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Há 60 anos, a Argentina batia o Brasil no Maracanã na estreia de Pelé pela canarinho

“Sabe que joguei contra ele, na sua estreia em seleção do Brasil? Foi e 1957, se não me engano. Numa Copa Roca, no Rio e em São Paulo. Os jornais falavam muito na nova revelação e acabei ficando curioso. Na hora do jogo, me assustei. Era um negrinho muito magrinho, uma criança, e achei que não podia ser grande coisa. Confesso que me enganei”.

A declaração acima foi dada por Ángel Labruna à revista Placar em 1978, em meio à cobertura da Copa do Mundo realizada na Argentina. Faz referência a Pelé e àquele 7 de julho de 1957 em que ambos se enfrentaram no Maracanã, marcando gol. Foi o último gol de Labruna pela Argentina. Ele tinha 39 anos e ainda detém o recorde de mais velho a marcar pela Albiceleste. Mas a data virou histórica para o futebol mais pela estreia do “Rei”, que por sua vez, como contraste, tinha 16. Mesmo perdendo, já demonstrava a que vinha. Foi a primeira vitória dos hermanos sobre o Brasil no Maracanã, história que se repetiria apenas uma outra vez, na noite de Claudio López em 1998. A ironia é que a mídia argentina achincalhou o elenco vitorioso no Rio de Janeiro há 60 anos…

Precisamente três meses antes daquele 7 de julho de 1957, em 4 de abril de 1957, os argentinos encerravam uma participação brilhante na Copa América, embalada por um promissor e jovem ataque apelidado de Los Carasucias (“Os Cara-Sujas”, gíria argentina para moleques) de Lima, em referência à capital peruana, sede do evento. Contra o Brasil, os hermanos aplicaram um 3-0 naquela campanha. A ponto de o fato de apenas três campeões serem mantidos na delegação que reencontraria os brasileiros, agora por nova edição da Copa Roca, ser bastante destacada negativamente na mídia: o ponta-direita Omar Corbatta, o volante Néstor Rossi e o beque Federico Vairo.

Os três do miolo de ataque em Lima haviam sido vendidos ao futebol italiano – Humberto Maschio, Antonio Angelillo e Omar Sívori. Somente nos anos 70 é que cairia uma proibição de convocar quem atuasse no exterior. O trio acabaria de fora da Copa do Mundo de 1958 assim como o goleiro Rogelio Domínguez, por sua vez, iria ao Real Madrid em 1957. Mas a razão de sua ausência na Copa Roca foi outra: iria casar-se no dia 8 de julho. Dessa forma, o caminho ficou livre para Amadeo Carrizo, assim como Labruna foi requisitado em função dos desfalques no ataque. Outras ausências deviam-se a contusões, casos de Pedro Dellacha e Juan Carlos Giménez.

Ainda assim, era possível usar mais campeões, e a forte ausência gerou críticas fortes ao técnico Guillermo Stábile, conforme publicado antes da partida no Jornal dos Sports: “a escolha do Conselho Técnico da AFA foi, aliás, muito criticada em Buenos Aires, onde se estranha que não tenham sido selecionados jogadores como os médios Varacka e Schadlein, os atacantes Castro, De Bourgoing, Zárate, Cruz, Puppo, Rojas, os zagueiros Mantegari, Griffa, Anido, enquanto se escolhia Lombardo, que, suspenso há seis meses, deve estar obrigatoriamente fora de forma. Vemos, portanto, que não é somente o Brasil que esteve em grandes dificuldades para encontrar um plantel nacional à altura”.

Seis edições da Copa Roca haviam sido travadas até então, com empate na série: os brasileiros levaram a melhor em 1914, 1922 e 1945, e os argentinos em 1923, 1939 e 1940. Era a hora de ver quem ficava à frente, após dois jogos em solo brasileiro, no Rio e em São Paulo. E nem a vitória no primeiro jogo fez a imprensa argentina ceder: a partir de impressões do Clarín, o jornal Paraná Esportivo chegou a pôr como título de uma nota a frase “Medíocre a Seleção da Argentina na Copa Roca”. Em ambos os jogos, segundo os jornalistas vizinhos, a Argentina esteve “carente do jogo de conjunto e sem figuras individuais que compensariam com sua grande qualidade a notória desarmonia de seus movimentos”. Prosseguiu o cronista Héctor Vega, do Clarín:

Essas três imagens foram capas em 1957 da revista El Gráfico: Labruna (seleção) e Juárez (Rosario Central) marcaram 60 anos atrás. À direita, Rossi com o irmão, morto dois dias depois da vitória

“A vitória conquistada no Rio foi, sem dúvida, meritória, porém, não deixou margem para ilusão. Foi ela alcançada com alguns golpes afortunados e mercê de dois fatores evidentes: a incapacidade de arremate dos dianteiros brasileiros, que predominaram em boa parte do jogo, e o brilhante desempenho de Amadeo Carrizo, quase imbatível cada vez que os atacantes adversários acertavam o arco com seus disparos (…). A falha mais notável verificou-se na linha dianteira. A madura experiência de Labruna e sua maestria cegaram para conceder a vitória, porém não foram suficientes para dar ao improvisado quinteto ofensivo fisionomia de linha internacional. (…) Os figurantes que estiveram no recente torneio de Lima recordavam com nostalgia aquele trabalho de retenção da pelota que faziam os integrantes do terceto inolvidável: Sívori, Maschio e Angelillo, mercê dos quais a defesa atuou desafogada e teve sempre o domínio do terreno, pois a dianteira lhe concedia extraordinário alívio e raramente perdia o couro”.

Interessante notar algumas impressões, dentre elas as que sinalizam uma outra época. Abrahim Tabet disparou que “a culpa foi do America”, na época uma equipe forte, no que foi rechaçado por Giulite Coutinho: “o America jamais negou jogadores para o scratch brasileiro. Não admito que ninguém diga que o America não colaborou”. Já o beque argentino Vairo questionava ausência de botafoguenses: “vocês barraram Didi e Nilton Santos?”, e Rossi também: “não compreendo um scratch brasileiro sem Didi”. O Globo dizia “implorar só a Deus” e o Última Hora queimaria a língua: “com este football, o Brasil não pode ir à Suécia”. Nelson Rodrigues também foi fatalista: “querem enterrar o football brasileiro. Aqui jaz o football brasileiro assassinado pela CBD”.

O Jornal dos Sports corroborou a visão da imprensa hermana de que o resultado, embora “justo”, com os argentinos terminando “sob aplausos” em função de uma “superioridade indiscutível”, foi enganoso: “foi mais uma vitória da objetividade argentina” era o título. O subtítulo: “os brasileiros desperdiçaram momentos de ouro e acabaram apunhalados por uma jogada pouco feliz de Carlos Castilho. Sem deslumbrar, os portenhos ratificaram a categoria de seu grande football“. E as primeiras palavras são uma lição atualíssima: “será de boa técnica escrever, de saída, que não se pretende culpar ninguém. Mesmo porque precisamos nos acostumar à derrota, aceitando todas as consequências que dela derivam. Culpar A ou B, além de representar injustiça, dá e ideia de que considerávamos o triunfo como certo”.

Adiante, relatou-se que “os nossos portaram-se dignamente e souberam aceitar a derrota como desportistas, o que infelizmente não ocorreu com relação a alguns dirigentes. Estes transformaram o vestiário em arena de ajuste, querendo culpar quem não tem culpa”. Já os argentinos, “sem que tivessem apresentado um rendimento excepcional, ainda assim jogaram melhor e deram uma verdadeira aula de humildade”. Segundo o jornal, o jogo foi equilibrado e o scratch brasileiro controlou os primeiros vinte minutos, com boas chances desperdiçadas por Maurinho e Del Vecchio (curiosamente, ambos seriam contratados pelo Boca), faltando ao primeiro “calma” e ao segundo, “condição técnica”, com os argentinos se limitando ao contra-ataque. Pelé começou no banco de Del Vecchio, seu colega no Santos. Dos atacantes brasileiros no primeiro tempo, somente Luizinho e Mazzola estariam razoáveis, com a substituição do palmeirense sendo bastante criticada.

Já a defesa estaria bagunçada: Paulinho de Almeida estaria bem na marcação e antecipação, mas muito mal nos passes, e quando roubava a bola não tinha o apoio de Maurinho e Zito. De fato, os canarinhos, “apesar do domínio territorial, irritavam a plateia com passes mal endereçados” e aí registrou-se um elogio ao jogo argentino, pelo pouco uso do chutão e chuveirinhos:  “se pode vencer partidas utilizando passes curtos. Que nos lembremos, os argentinos nunca utilizaram os lançamentos à grande distância, salvo em jogadas abertas para os ponteiros quando estes se encontravam desmarcados. Até aquele passe vertical de Labruna (no segundo tento) foi coisa de pouca distância”. Labruna era mesmo um craque e camisa 10 argentino dos clássicos, que parecem lentos, impressão que já existia na época. Até pela idade, ele “nunca passou a sua linha média. O seu raio de ação era tão reduzido que ele pôde jogar quase parado”, segundo o Jornal dos Sports, e mesmo assim Angelito providenciou um gol e uma assistência.

“Não podemos argumentar com a improvisação, porque os argentinos também improvisaram (…). O que prevaleceu, na nossa opinião, foi a formação individual do jogador portenho. Cada player visitante mostrou senso e espírito de luta. O quadro atuou de forma fácil. Foi para o goal sempre pelo caminho mais curto. O nosso conjunto procurou a ‘costura’ e isso lhe foi fatal” foram outras palavras do Jornal dos Sports. Se a Argentina como time não teria sido nada exuberante, o goleiro foi. Carrizo foi outro bastante elogiado: “vimos um arqueiro de qualidades excepcionais. Defender fácil e com simplicidade. Carrizo deu uma verdadeira lição de como se deve jogar no arco. Mergulhou quando foi necessário e foi um autêntica barreira”.

E como foi a ordem do placar? Labruna fez 1-0 aos 30 do primeiro tempo. As entradas de Pelé e de Moacyr (outro que jogaria na Argentina, mas no River), que substituiu Mazzola, inicialmente melhoram o desempenho dos anfitriões, com o santista, usando uma estranha camisa 13, empatando aos 31. Mas, no minuto seguinte, numa reposição, o goleiro Castilho, “que vinha jogando muito”, endereçou mal a bola e “dois passes liquidaram a questão”: Corbatta, de cabeça, interceptou e repassou a bola a Labruna, que “dançou em cima da divisória da área, abriu a clareira, e meteu-a em profundidade para Juárez”, que com “um leve toque” garantiu a vitória alviceleste apesar da tentativa desesperada de Castilho em lançar-se.

O Jornal dos Sports preferiu atenuar o lance da derrota, culpando mais a comissão técnica por uma volta tida como precipitada: “um jogador que perde praticamente um dedo é lançado num match de repercussão sem um preparo adequado”, ao mesmo tempo em que garantia ser “legítimo” o gol, questionado por alguns como se ocorresse em impedimento. Castilho ficou famoso por preferir amputar parte de um dedo para livrar-se de uma dor local incômoda que lhe atrapalhava a agarrar. Para a partida de volta, o goleiro do Fluminense terminou mesmo no banco de Gylmar. O Brasil, com outro gol de Pelé, venceu por 2-0 e poderia ter sido 3-0 se Carrizo não desviasse para a trave um pênalti de Djalma Santos cavado logo após o reinício após Pelé ter aberto o placar.

O saldo favorável não importou ao fim dos 90 minutos no Pacaembu, forçando ainda uma prorrogação. Os argentinos, especialmente os veteranos Rossi e Labruna, já não tinham pernas e puderam apenas evitar um placar mais elástico (ainda assim, Labruna acertou a trave no tempo extra), com o Jornal dos Sports assinalando ainda que outros dois pênaltis para os brasileiros não foram marcados. Após a prorrogação é que o 2-0 do jogo da volta garantiu a Copa Roca para o Brasil. “Quatro a zero deveria ser o placar”, admitiu o cronista José Salomón, o ex-zagueiro fraturado pelos brasileiros na Copa América de 1946, lance que fez AFA e CBD não se enfrentarem pelos dez anos seguintes. Rossi, que teria dado um soco em Maurinho, terminou perdoado ao saber-se que na véspera ele perdera o irmão Omar Rossi, colega de River vitimado pela leucemia.

O resto da história é conhecido. Pelé se consagraria na Suécia enquanto a Argentina, novamente reforçada pelo quarentão Labruna, caiu na primeira fase. O Clarín já alertava, após a derrota em São Paulo: “os frívolos, que se aferram ao lugar comum de que somos ‘celeiro inesgotável de jogadores’ e que se vendemos os bons, logo mais aparecerão outros melhores, ficaram boquiabertos quando viram a defesa, que tão bem havia impressionado em Lima, tornar-se impotente diante dos fracassos continuados dos improvisados atacante, que não continham a pelota um minuto sequer. Guillermo Stábile terá que começar desde agora e muito seriamente a organizar sua equipe (…). Necessitará que os dirigentes, que tão inconscientemente desmantelaram o quadro, o apoiem agora com adesão sincera e vontade patriótica a reaver sua obra, destruída por aqueles que preferiram dinheiro à honra”.

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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