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Arsenio Erico, maior goleador do futebol argentino, faria cem anos hoje

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Arsenio Erico já foi eleito o melhor jogador paraguaio da história pela FIFA

“Eu só quis ser um pequeno imitador seu”. Estas palavras foram ditas pelo mesma pessoa que em outra ocasião afirmou que “Entre fazer o gol e dar o gol para outro, não vacilava. Fazia eu. Não me arrependo disso. O goleador tem mesmo que ser um tanto egoísta. O futebol para mim era feito de gols, muitos gols. Gols meus”. Era Alfredo Di Stéfano. Quem ele queria apenas imitar? Arsenio Pastor Erico Martínez, que há exatos cem anos, em 30 de março de 1915, vinha ao mundo em Assunção. Di Stéfano novamente lembraria dele em 1979, ao coloca-lo ao lado de Pelé, Bobby Charlton e Juan Manuel Moreno como únicos jogadores nota 10 que vira. O ídolo já foi chamado de “Nijinsky do Futebol”.

Não tão conhecido modernamente entre os brasileiros, Erico, um dos maiores monstros do futebol sul-americano, segue venerado na Argentina mesmo com chuteiras penduradas há cerca de 70 anos. É o maior artilheiro da elite de lá, com 295 gols, todos pelo seu Independiente, do qual é o goleador máximo também. Por tabela, é o estrangeiro com mais gols no clube e no futebol hermano.

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Na seleção da Cruz Vermelha (agachado ao meio) e como marca d’água na camisa do Nacional

Neto de italianos, começou no Nacional de Assunção, cujo estádio hoje se chama Arsenio Erico. Vice da última Libertadores e grande potência paraguaia no início do século, o clube abriu as portas dos guaranis ao futebol argentino – Manuel Fleitas Solich, defensor do Boca (e técnico de longeva passagem pelo Brasil) e Constantino Urbieta Sosa, que jogou pela Argentina a Copa de 1934, foram outros vindos dali: saiba mais. O pai, tios, irmãos e primos de Arsenio também jogaram lá – clique aqui para ler sobre o “clã Erico” no folclórico site NacionalQuerido. Mas quem lhe vendeu ao Independiente não foi um emissário do Nacional e sim um tenente-coronel paraguaio.

Em 1932, Paraguai e Bolívia iniciaram a Guerra do Chaco e Erico, ainda com 17 anos, era jovem demais para ir ao front. Acabou nas fileiras da seleção da Cruz Vermelha, que passou por Argentina e Uruguai em jogos beneficentes: “nos foi bem. Em todas as partes, o público nos recebeu com simpatia”, contaria. River e Independiente logo se assombraram. Erico assumiu que “eu deveria ser jogador do River, mas estava Bernabé Ferreyra”, outro artilheiro sobrenatural da época: contratação mais cara do futebol mundial em 1932, fez 195 gols em 193 jogos pela Banda Roja, sendo visto como o homem que a popularizou pelo país. Outro grande matador com mais de um gol por jogo no River (e no Fluminense), Luis Rongo sofreu na reserva de Bernabé, conforme contamos há uma semana.

Além de Independiente e Huracán, Arsenio Erico também defendeu um combinado River-Independiente contra um combinado Flamengo-Vasco, em 1939. Nas imagens, com Leônidas da Silva e saltando entre Florindo e Domingos da Guia: a impulsão do paraguaio era famosa

Por mediar o fim da guerra, o diplomata argentino Carlos Saavedra Lamas recebeu o Prêmio Nobel da Paz em 1936. Mas com ela ainda em andamento, o Independiente precisou até de autorização do Ministério da Defesa do Paraguai (Erico estava para ir à guerra), mas com isso e doze mil pesos conseguiu trazer Erico em meados de 1934. O River não desistiu e diretores lhe aguardariam no porto de Buenos Aires com mais dinheiro; o Independiente soube e fez Erico desembarcar no meio da viagem naval, em Rosario, concluindo por trem o resto do caminho.

Não foi a última luta entre os dois. O River foi o grande concorrente dos títulos do Independiente nos anos 30. Depois, por um bom tempo acreditou-se que Erico fez 293 gols, e que o mito máximo do River, Ángel Labruna, teria feito 292. Historiadores do River depois “descobriram” um gol a mais de Labruna, igualando ambos. Até os de Avellaneda notarem dois gols extras do paraguaio….

Em 2011, a revista argentina El Gráfico elegeu os cem maiores ídolos do Independiente. Erico (ao centro, entre Bochini e Agüero) foi o único de antes dos anos 50 na capa

“Se vivia bem sendo jogador, embora não com as cifras de agora. O Independiente me pagava pontualmente, cobrávamos todos igualmente. Eu levava 200 pesos mensais. Era um bom soldo”, explicaria nos anos 70. “Mais uma porcentagem que nos davam da arrecadação por partidos ganhos. Para estes efeitos, o empate não tinha valor. (…) Joguei porque eu gostava e me divertia. Quando me dei conta que a coisa já não ia e que começava a me irritar, larguei (…). Entre toda a juventude que fez o holocausto de sua vida no Chaco, fui um afortunado. Sobrevivi. Talvez porque um desígnio do destino me tirou a tempo das chamas do fogo trágico”.

Os primeiros gols vieram já na segunda partida, com dois sobre o Chacarita. E já a partir de 1935 ficava entre os cinco artilheiros do campeonato, apesar de duas fraturas no braço quase seguidas. A explosão veio em 1937, quando o Independiente contratou Vicente de la Mata, herói da final da Copa América sobre o Brasil. Se juntaria ao paraguaio e ao multi-homem Antonio Sastre (grande ídolo do São Paulo) para formar o trio que mais se abraçou no profissionalismo argentino: são eles quem mais gols fizeram em troca de salário do Independiente e não tivemos escolha a não ser escalar os três no time dos sonhos do clube, em janeiro (aqui). “Não é que eu tenha sido tão extraordinário, e sim que sempre tive sorte de jogar com companheiros excepcionais com os quais tudo se fazia fácil”, admitiu, modesto.

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Vicente de la Mata, Erico e o ídolo são-paulino Antonio Sastre, até hoje o trio ofensivo que mais gols fez no campeonato argentino. Ao lado, outra capa da El Gráfico, no embalo de sua artilharia recorde de 1937

O título ainda não veio ali, mas Erico alcançou 47 gols em uma campanha de só 34 jogos. Média de 1,43 celebrações sobre cada oponente. Até hoje, ninguém fez tantos gols em um único campeonato – Héctor Scotta fez 60 gols em 1975, mas somando-se os do Torneio Metropolitano com os do Torneio Nacional. O Rojo não vencia o campeonato desde 1926 e o jejum enfim acabou em 1938. Campeão em 1937, o River teve o mérito de terminar 1938 com apenas dois pontos a menos de um elenco que somou 115 gols em 32 jogos, até hoje o ataque mais pulverizador da história do campeonato argentino: 3,6 gols por partida.

Simbolicamente, a taça se garantiu com um 8-2 no Lanús. E as cifras seriam ainda mais altas se Erico, que marcou dois gols nessa partida, não diminuísse o ímpeto. Tudo porque após o segundo de seus gols ele passava a somar 43 gols no campeonato e ouvira que receberia um prêmio da marca de cigarros chamada 43 (“me entregaram uma recompensa de dois mil pesos, uma fortuna para aqueles anos”). Naquele embalo, os diablos emendaram doze vitórias seguidas até as primeiras rodadas de 1939. Foi um recorde de triunfos só quebrado em 2001. O Racing quebrou a sequência, mas levaria trocos.

Outro registro famoso da célebre impulsão de Erico no jogo aéreo

E como levaria. Erico ao todo fez 19 gols no arquirrival, sendo o maior artilheiro do Clásico de Avellaneda. O Independiente, apesar do revés, seria bi seguido em 1939 com o paraguaio pelo terceiro ano seguido como artilheiro do campeonato e somando mais gols (40) que partidas (34). E esteve no páreo pelo tri em 1940, mas ficou-se no vice. Erico fez “apenas” 29 gols. Mas dois foram em um 7-0 no Racing, maior goleada do dérbi até hoje – e o placar só foi inaugurado aos 42 do primeiro tempo. Outros dois saíram em outra goleada parecida, um 7-1 no Boca, até hoje a mais elástica derrota boquense.

Erico era ídolo de todas as torcidas, mas não tinha unanimidade com seus dirigentes e em 1942 regressou por um ano ao Nacional (recusando oferta bem mais vantajosa do poderoso Olimpia, que lhe prometera carro e casa), outro que não era campeão desde 1926. A taça voltou e foi a penúltima do tricolor até 2009. Tanta explosão nos anos anteriores e as pancadas que recebia minaram seus meniscos e os gols diminuíram nos anos 40 após um pontapé no joelho esquerdo em clássico com o Racing. Em 1945, fez “apenas” 20 gols, o suficiente para deixa-lo em terceiro na artilharia.

Em seu outro clube argentino, o Huracán (a seu lado, o maior artilheiro da Copa América: Norberto Méndez), veio para substituir Di Stéfano e não marcou gols. Mas a maior ironia foi jamais ter defendido o Paraguai – na imagem, com o irmão Adolfo, ele sim aproveitado pela seleção alvirrubra

Erico operou-se naquele mesmo ano e os médicos descobriram que havia nove anos que ele jogava em inferioridade de condições (!!!). Saiu do Independiente após mais um campeonato, em 1946. Os 295 gols vieram em só 327 jogos. Muitos dos gols foram aéreos, aproveitando-se de sua grande capacidade para saltar que lhe renderia a alcunha de “Trampolim da América”. Uma das mais famosas lendas envolvendo-o, já desfeita por pesquisadores do clube, é de que em determinado lance teria usado os dois calcanhares, elevados em manobra similar ao “escorpião” popularizado pelo goleiro René Higuita, para encobrir o goleiro do Boca.

Em 1947, Di Stéfano era um garoto crescido que despontava no River após um empréstimo de sucesso ao Huracán no ano anterior. E o Huracán, vítima do último gol de Erico na Argentina, em 1946, resolveu buscar o ídolo para repor a vaga do fã. Não deu muito certo, com sete jogos e zero gols. Ele ficou na Argentina como um Super-Homem ao trajar-se de vermelho e azul mesmo, como o próprio herói de aço. Estendeu a carreira até 1949, no Nacional. Depois manteve-se como técnico no Paraguai e, nos anos 60, como dono de uma cafeteria em Ramos Mejía, na Grande Buenos Aires.

Em uma de suas últimas aparições públicas. Aparece à esquerda na foto, ao lado do capitão Ricardo Pavoni, que ergue o tetra do Independiente na Libertadores de 1975, finalizada em Assunção. Infelizmente, o fotógrafo preferiu centralizar o ditador Alfredo Stroessner no enquadramento

Entregou uma taça ao Independiente uma última vez em 1975. Seu velho clube havia se sagrado tetracampeão seguido da Libertadores em uma finalíssima em Assunção e Erico passou o troféu ao capitão rojo Ricardo Pavoni. Tanto tempo na Argentina rendera-lhe sondagens até financeiras de naturalização para defender a Albiceleste, algo que ocorreu na década não só com o mencionado Urbieta Sosa mas também com Delfín Benítez Cáceres, do Boca. Manuel Fleitas Solich foi outro aproveitado pelos hermanos, ainda que em partidas não-oficiais contra o Barcelona, em 1929.

Chegou mesmo a ser noticiada a convocação de Erico pela Argentina para as eliminatórias à Copa do Mundo de 1938, embora a federação viesse posteriormente a recusar em participar, em protesto por entender que o torneio deveria alternar-se entre Europa e América do Sul – pugnando pelo direito de ser a sede e não a França. O artilheiro pôde sempre recusar-se às tentativas de aliciamento: “eu morro paraguaio”.

Outro registro da impulsão de Erico. E seus restos trasladados a Assunção em 2010, com as bandeiras do Nacional, do Independiente, do Paraguai e da Argentina

Ironicamente, o maior goleador que o Paraguai já produziu – quiçá, o maior jogador do país em todos os tempos – se privou de jogos também pela própria seleção paraguaia. Não fez simplesmente nenhum: as partidas erroneamente consideradas pela Wikipédia na verdade foram pelo time da Cruz Vermelha, em uma época onde as seleções não usavam quem atuasse no exterior. Quem sim atuou pela Albirroja foram parentes seus: irmão caçula, Adolfo Erico até participou da Copa América de 1937, realizada na própria Argentina, enquanto o irmão mais velho, Enrique Erico, defendeu os guaranis nos anos 20. Quando enfim voltara à terra natal, no fim dos anos 40, a decadência já estava grande demais para enfim ter alguma estreia tardia. Nada disso impediu que uma romaria de paraguaios aplaudissem Arsenio ao receberem seu corpo há alguns anos.

Arsenio Erico repousava na Argentina desde 23 de julho de 1977 (após problemas circulatórios terem-no privado de uma das pernas, que segundo o escritor Eduardo Galeano eram “molas secretas para saltar mais alto e superar os goleiros de cabeça”) e foi trasladado em fevereiro de 2010 para descansar em um mausoléu em Assunção. No Defensores del Chaco. No nome e no contexto do cenário, não poderia ser mais simbólico…

O ex-atacante desfilando entre Roberto Perfumo e Alcides Sosa antes de um amistoso em sua homenagem entre Argentina e Paraguai em outubro de 1970

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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