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Adeus a Leopoldo Luque, a maior história de superação da Copa 1978

Tente esquecer a polêmica e exercite ver o Argentina 6-0 Peru como uma superação. Assim se torna simbólico que o quarto gol, já suficiente para garantir a classificação da Argentina à final, bem como o último (o captado pela foto acima), tenham sido anotados por Leopoldo Jacinto Luque. Afinal, El Pulpo (“O Polvo”) personificaria como ninguém o quesito “superação” na saga do primeiro título argentino nas Copas. Ele não só luxou um ombro como simplesmente perdeu no decorrer do torneio um irmão que procurava assisti-lo pessoalmente no estádio. Segundo esse ídolo do River forjado no Unión, nada lhe foi fácil na vida, nem mesmo nos momentos doces. Vale relembrar um pouco dessa trajetória hoje, revisando a nota publicada em 2019 quando o ex-centroavante fez 70 anos. Com uma esquecida passagem pelo Santos, hoje Luque tornou-se mais uma saudade imposta pela Covid-19. 

Ele não teve uma infância miserável, mas veio de uma família humilde que incluía seis irmãos – “meu velho não compra um par de sapatos para que eu tivesse minhas chuteiras, e minha mãe não comprava um vestido para me dar o dinheiro do ônibus para treinar”, declarou em 2016 em longa entrevista à El Gráfico da qual tiramos as outras aspas dessa nota. Se dependesse da família, seu esporte seria o ciclismo, modalidade em que o pai competiu até os 45 anos, chegando a ser federado – a casa dos Luque possuía até uma oficina e era um ponto de encontro de outros ciclistas. O garoto estava exatamente treinando pedaladas quando no caminho avistou um seminário onde padres jogavam bola. Um o convidou e, embora fosse mais novo que os adversários, saiu-se bem e o convite foi reiterado, embora seu físico magro o fizesse ser proibido de jogar no gol.

Luque manteve as peladas às escondidas até contar ao pai, que, embora irritado com a mentira, preferiu um ano depois levar o filho, já com 12 anos, às divisões de base do Unión, o time de coração da família (“em Santa Fe, ou és do Unión ou és do Colón, e minha madrinha me presenteou com uma camisa do Unión assim que nasci, então peguei carinho por essas cores”). Afinal, o garoto, na quarta série colegial, já se garantia em jogar bem com os da sexta. Mas a aprovação do Tatengue não foi imediata: em 1969, Luque foi emprestado ao Gimnasia de Jujuy e no ano seguinte ao Central Norte de Salta, sob solicitação de José Américo Ayala, ex-zagueiro unionista que treinava esses dois clubes. O atacante chegou mesmo a ter passe livre em 1971 e resignou-se em jogar a liga regional santafesina, primeiramente no Guadalupe e depois no Atenas da cidade de Santo Tomé, até aparecer rapidamente no Torneio Nacional de 1972 pelo Rosario Central: quatro jogos, três gols.

Resgatado pelo Unión, Luque enfim estreou em 1973 no time principal do Tate. Isso significou o desenvolvimento de seu característico bigode, uma promessa que fizera se pudesse jogar. O que ainda não significava era viver exclusivamente do futebol, especialmente com os alvirrubros na segunda divisão, onde contribuiu com cinco gols. Ele ainda precisava complementar a renda trabalhando ora em uma quitanda de um amigo do pai (“juntava frutas e verduras e me pagavam por caixote”), ora em uma fábrica de sapatos e por fim como ajudante de cenário no Canal 13 de Santa Fe; ele cursava Radiocomunicação. Em 1974, a segundona teve uma intrincada fórmula com fases progressivas de grupos: o Unión começou em um de dez, avançando como segundo colocado a um segundo grupo de dez, depois a um quadrangular-semifinal e por fim a um quadrangular final – ou não, pois precisou jogar uma partida-desempate com o Estudiantes de Buenos Aires para definir quem subia como vice do Temperley. Luque marcou três vezes cada nos dois primeiros grupos e outras duas no primeiro quadrangular.

No Unión, com o característico bigode raspado após o acesso à elite, e no River: os dois clubes onde Luque foi ídolo

Dessa vez, a promessa em caso de acesso era por raspar os bigodes, o que foi feito e mantido por algum tempo até serem retomados: “sinto que é parte da minha identidade, não me vejo sem bigode. Hoje é raro que os jogadores usem bigode, deixam mais essas barbas gigantes, parecem Bin Laden, e cheios de tatuagens. Não gosto”. Quando o time subiu, o técnico era Carmelo Faraone, substituído em 1975 por Juan Carlos Lorenzo, que vinha do Atlético de Madrid vice da Liga dos Campeões. Aí Luque começou a ser um jogador mais profissional: “veio Lorenzo, expliquei minha situação e consegui que me passagem mais e deixei o canal. Quem mudou meu físico foi El Toto Lorenzo. Ele dizia sempre: ‘vou fazer esses jogadores baixarem o peso’, mas comigo foi o contrário, me fez subir oito quilos. Começou por tirar as sobremesas de [Rubén] Suñé e dar a mim, haha. Lorenzo começou a fazer eu me concentrar um dia antes que o resto para que descansasse bem, me alimentasse bem e depois me levava ao ginásio e me fazia uma rotina física forte, e ficava aí me controlando. Me adotou como um filho, me ajudou muitíssimo”.

Também foi Lorenzo quem deslocou Luque de armador para centroavante, para não concorrer com o reforço Victorio Cocco, a quem o técnico já conhecia dos tempos em que treinava o San Lorenzo campeão dos dois torneios argentinos de 1972. Os resultados logo surgiram: em sua reestreia na elite, o Unión ficou em quarto lugar no Metropolitano de 1975, e a meros dois pontos do vice-campeonato. Era a melhor campanha de uma equipe santafesina até então. Luque fez oito gols, incluindo sobre os grandes Racing e San Lorenzo e em cada jogo contra o campeão River. Terminou convocado, ainda como jogador do Tatengue, à seleção “do interior” que representou a Argentina na Copa América, estreando pela Albiceleste já marcando três gols, no 5-1 sobre a Venezuela pela competição, ainda o recorde de um estreante pela seleção. Foi aí que ele recebeu o apelido de Pulpo (“Polvo”), do colega Américo Gallego, em referência ao ostensivo uso dos braços para cobrir-se da marcação.

A grande campanha clubística e os gols no River também levaram a uma prolongada negociação com os millonarios, embora o próprio jogador só fosse saber na antevéspera da estreia do Torneio Nacional de 1975 – ainda estava concentrado com o Unión para o Clásico Santafesino com o Colón, em um campeonato cuja rodada inaugural era marcada pelos dérbis. Repentinamente estava na iminência de jogar o Superclásico mesmo; ele depois veio a saber que a demora do negócio se deveu à relutância da comissão diretiva em contratar alguém que já tinha 26 anos, mas o lendário técnico Ángel Labruna foi impassível: “quero Luque sim ou sim”. Após assinar papéis em um hotel e passar pela revisão médica, só chegou à noite no Monumental e não chegou a ser reconhecido pela portaria. “Depois de um momento me fizeram passar, subi à concentração e me apresentaram a todos: para mim, era um sonho, estavam os jogadores consagrados…”. Caiu de vez nas graças de Labruna ao rechaçar a proposta dele de jogar o primeiro tempo da prévia, uma partida de equipes B dos dois clubes (“me disse: ‘era isso o que queria escutar, amanhã és titular'”).

Contratado para suprir a ausência de Carlos Morete (o artilheiro do Torneio Metropolitano, torneio que encerrou jejum de dezoito anos do Millo), vendido ao futebol espanhol, Luque não lembrava muito o antecessor, um homem de área tosco e até vaiado, ainda que efetivo, enquanto o novato tinha mais técnica para também armar recuado o jogo. Teve uma estreia auspiciosa, com gol em vitória por 2-1 sobre o grande rival em plena La Bombonera; mas foi enganosa: ele tardou até ser adaptar-se, marcando só outras quatro vezes no certame – embora o outro fosse curiosamente no jogo do título, um 2-1 sobre o Rosario Central. Enquanto ainda não se firmava no River, seu ex-técnico Juan Carlos Lorenzo rumava ao Boca levando consigo outros ex-colegas daquele forte Unión, casos de Hugo Gatti, Rubén Suñé e Heber Mastrángelo. Lorenzo queria leva-lo e lhe telefonou para saber se estava autorizado a iniciar uma negociação direta entre rivais.

Os gols de Luque que tranquilizaram argentinos em 1978: empatando na estreia com a Hungria (note sua camisa 14) e anotando o quarto sobre o Peru

Apesar da resposta negativa, Lorenzo continuou a insistir publicamente por Luque por um tempo, o que contribuía para a torcida riverplatense se colocar contra o bigodudo: “um dia fomos comer em Punta del Este, em um bar de merda bem afastado para que ninguém nos visse, e lhe disse: preciso que não me peças mais, que não me chame mais, porque me vaiam, dizem que quero ir ao Boca e não é assim’. Não fez mais”. No ano seguinte, o River amargou o vice na Libertadores e no Torneio Nacional, onde foi derrotado na final justo pelo Boca. Mas, individualmente, Luque começou a se firmar. Inclusive marcou os cinco gols de um 5-0 no San Lorenzo, além de outros treze entre os torneios Metropolitano e Nacional e mais dois na Libertadores. Seguiu assíduo na seleção, marcando inclusive um dos gols de um 3-0 sobre o Uruguai dentro do estádio Centenário, a última vitória argentina sobre o rival em Montevidéu até 2009.

Os números melhoraram em 1977, em que Luque e o River venceram o Metropolitano com dezessete gols do bigodudo, continuamente chamado pela Argentina e confirmado sem surpresas para a Copa do Mundo, o que rendeu algumas emoções – “meu ídolo foi Johan Cruijff. Via o Mundial de 1974 pela televisão, estava na Série B com o Unión, e fazia contas e pensava que no seguinte poderia ter a chance. Veja como são as coisas, que no Mundial de 1978 me calhou usar o número 14, pela ordem alfabética, o mesmo número que usava Cruijff”. A ordem alfabética dos sobrenomes, de fato, foi rigorosamente adotada na numeração argentina, a ponto do meia-armador Norberto Alonso usar a camisa 1 e o goleiro titular Ubaldo Fillol, a 5. Segundo a biografia de Maradona, Luque também foi um dos poucos astros que se dignaram a tentar consola-lo após o corte do adolescente.

Luque, por sinal, foi justamente o homem que foi substituído no decorrer de um amistoso em 1977 contra a Hungria para que Dieguito fizesse sua estreia oficial pela Albiceleste. No drama do corte, “me aproximei dele, pus uma mão no seu ombro e fomos caminhando. Lhe disse: ‘imagino o que possas sentir nesse momento, ou não, mas se isso acontece comigo, sabes o que teria que fazer, Diego? Levar um tiro nos testículos, porque já estou com 28 anos e não vou ter outra chance de jogar um Mundial. És um garoto e vais jogar duas ou três Copas. Vais arrebentar e sair campeão do mundo”. Sem Diego, o craque mais associado à conquista foi Mario Kempes, mas inicialmente era Luque quem exerceu o papel de salvador, na fase de grupos: na estreia, a Hungria abriu o placar com dez minutos e em cinco Luque arrancou o empate, aproveitando rebote do goleiro. Também envolveu-se na virada, quando dividiu com o goleiro e permitiu que Daniel Bertoni aproveitasse o gol livre. No jogo seguinte, além de acertar a trave uma vez, um chute seu, ao resvalar no braço de Marius Trésor, cavou pênalti convertido por Daniel Passarella para abrir o placar no último minuto do primeiro tempo.

Michel Platini empataria, mas Luque garantiu a classificação antecipada com um golaço, elevando a bola para, girando o corpo e aguardando-a quicar, desferir da meia-lua uma bomba no canto francês. Mas foi exatamente nesse dia que o atacante perdeu um irmão, embora o próprio pai de ambos proibisse que El Pulpo soubesse antes da partida. E foi justamente nesse jogo que ele luxou o ombro: “me baixaram pela escada do túnel, o Dr. Oliva me pôs anestesia porque tinha uma dor impressionante e acomodaram o cotovelo, fizeram uma bandagem, fizeram uma tipoia e me mandaram ao vestiário. Mas dei dois passos à direita, me lembrei da minha família, mudei de rumo e entrei no campo, porque El Flaco [Menotti] já havia feito as duas substituições [não se permitia a terceira ainda] e não podíamos ficar com dez. Imaginei que minha mãe era capaz de vir num pique de Santa Fe se não voltasse a campo. Entrei para que vissem que caminhava. [Meu irmão] havia falecido de manhã. No outro dia, cedo, na concentração, veio o preparador Pizzarotti e me disse: ‘Leopoldo, toda a sua família está aí’. Pensei que haviam viajado pela minha lesão”.

O golaço que deu a vitória sobre a França, classificando a Argentina antecipadamente à segunda fase. No mesmo dia, seu irmão havia falecido

O irmão havia tentado viajar de ônibus na véspera. Buscou tarde demais a passagem e precisou providenciar a carona em um caminhão que se acidentou na neve de uma curva. “Veja uma coisa: sempre se falou da relação dessa seleção com os militares, mas quando fomos com meu pai, minha mãe e minha cunhada reconhecer o corpo, em San Isidro, não havia ninguém do governo que nos desse uma mão. E mais: tive que pedir grana a Passarella, da vaquinha que tínhamos no grupo, para pagar a ambulância e o traslado do corpo a Santa Fe. Nem sequer uma autoridade me disse: ‘o acompanho no sentimento’. Falam muitas idiotices, entendes?”. Enquanto os colegas perdiam para a Itália, Luque se ocupava no velório quando o próprio pai ordenou-lhe que voltasse à concentração. Após ausentar-se também contra a Polônia, regressou contra o Brasil, voltando com vontade, mesmo sob infiltração: nos primeiros dez segundos, já havia entrado forte em Batista. Levaria o troco, saindo com um olho roxo após cotovelada de Oscar, mas soube catimbar bem quando necessário.

Se contra o Brasil ele e todos os jogadores passaram em branco, Luque foi essencial diante do Peru. No minuto seguinte ao 3-0, alcançado aos 5 do segundo tempo, ele aproveitou sobre de um cabeceio de Passarella para emendar livre um peixinho para assinalar o gol da classificação (“por um momento, toda a minha dor passou”). Aos 27, anotou o sexto aproveitando uma roubada de bola na própria defesa peruana para tocar na saída de Ramón Quiroga. Até ali, tinha a mesma quantidade de gols de Kempes, que só veio a se isolar como símbolo maior da conquista na grande decisão – onde abriu o placar em correria após receber do colega. Na prorrogação, Luque poderia ter guardado seu próprio gol não fosse um lance fominha de René Houseman, que preferiu arriscar sem ângulo. O terceiro gol argentino, de Bertoni, originou-se em falta sofrida pelo bigodudo, que terminou sangrando pelo nariz após cotovelada de um dos gêmeos Van de Kerkhof.

Já com 29 anos, Luque decaiu rápido. Embora titular do Metropolitano de 1979, só marcou quatro gols, ainda que um deles no 5-1 na decisão com o Vélez. Ainda fez nove no Nacional, também vencido. O tri veio no Metropolitano de 1980, com nove gols do Pulpo. Mas ele começava a perder espaço para a revelação Ramón Díaz, tanto no clube como na seleção. Luque despediu-se da Albiceleste em janeiro de 1981, no Mundialito do Uruguai; após a Copa, fizera doze jogos, com só quatro gols, dois deles em um único jogo – um 3-1 sobre a Escócia no qual ele confessou ter na véspera implorado a Maradona por assistências e Diego, lembrando-se do bom gesto do veterano naquele drama do corte, tranquilizou-o. O veterano fez um dos gols da partida que assegurou com quatro rodadas de antecedência o tricampeonato no Metropolitano de 1980, mas ele e outras figuras históricas não escaparam de questionamentos pelas constantes decepções na Libertadores. A queda por 6-2 para o Newell’s nos mata-matas do Nacional foi o fim da linha para Luque em Núñez, onde deixou 84 gols em 207 jogos.

Voltou ao Unión e fez um bom Metropolitano de 1981, com doze gols marcados. Foi seu canto do cisne; com 32 anos, passou a trotar por diversos clubes, inicialmente pelas camisas pesadas de Racing (em 1982, com só um gol marcado) e Santos (três meses nulos em 1983), para então integrar o Boca Unidos de Corrientes em disputas regionais, sem que conseguisse classifica-lo ao Torneio Nacional. Ele ainda reapareceu na elite argentina em 1984 como reforço do reestreante Chacarita, mas já sem marcar gols. Em 1986, pendurou as chuteiras no Deportivo Maipú na liga provincial mendoncina. No mesmo ano, teve uma experiência breve de treinador interino no Unión, polindo em especial Oscar Passet, Ricardo Altamirano e Alberto Acosta, todos com futuro em times grandes e na seleção argentina. Vencedor da Copa de 1986, Claudio Borghi disse que topou rumar do gigante Independiente ao Tatengue em 1990 muito porque significaria conviver com seu ídolo de juventude.

El Pulpo terminou por radicar-se em Mendoza e viu seu patrimônio dilapidar com o fracasso de uma pizzaria e em dois divórcios. Sofreu até um infarto quase fatal como técnico do Guaymallén local. Em 2014, ele foi reempregado pelo River como observador oficial de jovens talentos locais naquela região do Cuyo. Mas nos últimos anos, falar em Leopoldo Luque já era falar do médico pessoal de Maradona. O xará em nome e sobrenome vem enfrentando acusações de negligência e até falsificação no tratamento de Dieguito e não demorou para que as redes sociais começassem a lamentar que hoje tenha partido “o Leopoldo Luque errado”, nas palavras desses fanáticos. 

Santos, Racing, Boca Unidos e Chacarita: fica a curiosidade da aparição de Luque por essas camisas, pelas quais, já trintão, não teve êxito

 

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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