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Blog FP: as eleições argentinas e o futebol

A reeleição de Cristina Fernandez de Kirchner para a presidência da Argentina neste domingo terá implicações para o futebol. Nada a estranhar: o país possui um longuíssimo histórico de vínculos entre política e futebol. Governos de diferentes épocas e posições políticas se relacionaram ativamente com o futebol: o radical Marcelo Alvear em 1926 interveio para pôr fim à cisão entre os clubes argentinos, Juan Domingo Perón teve vínculos com diversos clubes e a ditadura se utilizou de forma evidente do mundial de 1978. É uma tradição no país, algo visto como normal, ao contrário de nós, brasileiros, que acreditamos que política e futebol jamais deveriam se misturar.

Na verdade é sintomático que o kirchnerismo tenha renovado seu mandato poucos dias após a reeleição de Julio Grondona. Hoje o presidente da AFA tem no governo federal seu grande aliado político. A criação do Futbol para Todos, em 2009, deu à AFA um poder inimaginável, colocando a transmissão das partidas sob sua responsabilidade. O programa também favoreceu o governo, que apareceu aos olhos do público como o agente que garantiu o final de um sistema excludente em que só os assinantes de PPV podiam ver os jogos domésticos, proporcionando que toda a população pudesse assistir a todos os jogos pela TV aberta.

O monstrengo anunciado pela AFA no meio do ano, unindo os times das duas primeiras divisões em um megacampeonato nacional também era fruto da associação entre Grondona e o kirchnerismo. A grande questão não era, como pensaram muitos brasileiros, ajudar o River. O ponto central era a incorporação de equipes interioranas, em um momento de absurda supremacia portenha no futebol argentino (a temporada que se havia recém encerrado tinha 16 equipes pertencentes à Buenos Aires e seu entorno; apenas Newell’s, Colón e Godoy Cruz pertenciam a outras províncias). Esse era o foco da violenta campanha promovida pelo empresário Daniel Vila contra Grondona, que com o novo campeonato pretendia neutralizar seu opositor mais agressivo.

Para o governo era o momento de mostrar uma ação que democratizasse o futebol do país, abrindo espaço para o futebol provincial. O timing também foi calculado: perto das eleições gerais e da AFA, e em um momento em que clubes tradicionais do país (River à frente) estavam na B. Supunha-se que os torcedores desses clubes apoiariam a iniciativa, e os demais seriam seduzidos pela perspectiva de incorporar essas equipes fortes à primeira divisão. Parecia perfeito, mas o tiro saiu pela culatra. A gigantesca rejeição do novo torneio fez com que a AFA se visse obrigada a voltar atrás, e o governo saísse de fininho, sem passar recibo pela derrota.

Naturalmente essa associação com o governo não trouxe apenas vantagens para a AFA, que herdou também os inimigos do kirchnerismo, que ocupam posições muito sólidas na mídia. Até porque o Futbol para Todos pôs fim à parceria milionária entre a TyC Sports e o grupo Clarín para a transmissão das partidas em PPV. Inimigo extremo do kirchnerismo, o mais poderoso grupo de comunicação do país também voltou as baterias contra o presidente da AFA que secou uma importante fonte de dinheiro para o grupo. O mesmo vale para a TyC, que ao fim perdeu até a transmissão das partidas da Nacional B, já que o governo e a AFA se aproveitaram do descenso do River para estender o Futbol para Todos para a segunda divisão. Não por acaso, o ex-presidente da TyC Sports estava diretamente envolvido nas denúncias a Grondona na véspera das eleições.

Dissabores à parte, a AFA não tem do que reclamar do kicrchnerismo, que deu mais poder e dinheiro a Grondona. Há quem garanta que Cristina Kirchner estaria descontente com aspectos da aliança, em especial o fato de os clubes estarem ainda mais endividados e a violência dos barra-bravas não ser contida. Nesse ponto da vista, o governo federal, ainda que sem intervir no processo, desejaria a ascensão de um novo nome para a presidência da AFA. Mas neste momento, a aliança está firme, e a AFA se vê tocando os céus.

CURIOSIDADE – Cristina Fernandez de Kirchner é hincha do Gimnasia La Plata. Os demais: Ricardo Alfonsín – Independiente; Hermes Binner – Atlético Rafaela; Alberto Rodriguez Sáa – San Lorenzo; Elisa Carrió – Racing; Eduardo Duhalde – Banfield; Jorge Altamira – Huracán. Nenhum dos candidatos é hincha de Boca ou River.

 

Tiago de Melo Gomes

Tiago de Melo Gomes é bacharel, mestre e doutor em história pela Unicamp. Professor de História Contemporânea na UFRPE. Autor de diversos trabalhos na área de história da cultura, escreve no blog 171nalata e colunista do site Futebol Coletivo.

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