton (ele próprio também jogador de seleção, além de filho do Charles Miller argentino, Alexander Watson Hutton), se animaram por algum momento. Alberto Ohaco e Hospital esfriaram com gols seguidos, aos 27 e aos 32. Aos 44, Hospital concluiu uma enganosa goleada.

29 de junho: 1-2 contra o River Plate (em casa, para 11 mil pessoas). Contra um time acusado de jogar feio, com apenas dez gols somados em seus oito jogos até ali enquanto o Racing em seis já havia marcado 27, o Racing não esperava perder a invencibilidade. Mas, mesmo em Avellaneda, uma relativa zebra passeou. Aos 40, Luis Galeano abriu o placar para o River, ampliado aos 3 do segundo tempo por Antonio Ameal Pereyra. Ohaco, bem anulado pelo ex-juvenil racinguista Heriberto Simmons, ainda chutou para fora um pênalti aos 30 do segundo tempo. O River se retrancou e Ohaco até achou um golzinho aos 35, sem evitar a primeira das duas derrotas do campeão de 1913. Haveria troco…

20 de julho: 1-0 no San Isidro (fora de casa, para 9 mil pessoas). O San Isidro era o então líder, ainda que beneficiado por dois jogos a mais que o Racing. Goleiro da seleção, o adversário Carlos Wilson impediu que, pela segunda rodada seguida, o Racing conseguisse algum gol no primeiro tempo. Marcovecchio não teve o poder de fogo de outrora, mas abriu a brecha para que Alberto Ohaco, mesmo sob a cola de José Morroni ao longo do jogo, anotasse aos 20 minutos do segundo tempo pelo oitavo jogo seguido. Bastou para não deixar esmorecer um elenco que ainda era apenas o 5º colocado – mesmo que por conta da tabela mal equilibrada. A curiosidade é que Ohaco só compareceu por sorte: cada jogador se encarregava de ir por conta própria a campo (alguns jogos chegavam a começar sem onze de cada lado em prol da pontualidade do horário!) e seu dinheiro não bastou para ir de Avellaneda a San Isidro, precisando torcer pela carona de algum caridoso. E encontrou um em um avellanedense que tomaria o mesmo caminho para ir ao hipódromo de Hurlingham. Para não dar margem a azares, o dirigente Luis Carbone estabeleceria que todos passariam a ir juntos às partidas…

24 de agosto: 3-0 no Quilmes (fora de casa, para 9 mil pessoas). Curiosamente, naquele mesmo dia o estádio do Racing foi utilizado, mas como palco nada menos do que do primeiro Boca x River da primeira divisão. O time de Avellaneda foi mais ao sul visitar o então campeão argentino. E os relatos registram que o 3-0 foi pouco sobre um adversário repleto de gente do desativado Alumni: estavam lá três dos seis Brown da seleção (Jorge, Juan e Ernesto), além de outros dois antigos jogadores da Albiceleste – Carlos Pearson e Carlos Buchanan. Alberto Ohaco, que havia ele próprio acabado de estrear pela seleção (em 15 de agosto), abriu os trabalhos de pênalti logo aos 13; e Marcovecchio, há alguns jogos sem marcar, encerrou o jejum aos 26. Ohaco fez outro já aos 21 do segundo tempo, concluindo exibição que teria rendido aos vencedores um convite da Quilmes (a cervejaria) para visitação à sua fábrica.

31 de agosto: 2-0 no Ferro Carril Oeste (em casa, para 10 mil pessoas). O time havia jogado apenas 24 horas antes, quando classificara-se às semifinais da Copa Competencia. Menos mal que o Ferro também havia atuado na véspera, pela própria liga argentina, no 2-2 com o Boca. Assim, em igualdade de condições físicas, prevaleceu rapidamente a maior qualidade técnica racinguista: quando ainda havia perna, Betúlar abriu o placar aos 17 e Hospital fechou-o aos 33, até que o cansaço comum se abatesse em todos. Cenário que fez com que Alberto Ohaco, pela primeira vez, não deixasse um golzinho na campanha.

Lance da final destacando Carlos Wilson, goleiro do San Isidro e da seleção

7 de setembro: 0-1 contra o Boca Juniors (estádio do Estudiantes de Buenos Aires, para 9 mil pessoas). Um dos primeiros minutos de silêncio de que se tem registro na Argentina, em memória do fundador e ex-presidente racinguista Pedro Werner, antecedeu o duelo. Werner tinha somente 30 anos e muitos dos atletas, além do choque emocional, haviam passado a noite em claro no velório. Enrique Bertolini anotou aos 40 minutos de jogo o único gol e o Racing não soube reagir. Inclusive perdeu um pênalti, onde o goleiro boquense Juan Bruzán pegou o tiro de Hospital – Ohaco, um dos mais afetados pela morte de Werner e lembrando do desperdício do pênalti anterior que chutara, contra o River, preferiu não cobrar.

21 de setembro: 3-1 no Riachuelo (estádio do Hispano Argentino, para 4 mil pessoas). Naquele mesmo dia, a seleção jogou e desfalcou o Racing, levando consigo Ohaco e Hospital. Perinetti e Raúl López eram outras baixas, por lesões. O time recorreu a três jogadores do elenco sub-18, mas não tomou conhecimento do Riachuelo (futuro Sportivo Barracas), cujo goleiro titular, Modesto Aldea, era ex-racinguista e pediu para não enfrenta-lo. Foi substituído por Alberto Colombo, que até manteve o arco invicto no primeiro tempo – supostamente por um pacto de cavalheiros, pois o Riachuelo estava disposto ao W.O. e concordou em se apresentar sob a contrapartida de não ser humilhado; interessava ao Racing jogar para manter-se ativo, a ponto do duelo ocorrer em data de jogo da seleção. Olázar então abriu os trabalhos aos 10 minutos da segunda etapa. Juan Ohaco ampliou aos 20 e Marcovecchio, aos 32. No fim, E. Grisetti deu sentido extra ao termo “gol de honra” para o Riachuelo.

28 de setembro: 4-0 no Comercio (estádio do Platense, para 4 mil pessoas). Perinetti e Pepe não tinham condições de jogo. E a goleada acabou enganosa: o Comercio soube segurar o zero no primeiro tempo e mantinha o placar assim até os 12 do segundo tempo. Hospital furou o ferrolho e oito minutos depois, Raúl López foi bem servido por Juan Ohaco para ampliar. No fim, Marcovecchio mostrou-se novamente calibrado, com dois gols, aos 33 e aos 43.

10 de outubro: vitória de W.O. sobre o Ferrocarril Sud. Seria o jogo final do primeiro turno para o Racing, que atuaria em casa. Com os pontos pelo W.O., ele enfim chegou à liderança, sem ter mais rodadas pendentes em relação a River e San Isidro, todos eles com 24 pontos. Dois dias antes, já havia se deliberado que após aquela rodada o campeonato dividiria as equipes em três grupos.

19 de outubro: vitória de W.O. sobre o Belgrano Athletic. Seria o jogo inicial do Racing em seu grupo, após ter folgado na rodada inaugural, uma semana antes. O duelo ocorreria no campo do Ferro, mas o Belgrano retirou-se do torneio, descontente com a reformulação do campeonato. Em outubro, o Racing manteve-se ativo nas Copas. Ainda no dia 5, havia se classificado à decisão da Copa Competencia, embora a perdesse no dia 18 para o San Isidro – por sua vez, derrotado em 25 de outubro pela semifinal da Copa Honor. Alguns dos racinguistas também suaram por outra camisa alviceleste, a da seleção: Carlos Muttoni estreou por ela no dia 26.

11 de novembro: 3-1 no Platense (em casa, para 10 mil pessoas). Juan Ohaco ainda padecia de lesão contraída naqueles jogos de Copas em outubro. Olázar substituiu-o muito bem. Juan Viazzi, que não jogava desde a rodada inaugural, regressou. Em 15 minutos, o jogo estava resolvido: Ohaco abriu o placar aos 4 e Perinetti rapidamente ampliou onze minutos depois. Já aos 40 do segundo tempo, Marcovecchio soltou uma bomba para realmente matar o jogo, embora houvesse tempo para Isidro Cotero aproveitar relaxamento da defesa racinguista e descontar aos 43. Naqueles dias, o time de Avellaneda ainda viajou a Montevidéu para decidir contra o River uruguaio a Copa Honor.

23 de novembro: 0-0 contra o River Plate (em casa, para 11 mil pessoas). Novamente, o Racing foi formalmente visitante no próprio estádio: o River, como fizera o Estudiantil Porteño, aceitou utilizar a própria casa rival – de capacidade superior ao do antigo estádio riverplatense no bairro de La Boca – desde que abocanhasse a renda. A defesa dos dois times prevaleceu sobre seus ataques e rendeu o primeiro 0-0 do ciclo do hepta. Vale a curiosidade de o Racing ter naquele dia enfrentado Alfredo Di Stéfano, pai do cracaço de mesmo nome.

Outro lance da final Racing x San Isidro

14 de dezembro: 3-0 no Banfield (fora de casa, para 8 mil pessoas). No dia 6, o Racing já era campeão na temporada, pela Copa Honor – decidida já no minuto 131 (!) em gol de ouro informalmente combinado entre ele e o River uruguaio ao fim de um 0-0 seguido de prorrogação também zerada; Marcovecchio seria o autor. Os compromissos copeiros retardaram os que o Racing tinha por seu grupo na liga. Mas, inspirados pelo troféu internacional, os racinguistas tiveram jornada inspirada na visita ao Banfield, mesmo sem Pepe e com um Ohaco jogando lesionado. Era preciso obrigatoriamente vencer para forçar um jogo-extra rumo à final e assim foi feito: Hospital abriu o placar aos 32 do primeiro tempo e ampliou aos 10 do segundo. Marcovio, então, fechou o marcador aos 35.

21 de dezembro: 3-0 no River Plate (estádio do Estudiantes de Buenos Aires, para 12 mil pessoas). O duelo foi precedido pela final do torneio sub-17, exatamente pelos dois clubes, com vitória racinguista por 2-0 já servindo de bom presságio. O River repetiu quase toda a escalação que segurara em Avellaneda o 0-0, exceto justamente Di Stéfano pai. Já o Racing não teria o volantão Olázar: seria sua única ausência na campanha e ele declararia que nunca sofreu tanto como naquela ocasião. A preocupação com o jogo aéreo do adversário Cándido García faria o matador Marcovecchio se dispor a recuar para marca-lo, carregando o piano para o recuperado Alberto Ohaco brilhar mais. Pudera: na primeira divisão, o Racing nunca tinha vencido o River, embora o enfrentasse nela desde 1911. Jejum que acabou bem a tempo: Ohaco abriu o placar aos 40, ampliou aos 15 do segundo tempo e então Perinetti fechou a conta aos 30. Forra completa, especialmente diante da boataria de que o oponente já havia reservado recinto para festejar; chegou a haver alguma confusão campal ao fim, com direito a alguns jogadores detidos pela polícia…

A final

28 de dezembro: 2-0 no San Isidro (em casa, para 12 mil pessoas).

Na época um dos principais clubes de futebol, o San Isidro mais tarde se dedicaria ao rúgbi, como muitos daqueles clubes “britânicos”, como o mencionado Belgrano Athletic. A cidade de San Isidro, ao norte da Grande Buenos Aires, é a capital do rúgbi argentino e seus dois clubes, CASI e SIC, ambos oriundos do derrotado há cem anos, são os maiores campeões da bola oval. Talvez confiando em ter vencido o Racing em outubro pela final da Copa Competencia, os sanisidrenses concordaram que a decisão da liga argentina se desse no campo racinguista em prol da melhor arrecadação que ela propiciaria.

O desfalque seria Juan Ohaco, cuja lesão nos meniscos abreviaria mesmo sua trajetória nos ramados; mas Olázar estava recuperado para substitui-lo. Foi exatamente a final que consagrou o trio do meio-campo dele com Betúlar e Pepe. Outro lesionado de fora seria Raúl López, que não jogaria mais pelo Racing (e sim pelo modesto Ferrocarril Sud); Juan Viazzi atuou em seu lugar e não comprometeu. Ainda assim, a espinha-dorsal estava praticamente toda na formação Carlos Muttoni; Armando Reyes e Saturnino Ochoa (irmão mais velho de Pedro Ochoa, ídolo racinguista nos anos 20); Ángel Betular, Francisco Olazar, Ricardo Pepe; Juan Viazzi, Alberto Ohaco, Alberto Marcovecchio, Juan Hospital, Juan Perinetti.

Já o San Isidro escalou Carlos Wilson; Juan Iriarte e Juan Bello; Juan Goodfellow, José Morroni e Alberto Olivari; Elías Fernández, Juan Rossi, Julio Fernández, Roberto Hulme e Alfredo Meira. Logo aos 17 minutos, Alberto Ohaco aproveitou um rebote para abrir o marcador. Cozinhando o jogo, o Racing só aguardou um momento propício para o bote final. Poderia ter sido aos 24 minutos do segundo tempo, mas Wilson defendeu um pênalti desferido por Ohaco. A vingança foi desfrutada ainda quente, apenas dois minutos depois: no rebote da defesa, a bola seguiu pingando na área do San Isidro até sobrar novamente para Ohaco enfim balançar as redes pela segunda vez.

O adversário até teria também balançado, já nos minutos finais, com Juan Rossi completando cruzamento de Elías Fernández, mas o lance acabou invalidado.

E nascia então uma dinastia não superada em qualquer outro país campeão do mundo…

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

2 thoughts on “100 anos da 1ª taça do Racing, nova era que “argentinizou” o campeonato

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

catorze − 1 =

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.