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35 anos do último título do Ferro Carril Oeste, maior clube argentino dos anos 80

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“Verdolagas” celebram o 3-0 no River em pleno Monumental na final

Lá estavam, reunidos em 2004, o velho Carlos Griguol com antigos pupilos. Víctor Marchesini, Jorge Brandoni, Carlos Barisio, Juan Rocchia (um cinquentão barrigudinho que ouve do mestre um “estás mais magro do que quando jogavas”), Mario Gómez e Alberto Márcico se reúnem com o mestre em nome do centenário que o Ferro Carril Oeste viria a completar naquele ano, e para relembrar os incríveis momentos dos anos 80 neste clube cuja principal vitrine, o futebol, está sumida desde 2000 nas divisões inferiores. Um contraste com aquele que talvez é o clube de maior sucesso poliesportivo no país, tamanho que foi premiado até pela UNESCO em 1988 – falamos aqui sobre este reconhecimento mundial.

“Pago eu”, sentencia Griguol sobre o consumido. Como nos tempos em que envergavam o manto verdolaga, os demais se portam disciplinados e não questionam tanta autoridade, a mesma que tornava-lhes escassas duas décadas antes as necessidades de se enclausurarem em concentrações. “Cada um sabia como se cuidar, o que devia fazer. E os garotos viam os maiores e os imitavam”, explica o ex-técnico, que não tem trabalho em fazer Marchesini, que se despedia da reunião, a ficar mais.

Os anos 80 foram mesmo a época dourada do Ferro, também no futebol: nele se obteve ali os dois títulos de elite. Já recordamos do primeiro, expondo também um pouco do sucesso em outras áreas, neste outro Especial. O segundo fez ontem 35 anos. Embora tenhamos preferido recordar em 30 de maio o centenário da principal revista esportiva do país, a El Gráfico, vale resgatar a conquista que pôs a sumida equipe alviverde como mais vencedora até do que o rival Vélez (com quem até 2000, quando foi rebaixado, fazia o Clásico del Oeste, chamado assim por se originarem nesta zona de Buenos Aires) ou o Newell’s – que só tinham uma taça na primeira divisão até 1993 e 1988, respectivamente.

Márcico, eleito o melhor jogador argentino em 1984. Ao lado, Noremberg driblando Pumpido no gol mais bonito da final (após jogada de Márcico)

Alguns dos presentes na volta olímpica três décadas atrás já haviam experimentado os (dis)sabores do ascenso. Casos de Héctor Cúper, Arregui e Oscar Garré, que haviam vencido a segundona em 1978. O “barrigudinho” Rocchia também, como o artilheiro com 15 gols. Ele esteve no título de 1982, mas já saíra em 1984, assim como outros expoentes: o ícone-mor Gerónimo Saccardi, Miguel Juárez (falecido nessa semana, e a quem essa nota fica como singela homenagem) e Andreuchi também haviam deixado o Ferro na entressafra dos dois títulos. Outras ausências iniciais se deviam à seleção: Garré, Cúper, Arregui e Márcico estavam com ela na disputa da Copa Nehru, na Índia. Mesmo questionado, Garré seria o único verdolaga presente na Copa do Mundo de 1986 e chegaria a ser jogador em atividade com mais partidas na elite argentina no início dos anos 90, quando seguia no FCO.

Mas a raposa Griguol planejou bem. Ele estava no time do bairro de Caballito desde 1979. Meia década de trabalhos lhe permitiram conhecer bem o plantel desde a base, e de lá pinçou os reforços. Os tais jovens que, como ele explanara, vinham observando os maiores. Dentre tais, Fantaguzzi, Gargini, Noremberg ou Esteban González, que em 1985 se tornaria o maior artilheiro verdolaga na Libertadores com gols sobre Vasco, Fluminense e no futuro campeão Argentinos Jrs. Ou ainda o goleiro Basigalup, que ocupava a vaga outrora de Barisio, que até hoje tem o recorde de minutos seguidos sem sofrer gols no país (1.075).

“O vestiário era muito bom. Os que subiam [das categorias inferiores] se adaptavam em seguida”, já disse outro, Mário Gómez. Ainda segundo Gómez, “não havia incorporações, era tudo uma dinâmica natural. Se ia embora alguém, em seu lugar Carlos promovia outro, ou ocupava seu lugar quem o substituía nos jogos. Era um grupo de 20 jogadores, reduzido, mas nunca houve um problema. O povo por aí não entendia”. Já Brandoni, volante de corte preciso e rápida distribuição de bola, completou que “aquele que entrava sabia o que tinha que fazer. A ordem era uma das maiores virtudes da equipe”.

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Arregui, Brandoni, Garré, Cúper, Marchesini e Basigalup; Agonil, Acosta, Márcico, Noremberg e Crocco

Tanta ordem que aquele Ferro ficou negativado às demais torcidas. O time em 1982 conseguira a façanha de ser campeão profissional invicto (só River, Boca e duas vezes o San Lorenzo já conseguiram isso), mas já ali era rotineiramente “cornetado” por ter um jogo chato de assistir. Em 1984, pelo depoimento dos jogadores, isso teria até piorado. O FCO vinha gerando menos jogadas de gol. Mas o aproveitamento das produzidas aumentou. “Vínhamos de uma época em que fabricávamos dez situações de gol e metíamos uma. Depois, com menos chegada, convertemos mais”, disse Márcico. Exemplo de contundência: o tal Esteban González só jogou três vezes. E marcou três gols.

A ordem tática, jogo associado, especialmente em jogadas de bola parada, trabalho de bloqueio, pressão na marcação ou com bola (graças à grande preparação física proporcionada por Luis Bonini, arrancado do vitoriosíssimo basquete do Ferro e futuramente até na seleção argentina de Bielsa) e alguma inventividade vinda de Márcico e do paraguaio Cañete liderou seu grupo do Torneio Nacional com Altos Hornos Zapla, Platense e Instituto de Córdoba sem deslumbrar. Dali passou-se às oitavas-de-final, a fase de maior sofrimento. A única derrota da campanha veio ali, para o Huracán, 1-0 na casa adversária. Como o Ferro havia vencido na sua pelo mesmo placar, os pênaltis definiriam a disputa. Venceu por 7-6.

Pelas quartas, o timaço do Independiente que naquele mesmo ano venceria pelas últimas vezes a Libertadores e a Intercontinental. Torneios ao qual se classificou após vencer o Argentinão de 1983 com dois pontos de vantagem sobre o FCO. Com os rojos em 1984, empatou-se em casa em 1-1 e fora por 0-0. Mas, em vez de eliminado, o Ferro teve sobrevida em uma prorrogação, vencida graças a um gol de Arregui para o inconformismo do maior craque oponente, Ricardo Bochini: “se eu fosse espectador, não iria ver o Ferro”. Tata Martino, na época outro elegante meia, craque do Newell’s e longe de sonhar em treinar um dia o Barcelona ou a seleção nacional, foi na mesma linha: “é um time mecanizado. Eu não gosto”.

Garré (campeão da Copa de 1986), Cúper (técnico do Egito na de 2018), Cañete, Crocco, Márcico e Gómez

“É chato, sem nenhuma dúvida. Para enfrenta-los, é complicado. Claro, complicado não é sinônimo de bom” foi o pensamento de outro meia talentoso, Daniel Valencia, inicialmente o meia-armador titular na Copa 1978. Valencia jogava no Talleres de Córdoba, que foi a vítima seguinte daquele time que parecia treinado por um Muricy Ramalho da época. O desprezo alheio só motivava o grupo. “Sempre nos criticaram. (…) Canalizávamos em jogo”, já descreveu Brandoni.

O Talleres perdeu fora por 1-0 e não saiu de um 1-1 em Córdoba, ao passo que os torcedores verdolagas já tinham um canto-resposta às críticas: “Dicen que somos un equipo aburrido/que especulamos, que jugamos para atrás/me chupa un huevo, todo el periodismo/a Caballito cada vez lo quiero más” (“Dizem que somos um time entendiante/que especulamos, que jogamos para trás/me chupa um testículo, todo o jornalismo/a Caballito cada vez eu quero mais”, em tradução livre).

Mas não houve melhor resposta do que o jogo de ida das finais. Seria nada menos que contra o estrelado River de Pumpido, Olarticoechea, Alonso, Héctor Enrique e Alfaro, todos campeões em alguma Copa do Mundo pela Argentina, além do craque uruguaio Francescoli. “Diziam que jogávamos sem pressões, mas nós mesmos nos pressionávamos”, afirmou Márcico sobre um Ferro ao qual já não bastava ser só vice. Nem ser um time-relógio indecifrável para os grandes e devastador só aos menores (aos quais se incluía na época o rival Vélez, que chegou a levar dois 4-0 em casa na década).

O primeiro gol da primeira final, um cabeceio de Cañete (à direita), que assim fez também o único gol do segundo jogo. Ao lado, o preparador Bonini com o técnico Griguol

Em pleno Monumental de Núñez, o River já estava triturado por 3-0 aos 35 minutos do primeiro tempo. Griguol alertara sobre a defesa meio lenta do oponente, que proporcionava a chance de estar cara a cara com Pumpido em poucos toques. O primeiro foi em cabeceio de Cañete após jogada de Márcico (futuro ídolo no Boca, seu clube do coração mas que já disse que a partida da sua vida foi aquela: “inesquecível, queria que não terminasse mais. O Monumental ficou mudo. Toda a imprensa me deu 10. Bailamos o River de Alonso e Francescoli”) pela ponta-direita e falha na tentativa da zaga millonaria em “plantar” impedimento. Na segunda, Márcico elevou a bola a Noremberg, que driblou um Pumpido fora da área antes de concluir. No terceiro, Márcico passou a Gargini, que sofreu pênalti de Borelli. Márcico converteu no canto direito.

El Gráfico, principal revista argentina esportiva, se rendeu: “O jogo do Ferro foi perfeito. Foi futebol para ver, vibrar e desfrutar”. “Nos últimos 55 minutos do jogo de ida e nos 70 que durou o segundo, quando o River tentava armar avances e desenvolve-los, tínhamos a sensação de que não podia gerar perigo de gol nem se jogasse três dias seguidos”. O segundo jogo durou só 70 minutos porque torcedores do River ensandecidos tentaram pôr fogo no estádio Arquitecto Ricardo Etcheverri (cujo apelido é um inflamável Templo de Madera). O placar agregado já estava no 4-0 desde os 2 minutos do primeiro tempo, com um cabeceio no ângulo do incansável Cañete desde a entrada da grande área.

“Começamos a trabalhar em 1980, com a ideia de evitar o rebaixamento. Foi um ano de transição. Ali se fincaram as bases para organizar todo o futebol do clube. Depois (…) apareceu a chance de apontar aos títulos. Enquanto isso, se fazia um trabalho silencioso, com uma grande ambição: que o Ferro não se visse obrigado a comprar quando chegasse a instância de reposição” foram algumas palavras de Griguol. Estas foram as suas primeiras no clube: “os jogadores são a base. E para alcançar os mais altos níveis, já não basta só o talento individual. Acreditamos no drible, no toque, na marcação, no cabeceio, no pique, na pausa (…), mas todos unidos atrás do objetivo maior: a equipe”.

“Ferro, primeiro em tudo”, diz nota da El Gráfico já em 1985 destacando o sucesso poliesportivo do clube

O título de 1982, que já havia sido antecedido por dois vices em 1981 (ao Boca de Maradona no Metropolitano e ao River de Kempes e Passarella no Nacional, após eliminar o rival Vélez nas semis), mostrou que a parte de “apontar aos títulos” se cumprira. A outra parte se demonstrou naquele fim de maio de 1984, com diversos jovens da base demonstrando maturidade nos grandes testes que tiveram na segunda campanha campeã argentina do Ferro Carril Oeste, a mais bem consistente equipe de futebol entre 1981-85 no país. E por pouco, não veio a terceira no mesmo ano, no Metropolitano, perdido só por 1 ponto para o Argentinos Jrs – exatamente o asa-negra daquele clube, nacional e internacionalmente.

Mas o tri impedido não azedou o ambiente. O ano de 1984 em Caballito foi especialmente festivo muito além do futebol: ao ser campeão no handebol, o Ferro conseguiu a última taça que faltava para poder dizer ser uma instituição campeã em todos as suas atividades federadas na época, ocasionando uma festa de todo o clube – que só naquele mesmo ano abarrotou a sala de troféus com 83 títulos metropolitanos e sete nacionais através de seus diversos nadadores; enviou os dois representantes da seleção no mundial de tênis-de-mesa (Néstor Tenca e Armando Cerrigni); teve consigo o corredor líder do ranking mundial júnior nos 800 metros: Luis Migueles, eleito o melhor corredor argentino de 1984 nos Prêmios Olimpia, Oscar do esporte argentino que naquele mesmo ano premiou Márcio no futebol.

“Nunca houve uma organização desportiva como o Ferro nos anos 80. Isto era sempre uma festa, inclusive até quando havia problemas”, pontou Sebastián Uranga, do basquete verdolaga campeão sul-americano em 1981, 1982 e 1987 antes de revelar Luis Scola para então ser até rebaixado em 2004. Gabriel Darrás, também do elenco vencedor, resumiu: “Ferro era o clube dos sonhos, em que todos queriam jogar”. Tempos que ensejaram aquele reconhecimento da UNESCO. E que fazem falta também nos gramados…

*Muitas informações vieram do livro Ferro 100, exemplo de livro sobre um clube a não se restringir só a seu futebol. E agradecemos ao leitor @DiogoTrimetal pela lembrança!



Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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