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70 anos do primeiro argentino ídolo do Barcelona: Juan Carlos Heredia

O título dessa nota é relativo. É que, nascido no interior da província de Buenos Aires em 1900, Emilio Sagi Liñán tornou-se o primeiro nascido na Argentina a ser aproveitado pela seleção espanhola justamente em função dos 17 anos dedicados ao Barcelona. Mas, de hermano, ele só tinha a nascença: era filho de artistas em turnê e desde os três anos cresceu na terra dos pais. O Barça teve desde então muitos outros provenientes do Rio da Prata, com variados graus de brilharecos. Mas é justo dizer que foi de outro naturalizado pela seleção espanhola o posto de primeiro argentino ídolo blaugrana. História, ou Milonga, que vale ser conhecida hoje, nos 70 anos de Juan Carlos Heredia Araya.

Em nome do pai

Filho de Milonga, Milonguita é. O ditado não se resumia ao apelido: seu pai também se chamava Juan Carlos Heredia (a pronúncia é “Erêdia”, com o D lido como no sotaque nordestino, e não “Erédjia” ou “Eredjía”) e também foi um habilidoso ponta-direita, com o apelido se criando exatamente por tirar as defesas adversárias para “dançar”. A diferença é que, se Milonguita despontaria no Belgrano, Milonga surgiu exatamente no arquirrival Talleres. Foi, inclusive, a grande revelação do título de La T em 1939 no campeonato cordobês – os clubes locais estavam restritos à liga municipal, com o campeonato argentino sendo praticamente um campeonato argentino entre aspas, pois era de certa forma municipal também: se restringia à Grande Buenos Aires e La Plata até o ano anterior.

Foi exatamente em 1939 que a dupla Newell’s e Rosario Central, então também restrita à liga rosarina, foi admitida na “argentina”. Nesse contexto, o Heredia pai foi contratado pelo próprio Central em 1940 – justificando à risca o apelido ao fornecer três assistências na rodada inaugural do campeonato argentino, embora incrivelmente não evitasse derrota de 6-5 (!) para o Lanús; estava em 6-2 quando os passes-gol surgiram em um espaço de doze minutos, aos 21, aos 32 e os 33 do segundo tempo. História mesmo ele fez no Clásico Rosarino. É que os dois primeiros dérbis “argentinos” entre Newell’s e Central, pelo torneio de 1939, terminaram empatados (ambos em 1-1). No primeiro turno de 1940, enfim houve uma primeira vitória na nova era da rivalidade. E foi centralista.

O duelo foi um 3-1 de virada em plena casa rival no qual coube ao Milonga empatar, aos 43 minutos do primeiro tempo, onde primeiramente soltou a bomba que o goleiro Luis Heredia (com quem não tinha parentesco) não segurou para então conferir no rebote. Naquele mesmo ano, Heredia estreou pela seleção argentina. Inclusive, como um dos mais jovens da história dela: o Heredia pai teria feito cem anos nessa última semana, merecendo assim esse capítulo à parte na nota do filho. Ele nasceu em Córdoba em 27 de abril de 1922 e, assim, tinha 18 anos e dois meses na partida agridoce de 18 de julho de 1940. Inclusive, ainda está no Top 10 de mais jovens estreantes na seleção, logo abaixo dos 18 anos e 1 mês de Messi e logo à frente dos 18 anos e 3 meses de Agüero; na época, era o terceiro.

Seu pai, também chamado Juan Carlos Heredia: por Talleres, na Copa América de 1942 (à frente do técnico Guillermo Stábile e ao lado da lenda Adolfo Pedernera) e no San Lorenzo

Foi agridoce porque, além da derrota de 3-0 da Argentina no clássico platino em Montevidéu, só durou treze minutos, pois lesionou-se e precisou ser substituído por Adolfo Pedernera – o maior jogador da história de acordo com Alfredo Di Stéfano, mas então também um estreante pela seleção naquele 1940. Em 30 de dezembro, foi a vez do Milonga enfrentar a própria Albiceleste, em amistoso pela seleção rosarina, vencedora por 3-1 mesmo no estádio do San Lorenzo. “Era muito habilidoso e perigoso pelo lado em que jogava, embora nunca tivesse um passo consolidado no futebol profissional” foram os elogios com ressalvas que o livro Quién es quién en la Selección Argentina fez a seu respeito.

De início, seu próprio clube não ajudava muito: o Central foi 13º de dezoito times em 1940 e já em 1941 sofreu um primeiro rebaixamento, como lanterna. Mesmo assim, Heredia talvez participasse da Copa do Mundo se a edição de 1942 ocorresse; naquele ano, disputou a Copa América, em janeiro. O ponta tornou-se justamente o primeiro jogador oficialmente aproveitado pela seleção argentina por uma equipe de segunda divisão, amostra do seu talento.

A Albiceleste foi vice do anfitrião Uruguai, mas quarenta anos depois o próprio Obdulio Varela exaltava os rivais, mencionando Heredia entre os astros contra quem a Celeste só conseguiria tocar na bola “quando ela ia para fora”. Foi em entrevista concedida por Varela à revista El Gráfico na ocasião do Mundialito. Ao todo, Heredia jogou seis vezes pela Argentina (curiosamente, sempre em Montevidéu, palco de sua estreia e de suas outras cinco partidas, válidas todas por aquela Copa América) e deixou um gol, no 3-1 sobre o Peru naquele torneio.

Após vencer a segunda divisão de 1942, o ponta reforçou em 1943 o San Lorenzo. Foi de maior a menor: seu perfil no Diccionario Azulgrana registra que foi um “ponta veloz e habilidoso, de arranques desconcertantes e ampla generosidade para assistências a seus companheiros de ataque” e que “armou uma boa dupla com Roberto Alarcón até a aparição de [Francisco] Antuña, quem o relegou da equipe titular. Logo continuou sua carreira no futebol cordobês”. Desconsiderando-se amistosos, foram 54 partidas e um único gol, ironicamente aplicando a lei do ex, em um impiedoso 6-1 sobre o Central pela 6ª rodada de 1944. O Ciclón foi 3º colocado em 1943 e 4º em 1944.

Heredia, o filho, saiu ainda adolescente do Universitario de Córdoba para marcar o gol de título nacional do Belgrano em pleno clássico com o Talleres

Na volta à Córdoba, Heredia pôde ser um ídolo no modesto Universitario, ainda que sem troféus em uma liga normalmente duopolizada entre Belgrano e Talleres, embora o clube até houvesse sido campeão em 1942: “era fácil ser torcedor de La U quando Milonga jogava”, suspirou um torcedor ainda mesmo em 2014. Milonga fez mais história longe dali: foi um dos protagonistas do primeiro título boliviano do Always Ready, já em 1951; inclusive, até marcou o gol da equipe em 1-1 amistoso contra o Boca em janeiro de 1952. Mas o filho pôde nascer cerca de três meses depois em Córdoba e não em La Paz, embora inicialmente se criasse na Bolívia até a família se estabelecer no bairro cordobês de Altamira.

Falemos, enfim, de Milonguita. Embora fosse o terceiro dos quatro filhos de Milonga, coube ao aniversariante de hoje receber o mesmo nome do pai porque foi com ele que o antigo craque teve fé de que teria um filho jogador, afirmou em 2019 ao Infobae.

O que fez o Barcelona contratar um argentino de 19 anos

O Heredia filho formou-se primeiramente no ignoto Centro Vecinal Sarmiento, mas, com apenas quinze anos, ele já “herdava” do pai uma vaga no time adulto do Universitario, escalado pelo treinador Esteban Tanquía para duelo contra o Villa Azalais pela segunda divisão da liga cordobesa. Chegou inclusive a ser disputado também pelo Instituto, a tradicional terceira força cordobesa, mas La U levou a melhor por providenciar um trabalho ao antigo ídolo. E o velho Milonga estava mesmo na plateia na ocasião da estreia, procurando lhe relaxar os ombros: “jogue como fazes na base e na várzea, não tente fazer nem a mais nem a menos”.

Com oito minutos, o garoto tabelou com um colega de sobrenome Cortés, recebeu de volta e “acariciou o balão com a palma do pé”, na descrição dada cinquenta anos depois àquele golaço pelo jornal local La Voz del Interior. Em 2015, quando Barcelona e River estavam prestes a decidir o Mundial de Clubes, Milonguita foi consultado pelo mesmo La Voz para opinar sobre o encontro entre as duas equipes mais famosas em que jogou. E assegurou: “a glória para mim foi fazer um gol pelo Universitario, ir festaja-lo com meu velho no alambrado e vê-lo chorar. A meu pai devo meu apelido e o amor pelo futebol”.

O ano de 1967 também viu uma mudança decisiva no futebol argentino, a repercutir dali a uns anos na carreira do garoto. É que a liga cordobesa e outros torneios do interior argentino enfim ganhariam uma migalha da merecida vitrine: em 1967, a ditadura entendeu necessário intervir na AFA, que criou o Torneio Nacional e renomeou apropriadamente de “Metropolitano” o campeonato que era “argentino” entre aspas; a única mudança substancial desde que se admitira em 1939 a dupla Newell’s e Central foi permitir o ingresso, nos anos 40, da dupla santafesina Colón e Unión.

Em clássico cordobês, duela com Luis Galván, futuro vencedor da Copa 1978. Ao lado, é o 1º em pé no Belgrano de 1971 – o 3º é Bernardo Cos, que também iria ao Barcelona

O Nacional reuniria os melhores do Metropolitano (depois, todos os participantes, embora normalmente se excluísse os rebaixados) com os sobreviventes de uma seletiva dos melhores do interior, chamada ora Torneio Regional, ora de Clasificación. Nenhum cordobês se garantiu na edição inaugural do Nacional, em 1967. Em 1968, o Belgrano conseguiu essa primazia, da qual se orgulha até hoje. O Talleres conseguiu estrear em 1969. E inclusive chegou a convidar o filho do antigo xodó, em peneira de duas semanas. Mas não bastou para sensibilizar um dirigente tallarin em meio a 70 outros jogadores testados: “precisamos de soluções, não de promessas” foi o recado, embora acompanhado de um convite para tentar novamente no ano seguinte.

Em fevereiro de 1970, o Belgrano, treinado por outra glória argentina dos anos 40 (Llamil Simes, do Racing tricampeão entre 1949-51), teve olho mais clínico: o adquiriu junto ao Universitario em troca de outros cinco jogadores. Foi tão certeiro que Juan Carlos Heredia, o filho, desde 2018 nomeia um dos lances da arquibancada do estádio celeste, o Gigante de Alberdi. É que a liga cordobesa tinha direito a duas vagas no Clasificación e calhou de na rodada final dele em 1970 ser travada justamente pela dupla principal. La T precisava vencer o duelo para igualar-se a La B na liderança e forçar um jogo-desempate com o arquirrival.

O inédito relevo que aquele dérbi teria gerou interesse tamanho que terminou sendo o primeiro Clásico Cordobés transmitido pela televisão. E um peixinho de Heredia o imortalizou como ídolo belgranense. Em tempos mais sadios da rivalidade, ele contou que chegou a ser felicitado pelos cartolas rivais, que então passaram a trocas insultos entre eles próprios na apuração de quem seria o (ir)responsável por ter descartado aquela joia um ano antes. O lance até ofuscou que seu desempenho no bairro de Alberdi, objetivamente falando, foi marcado por alguma irregularidade ao longo das parcas 40 partidas em que atuou; foram só 14 gols e ele chegou a ser reserva de Dante Llorens, por exemplo.

Aquela que foi a primeira volta olímpica garantiu os celestes (campeões da liga cordobesa de 1970 também, mas ao fim do ano) na edição de 1971 do Nacional. E eles, recusando propostas até do Boca por Heredia e colegas, fizeram bonito, sendo opinião corrente que o elenco daquele ano é o melhor que o clube já exibiu na primeira divisão argentina; inclusive porque Heredia não seria o único dali incorporado pelo Barcelona – chegaremos lá. Aquela edição separou os 28 participantes em dois grupos, onde somente líderes e vice-líderes avançariam a mata-matas. Calhou de La B ficar em 3º, no grupo A, ainda que à frente do River. Ironia: os 21 pontos somados foram os mesmos que bastaram para o futuro campeão Rosario Central liderar o outro grupo.

Um raro registro de Heredia (segundo da esquerda para a direita) pelo Rosario Central, onde seu pai fora ídolo; só esteve no primeiro semestre de 1972

Em 1971, o Belgrano também pôde ser bicampeão cordobês seguido. E Milonguita, cerca de trinta anos depois do pai, também deixou Córdoba rumo ao Rosario Central, após amistoso comemorativo do título, entre os rosarinos e o Belgrano. No timaço campeão, ele não conseguiu exatamente firmar-se, embora servisse para ele iniciar uma relação sólida com Ángel Labruna, então técnico dos canallas. Heredia não foi escalado na Libertadores e foi limitado a treze partidas no Metropolitano: em seus dois primeiros jogos, foi substituído e nos nove seguintes em que atuou, foi sempre saindo do banco para então atuar os 90 minutos justamente nas duas últimas partidas em que figurou.

Nas ditas estatísticas “oficiais”, Milonguita conseguiu deixar três golzinhos para a torcida de Arroyito: no 1-1 com o Boca, abrindo o placar na Bombonera; o quinto de um 6-0 no Independiente; e para fechar um 3-2 em La Plata sobre o Gimnasia. Mas calhou de, para um jogo amistoso, o ídolo auriazul Aldo Poy precisar ausentar-se por lesão e ser bem coberto por Heredia. Que, na ocasião, foi observado por emissários do Barcelona. Mais do que com a reserva, Heredia estava insatisfeito por já ter dois meses de salários atrasados e não teve dúvidas quando os espanhóis se dispuseram a elevar a proposta de 300 mil para 350 mil dólares, além de casa e carro.

A visita catalã ainda rendeu outro negócio: eles se encantaram também por Bernardo Cos, outro membro do ataque belgranense de 1971, e lhe adquiriram por 63 mil dólares. Em malandragem, os europeus prepararam um passaporte falso para Cuchi Cos, creditando-o como um paraguaio descendente de espanhóis, e esse meia pôde logo jogar, enquanto Milonguita foi inicialmente aproveitado apenas em amistosos de pré-temporada; por excesso de estrangeiros, o ponta foi inicialmente emprestado ao Porto para a temporada 1972-73, conforme relembraria em 2020 ao La Voz del Interior.

No Barcelona, o argentino que fugiu da Copa de 1978

Na de 1973-74, o excesso de não-espanhóis ainda era uma constante: além de Cos, os peruanos Hugo Sotil e Pedro Aicart e, claro, o astro holandês Johan Cruijff. Heredia teve que aguardar no Elche para enfim ser aproveitado em meados da temporada 1974-75. Assim, não houve como entrar no radar da seleção argentina para a Copa de 1974: o Heredia convocado para a Albiceleste foi outro proveniente da província de Córdoba, o zagueiro Ramón, do Atlético de Madrid quase campeão da Liga dos Campeões e com quem não tem parentesco.

Registro do craque Tomikoshi (quem clicou também a imagem de abertura) para o Barcelona de 1975: Mora, Rifé, De la Cruz, Tomé, o brasileiro Marinho Peres e Migueli; Heredia, Neeskens, Cruijff, Sotil e Marcial

No início de 1975, o River, agora treinado por Labruna, repatriou da Espanha o veterano Oscar Más, que estava no Real Madrid. Labruna teria desejado contar também com Heredia, assumido torcedor millonario, mas os catalães recusaram. O cordobês pôde enfim estrear oficialmente como culé já em 10 de fevereiro de 1975, em partida que não foi curiosa apenas por uma expulsão de Cruijff: o adversário, o Málaga (derrotado por 3-2 mesmo dentro de La Rosaleda) escalou outra antiga joia do Belgrano, Carlos Guerini, por sua vez futuro ídolo do Real Madrid.

A estreia de Heredia foi avaliada como satisfatória, inclusive havendo reclamação por um suposto pênalti não marcado nele. Em 2012, Guerini e Heredia chegaram a ser reunidos pelo jornal La Voz, que lamentava que o reconhecimento que eles seguem tendo na Espanha não fosse compartilhado com as gerações mais jovens cordobeses. E nem pelas antigas: “por aqui, não chegava nem o eco” foi o diagnóstico da repercussão nula que seus gols tinham na imprensa cordobesa nos anos 70.

A parceria Heredia-Cos teve pouco tempo junta na Catalunha, pois o antigo parceiro de Belgrano despediu-se de Les Corts exatamente em 1976, mas Milonguita desenvolveria outra, com Cruijff. Dentro e fora de campo: em 2018, mencionou ao jornal La Nación que chegava até mesmo a cuidar do cachorro do astro quando o colega precisava voltar à Holanda. E que assistiram juntos pela televisão a Copa do Mundo de 1978, um torneio que ambos optaram por não jogar.

Já a nota do Infobae de 2019 detalha que o holandês, que sabia se virar em cinco idiomas, se dispunha a servir de tradutor ao argentino até nas entrevistas em outros países europeus e exigia que a Puma também incluísse Heredia e outros colegas de clube no catálogo de patrocinados. Embora o Barcelona não conseguisse, apesar de Cruijff, ser campeão de nada desde que vencera La Liga de 1973-74, o lado financeiro empreendido pelo holandês respingava no amigo: Heredia chegou a ter 2o propriedades, 30 carros e até um zoológico particular com direito a leão de estimação, criado desde filhote. Em 1977, o Boca disputou o Troféu Joan Gamper e seus jogadores, hospedados por Heredia, de início não acreditaram no aviso de “cuidado, que o leão está solto”.

Um bicicleta em 3-1 no Real Madrid em 1976 e oxigenando uma remontada do Barcelona em 1977 contra o Anderlecht: era preciso vencer de 3-0 e o argentino fez o segundo

Não chegou a haver um encontro em campo naquele Joan Gamper porque o Boca caiu para o Schalke 04 na semifinal. O troféu caseiro foi basicamente o que o Barça vinha vencendo; o time ainda chegou a ser semifinalista da Liga dos Campeões da temporada 1974-75 e então viu as taças domésticas praticamente se alternarem entre a dupla de Madrid, restando ao Barça vagas de consolação na Liga Europa (então Copa da UEFA). Nela, caiu nas semifinais para o futuro campeão Liverpool em 1975-76; nas quartas para o Athletic de Bilbao que seria vice na de 1976-77; e novamente nas semis, agora para o futuro campeão PSV Eindhoven, na de 1977-78.

Ainda assim, no segundo semestre de 1977 o jornal local Mundo Deportivo noticiou que Heredia estaria sob observação não só da seleção argentina, mas também da espanhola, por já residir tempo suficiente na Espanha para poder naturalizar-se a tempo do Mundial. Mas na época jogar na Europa mais atrapalhava do que ajudava: técnico da Albiceleste, Menotti anunciou em dezembro de 1977 uma lista de 40 pré-convocados, a contemplar do futebol europeu apenas o goleador Mario Kempes (Valencia) e um titular do Saint-Étienne dominante na França (o zagueiro Osvaldo Piazza).

A Espanha, por sua vez, se garantira na Copa do Mundo graças a um gol salvador de outro argentino, Rubén Cano. Então veio o fator extracampo: havia um Juan Carlos Heredia na lista de caça da ditadura argentina e o pai do Milonguita quase sofreu as consequências. Cruijff, ele próprio vítima de um sequestro na época, ficou sabendo e desistiu de vez de vir com sua seleção à Copa. Heredia jurou isso ao La Nación, tal como já havia revelado em 2014 à revista El Gráficoclique aqui para acessar a íntegraA seguir, os trechos pertinentes:

Disputado por Argentina e Espanha à Copa 1978, ficou de fora de ambas. À direita, reencontrando Cruijff no centenário do Barcelona, em 1999

“Eu ia jogar o mundial pela seleção da Espanha. Um mês antes do Mundial, os militares vieram à minha casa. Puseram minha mãe contra a parede e levantaram meu pai, que estava em cama doente com 40 graus de febre. O cobriram só com um lençol e meu pai lhes perguntou por que não o deixavam vestir-se, lhes contou que tinha muita febre. ‘Para onde vais, não precisarás de roupa’, lhe disse um milico. Sim, lhe disseram isso. E começaram a buscar coisas, reviraram tudo, inclusive lhe roubaram um isqueiro de ouro que eu havia presenteado a meu velho, com suas iniciais. Já o levavam e nisso entrou outro militar, de patente maior. Se pôs a observar e viu que na sala de estar havia muitas fotos minhas, de quando jogava no Belgrano e no Barcelona”.

O conhecimento futebolístico foi a salvação: “então esse milico pergunta se eram fanáticos pelo Milonguita. Minha mãe respondeu que sim, porque eram os pais do Milonguita. ‘Você é, então, o Milonga?’, perguntou o cara. ‘Sim’, respondeu meu pai. ‘Nos equivocamos’, disse o militar. Pediu desculpas, explicou que havia sido um erro, e saíram dizendo que esperassem uns minutos para acender a luz. Quando acenderam a luz, chegaram os vizinhos e contaram que a casa havia sido rodeada. Três dias depois, meu velho, já recuperado, vai trabalhar, e se encontra com um advogado que sabia o que havia ocorrido e lhe contou que na lista negra havia um Juan Carlos Heredia. Se não viesse esse outro milico, o levavam e o matavam”.

Heredia então concluiu, sobre sua escolha: “eu telefonava para minha casa desde Barcelona a cada 15 dias mais ou menos. Então meu pai me contou o que havia passado. Fui falar com Ladislao Kubala, que era o técnico da Espanha, e lhe disse tudo, lhe contei com riqueza de detalhes. Não queria ir ao Mundial. Meu pai me disse que aguentava, que não me esquecesse que o topo máximo era jogar um Mundial, mas para mim o topo máximo era minha família. Então não vim. Cruijff falou comigo. Queriam convencer Johan na Holanda e disse que não. Não jogava onde houvesse um regime militar. Ele sabia o que me havia acontecido”.

A estreia do argentino pela Espanha: Garrete, Marcelino, Miguel Ángel, Vicente del Bosque, Alexanko e Migueli; Heredia, Villar, Santillana, Asensi e Rojo

Ainda à El Gráfico, Heredia frisou, dando mais detalhes sobre a escolha de Cruijff: “nunca me arrependi de cuidar da minha família. Eu intuía que algo poderia acontecer. Sem ter nada a ver, quase acontece! Imagine se viesse ao Mundial e tivesse que jogar com a Espanha uma final contra a Argentina! Ia chutar para cima, era difícil. Cruijff havia vindo em 1972 com o Ajax jogar contra o Independiente [pelo Mundial Interclubes] e teve que dormir com policiais porque chegavam ameaças de que o iam matar. Não pôde sair do hotel. Então, se nessa época já era sofrido, ele imaginava que em 1978 ia ser pior”.

O que a dupla pôde comemorar em 1978 foi a conquista da Copa do Rei, o primeiro troféu do Barça desde 1974, e que classificou-o à edição de 1978-79 da extinta Recopa Europeia. Após eliminar o Shakhtar Donetsk, o clube encarou nas oitavas-de-final um Anderlecht fortíssimo na década. Os belgas de fato venceram por 3-0 em casa, o que engrandeceu a epopeia de 31 de outubro de 1978. Em 2017, após a famosa virada catalã sobre o PSG, Heredia recordou ao La Voz:

“Se fui alguma coisa no Barcelona, foi por partidas como essa, com uma remontada inesquecível. Em 1978, vivemos nosso momento de glória pelas oitavas-de-final da Recopa Europeia, que logo ganharíamos. A equipe devia remontar o 0-3 com que nos havia despachado o Anderlecht da Bélgica, na partida de ida. E pudemos ganhar de 3-0 na revanche, em um Camp Nou repleto com 100 mil pessoas, para depois completar a façanha e ganha-los nos pênaltis. Nessa partida, fiz o segundo gol. Carlos Rexach roubou e arrancou. Quando viu que eu acelerava, me passou. Me livrei de dois defensores e o chutaço de direita foi rente a uma trave. Terminamos ganhando um título que o Barcelona não tinha. Ganhar essa copa foi bonito e algo inesquecível. Do melhor que me aconteceu na carreira”.

Quinze dias depois, em 15 de novembro, o argentino enfim estreou pela seleção espanhola. Foi em 1-0 sobre a Romênia pelas eliminatórias à Eurocopa 1980, no Mestalla. Mas seriam poucos jogos, todos por aquelas eliminatórias: em 13 de dezembro, esteve nos 5-0 sobre o Chipre em Salamanca – quando, curiosamente, foi substituído pelo também argentino Rubén Cano (que fez o quarto gol). A terceira e última partida pela Furia demorou até 10 de outubro e terminou em derrota de 1-0 no Mestalla para a Iugoslávia.

Voltar à Argentina em 1980 lhe privou da Eurocopa. É o número 11, com rosto ensanguentado, nesse Boca x River onde se pode distinguir Maradona, Kempes (lado a lado) e Passarella (camisa 6)

O revés não impediu a classificação da Espanha para a Euro, mas Milonguita terminou não convocado. Em parte, por decidir voltar à Argentina no início de 1980, ainda no auge da forma e apesar do país de adoção estar prestes a sediar a Copa do Mundo seguinte: “nós, cordobeses, temos raízes e eu sou muito apegado a minha família, não aproveitava meus pais fazia dez anos”, contextualizou ao Infobae em 2019; inclusive, na nota de 2014 à El Gráfico, cinco anos após perder a mãe (o pai, perdera em 1987), chegaria a ponto de dizer que voltaria atrás na carreira espanhola para poder ter convivido mais com os pais.

Apesar dos poucos troféus, em 2013, a embaixada oficial de torcedores do Barcelona em Córdoba foi criada levando o nome daquele ponta.

O precoce fim de carreira

Heredia enfim pôde cumprir em 1980 o sonho de defender o River, como opção a um já decadente Leopoldo Luque como centroavante na escalação do mestre Labruna, ou como alternativa na ponta a um Ramón Díaz já brilhante mas ainda verde. Milonguita foi titular nas duas rodadas inaugurais do Metropolitano e até deixou um gol na segunda delas, empatando em La Plata contra o Estudiantes. Mas em paralelo uma lesão em choque com Hugo Iervasi, do Vélez, pela Libertadores, condicionaria seu desempenho no regresso. Ele chegou a ponto até de ter a perna sob risco de amputação, após a ferida gangrenar: o operaram sem terem esterilizado os equipamentos…

Na campanha campeã do Metropolitano de 1980, Heredia só voltou a campo já na 16ª rodada (1-1 com o Independiente). Até foi titular, mas não jogou os 90 minutos; reapareceu na 18ª para deixar o campo ainda aos 38 do primeiro tempo da derrota de 2-0, dois gols de Maradona, para o Argentinos Jrs, ao sentir novamente a lesão mal tratada. E então jogou novamente no reencontro com o Argentinos, na 37ª e penúltima rodada. No Torneio Nacional, foram cinco partidas – e eliminação nas quartas-de-final, para o Newell’s.

Ele parecia recuperado no Metropolitano de 1981, marcando o último gol de tumultuada derrota de 3-2 para o Argentinos Jrs na 3ª rodada, onde a expulsão de cinco colegas encerrou o jogo no minuto 89; na rodada seguinte, marcou duas vezes nos 3-2 sobre o Estudiantes. Mas o problema já era concorrer com o reforço Mario Kempes pela vaga no ataque; só seria usado outras seis vezes, espaçadas, e para o Torneio Nacional ele foi cedido ao Argentinos Jrs. Foi apenas ridículo: estreou na 2ª rodada, contra o Huracán, e foi expulso por reclamação aos 42 minutos da vitória por 3-2. Não voltaria a ter outra chance pela equipe do bairro de La Paternal, muito também pelas dores crônicas no joelho lesionado.

No River, foi campeão quase sem jogar. No Talleres, não adiantou o mentor Ángel Labruna insistir: só jogou por 12 minutos

Ele considerava-se aposentado, mas Labruna, agora treinador do Talleres, o intimou a virar a casaca em Córdoba para a temporada 1982. Milonguita explicou em 2011 ao La Voz: “o joelho não dava mais, mas Ángel Labruna insistiu tanto por mim, que no fim aceitei jogar. Não podia dizer não a ele”. Chegou a se intoxicar com tanta anestesia que lhe aplicavam para suavizar as dores, contaria em 1999 à revista El Gráfico. Mas, após ter uma evolução considerada promissora nos treinos da primeira semana de março, foi relacionado para o clássico com o Instituto pela 5ª rodada do Torneio Nacional (agora realizado no primeiro semestre).

La T estava severamente desfalcada para a seleção argentina, que já se concentrava para a Copa do Mundo. Mas repetiu-se o filme de Argentinos Jrs. Heredia conseguiu durar ainda menos como tallarin: apenas 12 minutos. Entrara aos 9 minutos do segundo tempo no lugar de Pedro González e não tardou para sentir a falta de condições do joelho, pedindo a Labruna que fosse substituído: “haviam me dito que aguentasse, que com os minutos a dor ia desaparecer, mas não havia como. Não me houve outro jeito senão meter um soco em um amigo, Enrique Nieto, para que o árbitro me expulsasse. No outro dia, fui à sede do clube e rasguei o contrato. Não joguei nunca mais”.

Ele ainda tinha 29 anos e muitas casas, eletrodomésticos carros e maços de dinheiro generosamente cedidos a “amigos”, dos quais somente dois entre dezenas compareceram para doar sangue a um Milonga Heredia moribundo de câncer em 1987: “tive que comprar sangue em um banco”, desabafou na nota de 1999 da El Gráfico. Outros bens se perdiam sem que ele desse importância (“uma vez me roubaram um Mercedes-Benz e nem fiz a denúncia”). Sem investimentos, o patrimônio multimilionário (“cada vez que tinha de férias a Córdoba, chegava com 500, 600 mil dólares e voltava sem nada”) deu gradualmente lugar a uma vida de classe média (“falaram um pouco demais de mim, nunca vivi em uma favela”) como taxista em Córdoba – manobrando um dos carros com quem havia presenteado alguém que não deixou de lhe exigir comissão de 30% – ou como funcionário das secretarias cordobesa de esportes e das ações sociais.

As aspas acima foram tiradas daquela nota de 1999 da El Gráfico, cujo título foi “o homem que presenteou tudo”. Nela, desmentiu outro boato (o de alcóolatra) e jurou que a única reprovação dos cinco filhos à má administração foi “por não ter guardado uma fita-cassete [a nota, repete-se, é de 1999] da minha época de jogador”. Menos amargo do que poderia ter ficado, não deixou de desabafar: “todos os anos, o Barcelona me faz chegar um convite para passar o Natal com todos as despesas pagas. Agora, estive nos 100 anos do clube. Na verdade, ali têm o que falta aqui: memória”.

Ele e o pai (falecido em 1987) nos anos 70. À esquerda, Heredia com o autor do livro “Barçargentinos”, publicado em 2014

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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