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125 anos do primeiro jogo entre argentinos e uruguaios

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Jogadores do Buenos Aires FC em 1891, quando o pioneiro do futebol sul-americano jogou pela única vez no Argentinão

Os brasileiros vêem-se como principais rivais dos argentinos, mas tradicionalmente a principal rivalidade internacional portenha no futebol é com os uruguaios. Assim foi até a virada dos anos 50 para os 60. Albiceleste e Celeste Olímpica lutavam pela dianteira em títulos na Copa América e os vizinhos da margem oriental do Rio da Prata, se tinham menos títulos continentais, contavam vantagem pelo bi olímpico. Mas a partir de 1958 os brasileiros, então a terceira força sul-americana, começaram a superar ambos em expressão mundial ao ganhar três Copas do Mundo em doze anos.

A taça brasileira na Suécia completa 56 anos em 2014. E mesmo ela, nem a de 1962, não alteraram uma cultura de décadas de rivalidade de uma hora para outra. Assim, na maior parte do tempo os argentinos tiveram mesmo mais rixas com os orientales, e há muitos que seguem pensando assim. O primeiro capítulo do clássico platino completa hoje 125 anos, outros tempos. O profissionalismo no futebol era algo distante, que ainda na pátria-mãe do Reino Unido dava seus primeiros passos. O esporte não era uma indústria de e para dinheiro. A logística era outra. E a rispidez também: ainda era um jogo de cavalheiros e quase restrito à comunidade britânica.

E a Argentina tinha numerosa comunidade dos súditos vitorianos. A ponto de em 1867 ser fundado nela o primeiro clube para futebol na América: o Buenos Aires Football Club. De fato, era uma outra época, pois a palavra football também poderia significar o rúgbi. O campeonato argentino de futebol é o mais antigo do mundo fora do Reino Unido e teve sua primeira edição em 1891. Apenas no ano de 1913 é que um clube formado fora da comunidade britânica terminou campeão na elite, o Racing, que virou um símbolo do estilo latino até por trajar-se com as cores da bandeira nacional.

No Uruguai, o esporte também era fechado a anglo-saxões. O Nacional, como diz o nome, foi fundado em 1899 exatamente em oposição a isso, com os primeiros campeonatos uruguaios tendo ele contra clubes chamados Albion (nome antigo da Grã-Bretanha), Uruguay Athletic, Deutscher (da comunidade alemã) e Central Uruguay Railway Cricket Club, o CURCC, clube que depois viraria o Peñarol. Vinha ficando comum que clubes de críquete adotassem futebol, inicialmente como modalidade secundária. No Brasil, o Vitória da Bahia, fundado em 1899 também, foi outro exemplo.

O pioneiro do futebol uruguaio, porém, não foi nenhum deles e sim o Montevideo Cricket Club, fundado em 1861 e que já era um velho conhecido do Buenos Aires FC, que era oriundo e dividia sua sede com o Buenos Aires Cricket Club. Ambas as instituições já haviam travado os primeiros jogos de críquete entre representantes dos dois países, em 1868 (o primeiro confronto esportivo internacional na América do Sul), e o primeiro de rúgbi, em 1875. Para o jogo de futebol em 1889, o Montevideo Cricket seria reforçado por sócios do Montevideo Rowing Club, o clube de regatas.

A rigor, argentinos e uruguaios já haviam se enfrentando antes no futebol, em 1880, com sócios do Buenos Aires contra outros do Zingari Cricket Club. Só que eles jogaram misturados: não houve jogo entre os clubes propriamente, e sim um encontro entre sócios deles que definiram seus jogadores antes do pontapé inicial.

1889 foi o ano do 70º aniversário da Rainha Vitória, pretexto para um jogo de futebol entre britânicos de Buenos Aires contra os de Montevidéu. Havia também a inauguração da nova sede do Montevideo CC. 15 de agosto era feriado nos dois países, por ser a data da assunção da Virgem Maria. Segundo crônicas dos jornais anglófonos The Standard, de Buenos Aires, e The River Plate Times, de Montevidéu, os “argentinos” venceram por 3-1. Um dia antes, membros das duas delegações confraternizaram em um baile britânico no Hotel Nacional da capital uruguaia, com o The River Plate Times registrando que de fato “muitas poucas famílias locais”, ou seja, de latinos, foram convidadas.

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Distintivos de Buenos Aires CRC, nas cores da bandeira britânica e o característico leão rampante de ingleses e escoceses, e do Montevideo CC, com o mar nas cores uruguaias e o monte que nomeia a cidade, mas também com os três leões ingleses

O baile terminou às 3 da manhã e o dia 15 amanheceu bem frio, o que não atrapalhou a realização da partida. Em anúncios, se esclareceu que as regras do football praticado seriam os da Football Association, o que não necessariamente quer dizer que é o futebol como conhecemos, não existindo ainda regras como a do pênalti ou de uniforme diferente para goleiros. Havia a figura do umpire, espécie de árbitro-auxiliar da época, que era cedido por cada clube. E o esquema tático era um triângulo invertido, repleto de atacantes e com poucos defensores, algo impensável para hoje. Os britânicos argentinos dominaram a partida, abriram 2-0 no primeiro tempo e ampliaram no início do segundo. Mais na base do entusiasmo, os oponentes descontaram uma vez e ficou no 3-1.

O jornal uruguaio noticiou que “o jogo, desde o começo, esteve bastante mais de um lado e o couro se manteve quase todo o tempo no território de Montevidéu, devido à destreza superior dos visitantes e o bom jogo dos atacantes em comparação com os da equipe anfitriã. Devemos, porém, ressaltar que ambos os lados têm muito o que aprender a respeito”. Ainda segundo o periódico, Scoones, autor do único gol uruguaio, “mostrou aos espectadores o que o futebol poderia chegar a ser se as equipes estivessem compostas integralmente por homens experientes como ele”.

O The River Plate Times também descreveu um chute de Guy como de first class, enquanto que Moser monstrou “um claro bom jogo como half back” e Paton “nunca perdeu seu arremate”. No time montevideano, o arremate de Alexander foi importante, mas Jefferies e Pool estiveram “bastante descoloridos”. Ambos os clubes duelaram anualmente até 1894, com as sedes se alternando e os portenhos sempre vencendo. Já o primeiro jogo entre seleções demoraria treze anos, com o uniforme celeste sendo vestido curiosamente pelos hermanos e não pelos charrúas. A presença britânica seguia forte, especialmente do lado argentino, que voltou a vencer mesmo fora de casa: 6-0 que contamos aqui.

Os clubes que deram origem ao clássico seguem existindo. Na realidade, o BAFC oficialmente se extinguiu nos anos 50 após incêndio na sede que dividia com o BACC. Ele já não praticava futebol desde o século anterior; embora tenha participado do campeonato inaugural de 1891, resolveu focar-se no rúgbi, assim como muitos dos primeiros clubes e campeões argentinos. Na prática, hoje ele existe como Buenos Aires Cricket & Rugby Club, a fusão formal das duas instituições, e hoje sua sede está na cidade de San Fernando. Já dedicamos dois especiais ao BAFC (clique aqui e aqui) e alguns aos outros clubes pioneiros do futebol argentino que já não mais o praticam: vejam nesta seção.

O vizinho Montevideo CC também escolheu priorizar a bola oval, sendo inclusive reconhecido pela International Rugby Board como a sétima instituição mais antiga no mundo a praticar este outro esporte bretão. Amanhã, aliás, começa a terceira edição do Rugby Championship, quadrangular anual que opõe Los Pumas (a seleção argentina, a mais forte das Américas) contra as três maiores potências mundiais, todas bicampeões da Copa do Mundo: a África do Sul, Austrália e Nova Zelândia. Os hermanos buscam sua primeira vitória. Los Teros, a seleção uruguaia, a segunda força sul-americana, lutará em outubro pela última vaga na Copa do Mundo de 2015, em repescagem contra a Rússia.

Abaixo, as escalações daquele 15 de agosto de 1889. Cerca de trinta anos depois, aquela semente plantada há 125 anos desembocava em duas finais mundiais, a olímpica de 1928 e a da primeira Copa do Mundo, em 1930, cumprindo a “profecia” feita pelo tal jornal The Standard de que “a visita foi tratada com a já conhecida hospitalidade que sempre nos hão brindado nossos amigos do ‘Monte’. É nosso desejo que este, a primeira partida de football association que acreditamos que se tenha jogado entre Buenos Aires e Montevidéu, não será a última, e sim a antecedente de uma larga série de confrontos entre as repúblicas rivais”.

Buenos Aires: Carmichael, Crowe e Paton, MacAdam, Moser e Phillips, Guy, Morgan, Hughes, Alexander e Tudor. Umpire: ?. Montevidéu: Donovan, Alexander e Jefferies, Marshbank, Jewell e Davie, Scoones, Faran, Poole, Harris e Penfold. Umpire: MacKinron. Gols: Alexander, Guy, Hughes e Scoones. Árbitro: ?

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Jogos recentes de Buenos Aires CRC e Montevideo CC no rúgbi, principal esporte bretão de ambos desde o século XIX

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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