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30 anos sem Raimundo Orsi, nome histórico de Independiente, Juventus e campeão da Copa de 1934

No mesmo 6 de abril de 1986 em que a Argentina acompanhava o histórico Superclásico da bola laranja (falamos ontem), ela perdia um dos nomes mais históricos do seu futebol: Raimundo Bibiani Orsi Iturriaga, que jogou em alto nível por uma década e meia por Independiente e Juventus, ajudando ambos os clubes a virarem gigantes. Também foi finalista mundial por duas seleções: sua Argentina natal nas Olimpíadas de 1928, pela Itália das raízes na Copa de 1934 – marcando gol na final. Orsi ainda atrairia as camisas pesadas de Boca, Peñarol e Flamengo, sendo talvez o primeiro a jogar por clubes grandes de quatro potências do futebol, conseguindo títulos em todas elas.

Problemas cardíacos levaram Orsi quando ele se encontrava em Santiago. Embora se divulgue mas que ele tenha nascido do outro lado da cordilheira, em Mendoza, e no ano de 1901, sua documentação de estrangeiro no Brasil mostra que nasceu em 1904 (em 2 de dezembro) e em Avellaneda, filho de Lorenzo Orsi com Gregoria Iturriaga. Estreou pelo time adulto do Independiente em 1919. O sobrenome, que em italiano significa “Ursos”, contrastava com o físico esmirrado daquele velocista que também tinha habilidade e chute forte, além da típica malandragem latina.

O futuro Rey de Copas, por sua vez, ainda era um clube virgem de títulos argentinos, enquanto o vizinho Racing vencia naquele mesmo ano nada menos que pela sétima vez seguida o campeonato. A nova década já veria equilíbrio. O rival ganhou mais duas vezes, assim como o Rojo também conseguiu dois títulos. Foi em 1922 e em 1926.

Com a bola antes de duelo contra o River na 5ª rodada do primeiro título argentino do Independiente: Guastavino, Manuel López, Isusi, Collazo, o árbitro Guassone e Seoane; Gravano, Goycoechea, Ferro, Orsi, Ronzoni y Scoffano

O ponta-esquerda Orsi fechava um ataque com o veterano Zoilo Canaveri (único remanescente do elenco vice em 1912) na ponta-direita, Alberto Lalín (estreante naquele 1922) na meia-direita e Manuel Seoane, reforço desde 1921 na meia-esquerda. Já haviam feito uma ótima campanha em 1921, um terceiro lugar só ofuscado pelo título do vizinho Racing. Mas para 1922 não teria para ninguém, em campanha estupenda encerrada já em 27 de maio de 1923.

O primeiro título argentino do Independiente veio no embalo de 97 gols a favor (doze deles, anotados por Orsi, vice-artilheiro do elenco e bastante garçom dos recordistas 55 gols da máquina Seoane), cifra recorde de um campeão na era amadora – tamanho que o segundo melhor ataque fez 65, casos de Racing e San Lorenzo. A defesa sofreu somente 27 ao longo de quarenta rodadas, com trinta vitórias, cinco empates e cinco derrotas. O clube venceu as sete primeiras e, embora caísse justamente no Clásico de Avellaneda na 8ª rodada, manteve o gás. Com direito a troco no rival, batendo-o por 4-2 no returno mesmo na casa vizinha. E não parou por aí: da 28ª rodada à 34ª o Rojo não só ganhava seguidamente como sequer sofria gols. Derrotado na 35ª pelo Gimnasia, tratou de ganhar os cinco duelos finais, sofrendo apenas dois gols.

Nem tudo foi alegria em 1923, marcado também pela perda do velho estádio de madeira para um incêndio, trauma que faria a instituição tratar de erguer o primeiro estádio de cimento da América Latina: La Doble Visera, que só ficaria pronta em 1928. Mas a falta de casa própria não foi um impeditivo para o Rojo se manter nas cabeças. Se em 1923 e em 1924 o San Lorenzo venceu pelas duas primeiras vezes o campeonato, o Independiente se punha à espreita: a nova força de Avellaneda foi vice dois pontos abaixo no primeiro e terceiro colocado no outro, também sob três pontos a menos. Seu ataque perdia o artilheiro Seoane por uma suspensão da liga, mas ganhara desde julho de 1923 o centroavante Luis Ravaschino.

Os Diablos Rojos do Independiente campeão invito de 1926: Pérez, Debuglio, Isusi, Ronzoni, Ucar, Chiarella, Canaveri, Lalín, Ravaschino, Seoane e Orsi

Em 1925, o Racing teve seu canto do cisne no amadorismo, campeão argentino pela nona e última vez até 1949. O Independiente sentia o peso do desfalque do goleador Seoane, suspenso pela Associação de Amadores por agredir um árbitro (o que não o impedia de jogar na AAF, onde atuou pelo El Porvenir, além de amistosos europeus com o Boca) e ficou apenas em sexto. Mas compensava nas Copas, com um tricampeonato seguido na Copa Competencia entre 1924 e 1926, o que permitiu ao clube se tornar o proprietário definitivo desse troféu – em formato similar a uma Copa da Liga, mas muito mais valorizado para a época.

Orsi esteve em todas as partidas do tri e, ainda em 1924, não só estreou pela seleção (curiosamente, em partida que marcou a estreia também de Luis Monti, depois seu colega na Juventus e na Itália campeã de 1934) como também se tornou o primeiro jogador do Independiente retratado na capa da revista esportiva El Gráfico, ainda em circulação. A edição 1924 da Competencia começou em fase de grupos com Estudiantes, Lanús, Liberal Argentino, Vélez e Gimnasia. Orsi deixou gols nos dois jogos contra o Liberal (3-1 e 4-1), além de outro para fechar o 2-0 no Vélez pelo returno – um golaço: à esquerda, recebeu de Ravaschino, livrou-se de um primeiro marcador, repetiu a manobra entre outros quatro adversários e por fim também do goleiro velezano para entrar com bola e tudo nas redes.

Outro gol do Mumo teria sido incorretamente anulado na derrota de 2-1 para o Gimnasia, o principal concorrente à única vaga disponível aos mata-matas. Mas o Rojo terminaria líder do mesmo jeito. Nos mata-matas, começou então uma série interminável de Clásicos de Avellaneda, com simplesmente três 0-0 seguidos já na segunda quinzena de janeiro de 1925. Isso rendeu um impasse entre as duas direções: os cartolas do Racing queriam adiar a definição para março, sob calor mais ameno. Os do Independiente queriam encerrar o quanto antes a história e acabaram levando pelo W.O. do rival em 8 de fevereiro. Tiveram pela frente o surpreendente Almagro, que tinha um ídolo da seleção em Humberto Recanatini e eliminara o River. Após dois empates (1-1, com gol de Orsi, e 0-0) na segunda quinzena de fevereiro, o neutro campo do Platense coroou em 1º de março a conquista indepedentista por 1-0.

Na Argentina prata olímpica de 1928: técnico Lago Millán, Médici, Bidoglio, Bosio, Monti, Paternoster, Evaristo e massagista Sola; Carricaberry, Tarasconi, Ferreira, Gainzarain e Orsi.

Quase encerrado o ano de 1925, começou nova Copa Competencia, agora em pentagonais de turno único. E em 8 de novembro o nascente Rey de Copas começou com tudo. em um 7-0 no Estudiantil Porteño, em atuação superlativa de Orsi em especial: fez quatro gols para começar o torneio em que foi talvez a figura maior: nas sequência, 1-0 com um gol de voleio dele no Sportivo Buenos Aires; 0-0 com o Excursionistas; e, com dois gols dele, 3-0 no Barracas Central, ainda em dezembro. As semifinais precisaram aguardar até 14 de março de 1926, quando o Gimnasia foi vencido por 2-0, placar construído já a partir dos 32 minutos do segundo tempo. Orsi forneceu a assistência ao primeiro, cruzando a bola para o cabeceio de Lalín, e anotou o segundo em outro lance de voleio.

Em paralelo, o próprio River perdia para o Sportivo Palermo e viu seu estádio ser o palco neutro também da decisão, na quinta-feira santa de 1º de abril. Dia de outro 2-0, com Orsi envolvendo-se ativamente no primeiro, trocando tabelas com Luis Ravaschino até este fornecer a assistência para Lalín anotar. O tricampeonato na Copa Competencia, em 1926, por sua vez apenas coroaria a temporada eternizada pelo segundo título do clube no campeonato argentino.

Seoane voltara e enfim o quinteto Canaveri-Lalín-Ravaschino-Seoane-Orsi jogava junto. Logo foram apelidados de Diablos Rojos, alcunha criada pelo jornalista Hugo Marini e que viraria sinônimo do próprio Independiente. Demonstravam jogo a jogo uma qualidade poucas vezes vista no futebol argentino até então, com as duas alas, esquerda e direita, combinando velocidade e precisão tanto em passes curtos ao pé como bolas longas. Vale dizer que a defesa tampouco deixava a dever: o goleiro Pedro Isusi lograria um recorde de jogos sem sofrer gols, em 1.101 minutos ao longo de mais de onze partidas seguidas. Ao fim, o Independiente foi campeão invicto, mesmo com só um pontinho a mais que o San Lorenzo.

Último agachado na tarde em que o Independiente, com escudo nacional, fez 4-1 no Barcelona, em 1928. Orsi fechou a goleada. Eis os nomes: Chiarella, Bartolomedi, Debuglio, Sangiovanni, Ronzoni e Martínez; Canaveri, Lalín, Ravaschino, Seoane e ele. Foi um de seus últimos jogos pelo clube

Em paralelo à campanha na liga, o time já começava com tudo a campanha copeira – iniciada em Clásico de Avellaneda vencido por 2-0 mesmo na casa rival, em 13 de maio. Foi na Copa Competencia que o Independiente teve inclusive sua única derrota em toda a temporada de 1926, um 2-1 fora de casa para o Platense, em 29 de junho, ainda pela fase de grupos. A Copa foi retomada três meses depois, já em 17 de outubro, com um 4-0 no Sportivo Barracas – Orsi fez o primeiro. Restava enfrentar o Almagro, em 14 de novembro, e uma derrota igualaria os dois na liderança, cenário que forçaria um jogo-extra. Que terminou desnecessário: 3-0 também nos tricolores, todos gols de Orsi.

O primeiro título do ano se garantiu em 26 de dezembro, pela liga: foi ao se completar uma partida outrora suspensa com o Atlanta e vence-la por 2-0; Orsi, que desfalcara o time por rodadas a fio ao lesionar-se em breve turnê a Córdoba, pôde fazer o segundo gol. Em 9 de janeiro de 1927, o recém-campeão argentino então iniciou as semifinais da Copa Competencia; o 0-0 com o River, no estádio neutro do Sportivo Barracas, forçou jogo-extra dali a uma semana, no mesmo campo. O único gol surgiu em assistência de Orsi para a cabeça certeira de Seoane. Em 20 de janeiro, o mesmo estádio recebeu a decisão entre Independiente e um Lanús curiosamente trajado com uniforme do Racing, diante da possível confusão entre as camisas roja e granate. Pois a cortesia do rival foi respondida com um sonoro 3-1, com Orsi anotando o segundo – e o golzinho de honra lanusense vindo já a três minutos do fim.

Em 1927, ele integrou a campanha vencedora da Copa América. Foi a primeira vez em que a Argentina venceu fora de casa o torneio, com direito a um 5-1 no anfitrião Peru – o único jogo em que Orsi participou. Em paralelo, o Independiente enfim inaugurava a Doble Visera, em 6 de março de 1928, em amistoso com o Peñarol. Pois coube a Orsi a honra de, naquele 2-2, marcar o primeiro gol do mítico templo que tantas noites de Libertadores vivenciaria. Foi também o ano em que ele se firmou na titularidade da seleção: sete das treze partidas oficiais de Orsi pela Argentina foram naquele ano, onde foi o ponta-esquerda titular da Albiceleste nas Olimpíadas. Sua velocidade rendeu-lhe o apelido de Cometa de Amsterdã, a cidade-sede dos Jogos. Chamou a atenção da Juventus.

No calcio: é o mais à direita na fila inferior tanto na Juventus penta nos anos 30 como na Itália campeã de 1934. O primeiro jogador em pé da Juve (Renato Cesarini), o segundo da fileira do meio (Luis Monti) e o jogador em pé à esquerda da Itália (Enrique Guaita) já haviam defendido a seleção argentina

A Juve ainda era um time pouco vencedor e Orsi até chegou a voltar à Argentina: atuou, por exemplo, em uma revanche com o Uruguai em 10 de agosto em Avellaneda, vitória por 1-0; e também em amistosos, também em agosto, contra o Barcelona – tanto pelo Independiente como pela própria seleção. Essas partidas marcaram a primeira vez em que a Albiceleste usou um brasão no peito; não ainda o da AFA, mas o da própria república, gesto também repetido pelo Rojo. Contra os catalães, Orsi marcou duas vezes nos 3-1 da Argentina (em 4 de agosto) e fechou os 4-1 do Independiente (em 11 de agosto). Ainda figurou em outros dois jogos da seleção contra o Barça: 0-0 em 5 de agosto, 1-0 em em 15 de agosto.

Mas ao fim o ponta terminou mesmo  seduzido pelo profissional futebol italiano, enquanto tal prática na Argentina ainda era clandestina. Por cem mil liras e um carro FIAT, foi jogar no clube administrado pela família dona da fábrica automotiva – não sem antes ficar um ano suspenso de jogos oficiais, pois o Independiente não havia concordado com a saída. A Juventus formaria uma verdadeira colônia de argentinos no início dos anos 30, a de maior sucesso que algum clube europeu conheceu (explicamos aqui). O time foi pentacampeão seguido de 1931 a 1935, uma sequência até então nunca vista na Itália, série fundamental para fazer da Vecchia Signora a equipe mais popular na Bota.

Os bianconeri, não por acaso, forneceram a base da seleção italiana da Copa de 1934. Orsi já jogava pela Azzurra desde 1929 (estreando com dois gols em um 6-1 sobre Portugal) e foi fundamental. Afinal, na decisão a Tchecoslováquia abriu 1-0 já depois da metade do segundo tempo e em seguida acertou a trave. O argentino respondeu em seguida, recebendo a bola de Giovanni Ferrari (um dos colegas de Juventus), driblando o marcador e colocando com efeito no canto direito do goleiro. Um golaço que forçou a prorrogação e, com isso, a sobrevida dos anfitriões, que estariam ameaçados de morte pelo fascismo se perdessem. No tempo extra, veio a virada e o título.

Boca, Platense, Almagro, Flamengo… e como músico, carreira artística que tentou nos anos 40

Mumo, porém, não ficou muito mais tempo naquele ambiente. Com a invasão da Abissínia (atual Etiópia) pelo exército de Mussolini, ele e outros argentinos sentiram a vinda de tempos soturnos e resolveram voltar à Argentina. Orsi primeiramente voltou ao Independiente (a contratar também outro argentino da Azzurra campeã de 1934, Atilio Demaría), desde 1931 um clube assumidamente profissional – a Juventus, por sua vez, só voltaria a ser campeã depois de quinze anos, hoje algo impensável. Ganhou na pré-temporada de modo invicto o Torneio Internacional Noturno, um dos tantos embriões da Libertadores: envolvia os cinco grandes mais as duplas uruguaias Nacional e Peñarol e as duplas rosarinas Newell’s e Central. A imagem que abre essa matéria retrata justamente o retorno promissor do astro.

Assim, ainda em 1936 ele vestiu mais uma vez a camisa da Argentina – prova da qualidade do ponta, pois até então ninguém havia passado tanto tempo entre uma e outra convocação. Foram oito anos até o Mumo voltar à Albiceleste, em outro 1-0 no Uruguai em Avellaneda. Foi sua última partida pela Albiceleste; ele é um dos três únicos que defenderam-na antes e depois de jogar por outra seleção. Na mesma temporada, passou ao Boca para a disputa da Copa Oro (nome do segundo campeonato argentino de 1936). Despediu-se do Rojo tendo jogado 282 partida e feito 118 gols, sendo na época o terceiro maior artilheiro dos diablos. Escalamos ele no time dos sonhos por ocasião dos 110 anos do Rojo, ano passado: confira aqui.

A carreira do veterano ponta tornou-se errática. Não durou muito nos xeneizes (14 jogos, nenhum gol) e em 1937 rumou ao nanico Platense, onde parecia voltar: marcou gols nas quatro primeiras rodadas, incluindo no Clásico de la Zona Norte contra o Tigre na estreia. Mas ao longo do restante do campeonato marcou somente outras quatro vezes. Ainda assim, reforçou o Peñarol no início de 1938 para a disputa do Torneio Internacional Noturno, um dos embriões da Libertadores: foi uma competição com algumas edições nos anos 30 e 40, em turno único de pontos corridos entre os cinco grandes argentinos (embora naquela edição o Boca fosse substituído pelo Estudiantes), a dupla rosarina e a dupla uruguaia. Orsi até deixou gol sobre o River e em homérica surra de 7-2 no Estudiantes, mas também foi derrotado por 2-1 pelo Nacional, que encerrou ali jejum de onze jogos sem vencer o Superclásico uruguaio. O rival ainda seria campeão por antecipação do Noturno, enquanto os aurinegros só ficaram em antepenúltimo.

O Flamengo “argentino” que encerrou em 1939 o pior jejum estadual do clube, doze anos: os quatro primeiros em pé são Carlos Volante, Agustín Valido, Raimundo Orsi e Arturo Naón. Alfredo González é o penúltimo jogador em pé. O sétimo em pé é Caxambu, brasileiro que jogaria no Gimnasia. O segundo agachado é Domingos da Guia, ídolo no Boca

O Noturno deu-se entre janeiro e março, ao passo que a liga uruguaia só começaria em julho. Orsi não ficou para a campanha campeã do Peñarol: em maio, pela 5ª rodada do campeonato argentino, o veterano já estreava pelo nanico Almagro, como o medalhão de uma equipe recém-ascendida. Com a camisa tricolor, ele marcou doze vezes em 23 jogos, incluindo sobre o Independiente (em derrota por 3-2) e River (derrota de 2-1). Não evitou o rebaixamento, mas o desempenho satisfatório repercutiu: jornais brasileiros chegaram a divulgar uma negociação com o Fluminense. As Laranjeiras negaram: “foi bom em tempos de saudosa memória” foi a justificativa impressa no jornal O Radical, a noticiar que o argentino então rumou a treinos no America e no Flamengo para se “leiloar”. Orsi terminou contratado com pompa por este, em um time cheio de argentinos em 1939. Eram cinco, como mostramos aqui. Por ironia do destino, justamente os dois que mais tinham reconhecimento em solo argentino não vingaram no Rio, e sim aqueles visto como de segunda ou terceira linha na própria terra natal…

A chegada de alguém de currículo tão qualificado à Gávea encheu de brio o ambiente de um clube que não era campeão estadual já tinha doze anos, até hoje o pior jejum flamenguista. A seca acabaria ali, mas a importância de Orsi, já bastante veterano, se limitou mesmo àquele fator psicológico; só participou de duas partidas da campanha, sem tirar Jarbas da titularidade na ponta-esquerda: derrota de 2-0 para o Vasco em 11 de junho, três meses após ter estreado, e 2-1 no Bangu em 30 de julho. Os destaques argentinos da companhia foram Agustín Valido, Carlos Volante e Alfredo González (os dois primeiros se eternizariam em especial na memória flamenguista, participando ativamente de mais títulos além daquele), ao passo que Arturo Naón – que havia passado pela seleção e ainda é o maior artilheiro do Gimnasia LP – foi o outro astro a não emplacar entre os cariocas.

Orsi jogou ao todo onze vezes pelo Flamengo, mas foi limitado basicamente a amistosos: foram oito, com seus dois únicos golzinhos vindo em um deles, um 6-3 sobre o Santos em 23 de agosto de 1939, na Vila Belmiro. Outro deles serviu de reencontro com argentinos, em derrota de 4-2 para o San Lorenzo em 18 de janeiro de 1940, em São Januário. Naquele ano, só foi usado uma única vez no estadual, substituindo Jarbas no 3-2 sobre o Botafogo, em 5 de maio; não jogaria mais depois daquele mesmo, sendo dispensado ao recusar-se a ir ao time B dos rubro-negros. De início, resolveu parar: foi como treinador, em 1941, que o Mumo voltou aos holofotes, assumindo o Rosario Central. Foi como bombeiro na temporada que resultaria no primeiro rebaixamento canalla, e ele realmente durou somente cinco rodadas, derrotado quatro vezes.

Orsi recebendo Pelé e Gilmar em visita do Santos a Mendoza, cidade onde o ítalo-argentino radicou-se

Para 1942, os holofotes desejados já eram o dos palcos em um sentido mais literal: ele sabia tocar violino e já vinha tentando carreira artística nas rádios portenhas. Em dezembro daquele ano, O Globo Sportivo até publicou a seguinte declaração do craque: “o que passou, passou. Tive pouca sorte depois. Foi aí que formei a orquestra e trabalho com afã para assentá-la. O football é que às vezes se mete no meio para atrapalhar. Eu te juro que não tenho feito outra coisa que fugir a essa ‘tentação’, mas, quando estou quase convencido de que estou curado, o diabo da ‘sereia’ não é que volta a cantar-me a velha canção de outrora?!… Um amigo me pede que treine seu quadro. Ponho-me a pensar e quando dou pela coisa, estou de chuteiras…”. De fato, chegou a despendurar brevemente as chuteiras em 1943, quando defendeu no Chile o hoje extinto Santiago National.

Ofertas para treinar clubes não lhe faltaram no outro lado da Cordilheira, na província de Mendoza. Orsi colheria enorme sucesso por lá nos anos 50 e 60: venceu em 1953 e 1958 a liga provincial com o Deportivo Maipú, nos dois primeiros títulos do Botellero – cujo artilheiro, Pedro Manfredini, seria recomendado pelo Mumo ao Racing e acabaria celebrado até no oscarizado filme O Segredo dos seus Olhos; em 1960, 1961, 1962 e 1965 com o Independiente Rivadavia, em uma das fases mais áureas desse clube; e em 1966 com o San Martín, ali campeão mendoncino apenas pela segunda vez. Esse título fez dos alvirrubros a primeira equipe de Mendoza a participar do Torneio Nacional, criado em 1967 para reunir os melhores clubes do interior com os melhores do campeonato argentino (que apesar do nome era restrito à Grande Buenos Aires, La Plata e Rosario, sendo renomeado de Metropolitano). O San Martín ficou em um honroso 10º lugar, colocação mais alta dos interioranos naquela edição do Nacional.

Orsi viveu para ver seu Independiente ganhar sete Libertadores, a última delas exatamente em ano de homenagem que o clube prestou-lhe pelos 80 anos, em 1984. Infelizmente, não pôde desfrutar em vida o segundo título da Argentina em Copas do Mundo. Mas podia orgulhar-se: jogou e foi campeão em gigantes de quatro potências, jogando em alguns dos maiores clássicos mundiais (Argentina x Uruguai, Racing x Independiente, Juventus x Torino, Juventus x Internazionale, Boca x River, Peñarol x Nacional, Flamengo x Vasco e Flamengo x Botafogo – não experimentou o Fla-Flu) em tempos bem distantes do nível atual de globalização do futebol. “Uma maravilha diminuta”, como bem sintetizou seu perfil no livro Quién es Quién en la Selección Argentina.

*Com agradecimentos a Esteban Bekerman.

À esquerda, Orsi como técnico do San Martín de Mendoza em 1967. À direita, retomando a camisa 11 na provável última homenagem em vida, dada pelo Independiente em 1984 antes do jogo contra o Olimpia pela vitoriosa Libertadores

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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