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Blog FP – Uruguai: muito mais que um título futebolístico

Para muita gente pode ter parecido exagerado o tamanho da comemoração dos uruguaios com a vitória na Copa América. Outros atribuíram o fato à alegria pelo “renascimento do futebol uruguaio”. É uma verdade parcial: para os orientais, mais do que o futebol, é um país que está renascendo.

Eduardo Galeano escreveu que os espetaculares triunfos da Celeste nos anos 1920 eram a prova definitiva de que o Uruguai não era um erro, mas uma Nação. O que mostra o tamanho da importância do futebol uruguaio para a identidade do país. Os orientais passaram os primeiros 100 anos de sua história tentando evitar a anexação por parte de Brasil ou Argentina, ou ao menos a transformação em um anexo de um dos dois gigantes entre os quais o minúsculo país está incrustado. Ser capaz de vencê-los no esporte mais democrático de todos sempre foi para os uruguaios uma prova de que o país merecia existir.

As grandes vitórias sobre brasileiros e argentinos, em especial aquelas em competições mundiais, eram essenciais. Em especial o Maracanazo, um momento mágico na história do país. A vitória de um grupo de jogadores sobre um estádio lotado, contra uma equipe da casa que já se sentia vencedora, tinha a vantagem do empate e ainda saiu na frente no placar, é uma metáfora perfeita de como os uruguaios se sentem enquanto povo. Para os orientais, o “sangue charrua” é o segredo que garante a sobrevivência dos uruguaios como país. A célebre frase de Obdúlio Varela nos vestiários antes daquela final (“los de afuera son de palo”, literalmente “os de fora são de pau”, ou seja, não têm o “sangue charrua”) é uma definição da auto-imagem uruguaia, e aquela vitória funcionou como comprovação definitiva de que o sonho oriental era uma realidade.

Mas a partir dos anos 1970 as coisas começaram a dar errado. Problemas políticos e econômicos acabaram com a antes confiante “Suíça da América Latina”. E o futebol declinou junto. Quando a Celeste chegou ao mundial da África do Sul, o cenário era devastador: 20 anos sem uma vitória em Copa do Mundo, 40 anos sem protagonismo em mundiais, 15 anos sem qualquer título e 22 anos sem chegar a uma final de Libertadores. Até as vitórias no âmbito regional haviam desaparecido. A auto-imagem uruguaia estava no chão.

Nos últimos 12 meses o milagre aconteceu. A Celeste venceu no Mundial, chegou às semifinais, as seleções de base seguiram a sequencia de bons resultados e o Peñarol voltou à uma decisão de Libertadores. O título da Copa América foi o fechamento de um ciclo. Há 10 dias eu estava na Plaza Independencia, no centro de Montevidéu, vendo milhares de uruguaios festejando a vitoria sobre a Argentina nos pênaltis. Claro que não era uma festa pela classificação às semifinais. Era uma nação inteira se reencontrando com ela mesma.

Ontem foi apenas a conclusão desse processo. Em uma Copa América em que todos os competidores mandaram suas seleções principais, a Celeste manteve viva a mística do sangue charrua. Segue sendo a única seleção a conseguir alijar a seleção argentina do torneio em sua própria casa. Para nós, pode ser o “renascimento do futebol uruguaio”, frase tão repetida nos últimos tempos. Para os orientais, é um país que volta a acreditar que não é apenas um erro, mas uma Nação.

 

Tiago de Melo Gomes

Tiago de Melo Gomes é bacharel, mestre e doutor em história pela Unicamp. Professor de História Contemporânea na UFRPE. Autor de diversos trabalhos na área de história da cultura, escreve no blog 171nalata e colunista do site Futebol Coletivo.

3 thoughts on “Blog FP – Uruguai: muito mais que um título futebolístico

  • Ernesto

    Tiago,

    “los de afuera son de palo” quer dizer “os de fora não jogam, são enfeite, aqui é 11 contra 11.”

    Por outra parte Uruguay não é independente por autodeterminação. Artigas, como San Martin y Bolivar queriam formar uma grande nação, ou pelo menos o maior possível. A grande Colombia de Bolivar era formada pelo que hoje é Colombia, Venezuela e Ecuador (notem o parecido das bandeiras). Uruguay é banda oriental, oriental a que? é a banda oriental às provincias do Rio de La Plata.

    Em 1816 o imperio de Portugal e Brasil invadem o Uruguay e o anexam ao Brasil. Entre 1825 e 1828 se produzem revoluções e guerras que acabam num tratado de independencia do Uruguay firmado entre o imperio do Brasil e as provincias unidas do Rio de La Plata, dado que nenhum conseguia dominar o outro no Uruguay.

    Como argentino amo o povo uruguaio, um povo simples e maravilhoso. E como Galeano e muitos mais, sonho com uma america latina unida.

    Ernesto.

  • Tiago Melo

    Ernesto
    Sou historiador, e fiquei satisfeito em ver que seu comentário se focou exatamente na parte historica do texto. Na verdade aquele periodo das libertações nacionais para mim é triste, pois terminou com divisoes que nao deveriam acontecer. Tanto que sou um brasileiro homenageando o Uruguai em um site sobre futebol argentino. Mas o problema é que San Martin e Artigas tinham projetos distintos de “patria grande”. A de Artigas incluiria os atuais Rio Grande do Sul, Uruguai e algumas provincias argentinas. O projeto sediado em Buenos Aires acabou triunfando, ainda que nao completamente.
    Mas eu disse que “los de afuera son de palo” significava “os de fora são de pau” literalmente, ou seja, em uma tradução palavra por palavra. O significado real é o que foi colocado no texto, que voce colocou com outras palavras, ou seja “lá dentro nós uruguaios somos mais fortes, pois temos mais sangue que eles”. Foi o que eu disse.

  • Ernesto

    Tiago,

    Meu conhecimento historico é limitado e não vai além do que coloquei no meu primeiro comentário.

    Em relação à frase ‘los de afuera son de palo’, você fez uma tradução literal e depois uma interpretação. No que entendo de sua interpretação é que esta dizendo ‘nós somos mais fortes do que eles, por isso vamos vencer’. Minha interpretação, e acho que a interpretação popular na argentina e no uruguay, é que está dizendo ‘somos 11 contra 11 no campo, aqueles 120000 gritando de fora não jogam, vamos esquece-los’.

    Vocês fazem um grande trabalho, parabéns!
    Abraço,
    Ernesto.

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