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55 anos de Ramón Medina Bello

U-ru-gua-yo! U-ru-gua-yo!“, se gritava no Monumental de Núñez em 13 de julho de 1986, na primeira rodada do campeonato de 1986-87. A torcida do River reservava esse grito para celebrar o ídolo Enzo Francescoli, mas ele acabara de se transferir ao Racing de Paris. Em dado momento, o grito também não foi destinado a Antonio Alzamendi, outro uruguaio ídolo dos millonarios e autor de gol naquele data. O cântico foi entoado pela torcida de outro Racing, o de Avellaneda, após Ramón Ismael Medina Bello marcar ali seu primeiro gol como profissional, no empate em 1-1. Ídolo nas duas instituições, El Mencho chega hoje aos 55 anos. Hora de revisar e atualizar essa mesma nota, publicada originalmente quando ele completou 50.

Racing

Aquela gritaria foi um equívoco. Não foi algo inédito: nos juvenis do Racing, que o descobrira no ignoto clube Urquiza, da cidade-natal do  atacante, chegou a ser cobrado em especial por confundirem-no com o filho de Norberto Raffo, artilheiro racinguista na vitoriosa Libertadores de 1967. Já sobre aquele jogo, espalhou-se que aquele garoto teria nascido no Uruguai, quando na realidade ele nascera na cidade de Gualeguay, na província de Entre Ríos, daquela região do nordeste argentino na qual o gaucho (“gáutcho”, na pronúncia espanhola) é figura típica. Mencho é outro sinônimo dessa figura do vaqueiro. Medina Bello estenderia o apelido a seus arremates: menchazos poderiam significar tanto aquele chute tragicomicamente torto para as arquibancadas (como juvenil, ele de fato chegou a mandar a bola para a rua) como aquelas patadas que furam redes. Ele era capaz das duas coisas e seu silencioso mas sorridente carisma o blindava nas falhas.

Ele não fugiu do tema em longa entrevista que deu em 2007 à revista El Gráfico: “é lindo que se lembrem. Me deixa contente. Sempre me encontro com torcedores que me dizem: ‘fazias gols mas, às vezes, chutavas muito para cima’. Aí lhes digo: ‘o que não tenta, não faz gols’. E riem”, relembrou com humor em longa entrevista em 2007 à revista El Gráfico. Naquele gol, as facetas andaram quase juntas: a bola foi ao alto, mas caiu. Foi por cobertura. E era a estreia oficial dele pelo Racing (após uma oportunidade inicial no próprio Monumental, mas em amistoso contra o Montevideo Wanderers): “estava muito nervoso nessa partida. Toda essa gente nas tribunas e em frente nada menos que o River. Por sorte, fiz um gol… não podia acreditar. Minha primeira partida e fazendo um gol. Pensei em minha família, lá em Gualeguay. O felizes que deviam estar…”, resumiu já em 1987 à mesma revista.

“Eu saí dos juvenis do Racing. (…) Estive na pensão, foi o clube que me permitiu estrear na elite, justo contra o River (…). São coisas que te marcam. Meus melhores anos foram no River, mas do Racing não me esqueço”, respondeu ele à indagação daquela El Gráfico de 2007 (de onde tiraremos a maioria das aspas dessa nota) sobre qual clube ele pensava ter ficado mais marcado. Vale ressaltar que a Academia acabava de voltar à elite naquela partida. Fugia de sua pior fase, dois anos de estadia do gigante na segundona. Mas confiava em quem se mostrava já um artilheiro pelas equipes sub-18 e sub-19 do clube, com 45 gols registrados nos torneios de base. E isso que, após ser elogiado pelo treinador juvenil Hugo Zarich, esperou a aprovação oficial do clube mais do que o avisado inicialmente…

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Medina Bello no River e, à esquerda, como o terceiro agachado no Racing de 1988 – o goleiro é Fillol e o gandula em pé é o juvenil Carlos Galván, depois ídolo no Atlético Mineiro

“Nunca fiquei muito louco por isso. Talvez se nota mais em outros jogadores que começam a chutar desde fora da área quando nunca o fizeram. Eu sigo sempre igual. Pego de todos os lados. ‘Erro’, mas em algum momento o jejum se vai cortar”, disse na mesma entrevista de 2007 sobre quando errava. E como errava: no Racing, foram só 26 gols em 124 jogos, média muito baixa para um atacante. Isso já era assunto na nota de 1987: “foi muito importante [o técnico Alfio] Basile em tudo isto. Me aconselhou muito bem. Que jogue sem medos. Que chute a gol mais frequentemente e desde fora da área. Que eu chuto forte. Que não tenha medo se a bola vá para fora. Que insista. Que tenho todo o seu apoio… para mim, isto é muito importante. Desde que Basile me deu essa confiança, jogo melhor. Agora chuto melhor do que antes com a canhota. Quase, quase te diria que chutou com as duas pernas. Me falta definir melhor. Me falta serenidade”.

Os poucos gols acabaram marcantes, como os dois que fizera no clássico com o Independiente ou outro em um 6-0 no Boca já na temporada 1987-88, que culminaria com o título da primeira Supercopa Libertadores. Aquele foi o único troféu que o Racing venceu entre 1967 e 2001 e foi o único título desfrutado por Medina Bello na Academia. Mesmo antes, ele já fazia por onde na terrinha natal, ainda que tardasse um pouco a ter o dinheiro necessário a cumprir o sonho de arrumar uma casa melhor localizada aos pais – “fica muito perto do rio e cada vez que há uma enchente inunda tudo”, lamentava em 1987, quando também jurou: “em Gualeguay, estão loucos comigo. O povo me para na rua. Sabias que Burruchaga [nota nossa: ícone do rival Independiente] também é de lá? Bem, agora todo o povoado passou a ser Racing. Agora todos me conhecem, assino autógrafos”.

A entrevista de 2007, por sua vez, já podia olhar para o que se sucedeu depois em Avellaneda: “havia um bom time. Mas no Racing não é nem era fácil. O povo torce, é muito seguidor, mas é difícil. Além disso, a situação institucional nunca ajudou. Nesse sentido, eu tive sorte: quando começaram as grandes confusões, passei ao River. (…) A Supercopa foi algo bonito, mas não se pôde mais”. Após aquele troféu, o time parecia embalar para vencer também o campeonato argentino da temporada 1988-89. Liderava até a metade, quando travou confronto direto com o vice Boca. Rojões racinguistas atingiram o goleiro adversário Carlos Navarro Montoya e os tribunais deram os pontos da partida ao oponente. Os alvicelestes despencaram e para piorar quem acabou campeão foi justamente o rival Independiente.

Essas eram as “confusões” mencionadas por Medina Bello.

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Comemorando com Batistuta, ex-concorrente no River, o “menchazo” mais famoso pela seleção: de letra, contra o Peru. Medina Bello foi o artilheiro da Argentina nas eliminatórias da Copa 1994

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Em Núñez, a média de gols não virou espetacular, mas deu mesmo um salto: El Mencho fez 70 gols em 212 partidas. Mas no início não era bancado pela dupla técnica Norberto Alonso e Reinaldo Merlo, que preferiam outro reforço: um jovem Gabriel Batistuta, contratado ainda verde junto ao Newell’s. Isso mudou em 9 de dezembro, quando foi eleito um presidente opositor ao que contratara Alonso e Merlo, que, fiéis ao antecessor, deixaram o cargo. O novo técnico viria a ser Daniel Passarella, aposentado apenas quatro meses antes. El Kaiser relegou Batistuta ao banco e apostou em Medina Bello. E o River seria campeão na partida em que aquele atacante anotou os dois gols dos 2-0 sobre o Estudiantes – o primeiro, um golaço onde canetou Roberto Trotta, passou por Edgardo Prátola, se livrou do goleiro Jorge Battaglia e ainda esperou pela chegada de Néstor Craviotto para então definir com pouco ângulo.

Foi o artilheiro do elenco campeão, com nove gols. Em paralelo, o Millo também chegou às semifinais da Libertadores de 1990 – com ele marcando inclusive o gol da classificação sobre o velho rival Independiente. Essa boa fase o colocou na primeira partida da seleção argentina após a Copa do Mundo de 1990. O técnico? Era o mesmo Alfio Basile que o promovera no Racing. Medina Bello foi um dos pouquíssimos daqueles 2-0 na Hungria que chegariam à Copa do Mundo seguinte, mesmo nunca se confirmando plenamente como titular da Albiceleste. Esteve no bi da Copa América em 1991 e 1993, até hoje os últimos títulos da seleção principal, mas na reserva.

Nesse período, em grande dupla com o veterano Ramón Díaz, mantinha o embalo no River: ainda que o time decepcionasse na Libertadores, caindo ainda na fase de grupos em 1991 e 1993, o ciclo da Daniel Passarella sempre manteve o time nas cabeças dos torneios domésticos: vice do Apertura 1990 (ainda sem Díaz), vice da Supercopa 1991, campeão do Apertura 1991 (título com um então recorde de oito vitórias seguidas nas oito primeiras rodadas, algo inédito na Argentina), vice do Apertura 1992 e campeão do Apertura 1993. Passarella acabaria credenciado assim a, após a Copa de 1994, suceder Basile na seleção – onde os melhores momentos de Medina Bello, por sua vez, se deram nas eliminatórias para aquele Mundial.

Elas foram concentradas basicamente ao longo de agosto de 1993, na última vez em que as seleções da Conmebol foram divididas em grupos. Coube a Medina Bello ser o artilheiro dos hermanos, com quatro gols em cinco jogos – dois deles, sobre José Luis Chilavert em um 3-1 no Paraguai dentro de Assunção. “Nesse dia, Fernando me complicou. Todos se lembram do seu gol, mas se esquecem de que eu anotei os outros dois”, brincou sobre o outro tento argentino, um golaço de Redondo no qual o volante passou por três paraguaios e definiu de canhota sem ângulo entre as pernas de Chilavert (foi o único gol de Redondo pela seleção, aliás). A “vingança” veio contra o Peru: El Mencho fez de letra o seu gol mais famoso pela Argentina. Assim, ele acabou convocado ao mundial mesmo indo jogar na nascente liga profissional japonesa, no Yokohama Marinos, onde estavam dois ex-colegas de River: Ramón Díaz e Gustavo Zapata.

A dupla de Ramóns com Díaz funcionou no River e no Yokohama Marinos, mas hoje não se falam

Medina Bello estava tão prestigiado que o River organizou uma partida no Monumental entre os dois clubes para simbolizar a transferência, com o atacante atuando um tempo por cada e já ali marcando seu primeiro gol pelo novo time. Falamos neste outro Especial.

Do Japão ao interior argentino

Zapata, que acabou não convocado, e Medina Bello seguem sendo os únicos convocados da J-League e eram até 2016 os únicos do futebol asiático, quando Ezequiel Lavezzi jogou já após ir à China. Em 1994, o retorno de Claudio Caniggia da suspensão por cocaína, Medina Bello foi à reserva na seleção e na Copa só foi titular na eliminação contra a Romênia; Cani havia se lesionado contra a Bulgária. A derrota para os romenos foi o ponto final de Ramón Ismael pela seleção. Após ganhar a J-League em 1995, foi repatriado em 1996 pelo River. Já não era titular, mas integrou os vencedores de quase tudo em 1996 (Libertadores, Apertura) e 1997 (Clausura, Apertura e a edição final da extinta Supercopa Libertadores, onde deixou o dele em um 5-1 no Vasco).

Ramón Díaz agora era o técnico e para surpresa geral dispensou a ex-dupla em janeiro de 1998. Foi estranho não só pela amizade, mas porque Medina Bello havia jogado só no Apertura 1997 quase a mesma quantidade somada de jogos (8) em que foi usado nos dois campeonatos argentinos anteriores (9). “Me machucou no momento. Se me houvesse falado em dezembro, eu o teria entendido perfeitamente e seguiríamos falando como se nada. (…) Depois disso, não quis falar mais com ele”. A liberação em janeiro complicou que El Mencho arrumasse logo um novo clube. A oportunidade se deu no Talleres, na reta final da segundona de 1997-98. Foi vitorioso e o título é um dos mais recordados da história da Primera B, por ter vindo em final justamente com o rival Belgrano, naquele que talvez seja o mais importante duelo do Clásico Cordobés.

Contudo, Medina Bello não se firmou exatamente por La T e saiu em 1999. O plano era voltar ao Racing, que revivia as crises (naquele 1999, sua falência foi decretada com o célebre anúncio “hoje o Racing deixou de existir”), mas, após dois anos parado, aceitou proposta da terceirona para jogar no Dock Sud. Parou em 2005 na quarta divisão do interior, no Juventud Unida de Gualeguaychú, de outra cidade de Entre Ríos. O carisma seguia intacto: “jogar em um clube de Gualeguaychú, a 80 km de minha cidade, Gualeguay, foi lindo. (…) Em Misiones, uma vez, antes do jogo, veio um torcedor e me disse: ‘olhe, agora te cumprimento, mas quando começar a partida começo a te xingar’. Essas anedotas são divertidas. A maioria da gente do interior sai dentro da bondade. Depois da partida vinham me pedir autógrafos”.

El Mencho em 1997 no seu ocaso pelo River, já reserva. Pelo Talleres (contra o próprio River, com Sorín ao fundo) e pelo Dock Sud

https://twitter.com/afa/status/1387768642507526152

https://twitter.com/RiverPlate/status/1387785469539360774

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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