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Cem anos de Mil Listrinhas: Los Andes, um clube de acessos com avô, pai e filho

Lomas de Zamora já foi a principal cidade do futebol argentino. Entre 1893 e 1898, todos os títulos do campeonato se concentraram na cidade, cinco deles levantados pelo Lomas Athletic, o primeiro supercampeão do esporte. O domínio era tamanho que a outra conquista foi do virtual time B, a Lomas Academy, algo ainda único em campeonatos de qualquer potência do futebol. Mas o Athletic voltou-se ao rúgbi – simbolicamente, em 1899 ganhou o primeiro campeonato da bola oval. Hoje, cabe ao Los Andes representar a cidade. As Milrayitas (“Mil Listrinhas”) celebram hoje o seu centenário.

Para quem não sabe, o Los Andes é o rival original do Banfield e não o Lanús, com quem os alviverdes inclusive mantinham amizade antes de decadência do rival original dos grenás (o Talleres de Remedios de Escalada, que embora tenha revelado Javier Zanetti não frequenta a elite desde 1938) fazerem Taladro e Granate promoverem um contra o outro o Clásico del Sur. Tanto Banfield como Los Andes foram deixados inicialmente à margem do profissionalismo argentino.

Dos clubes inicialmente mantidos no amadorismo, que precisaram se profissionalizar na segunda divisão para baixo, o rival foi precisamente quem teve melhor êxito. Personagem singular da rivalidade é o atacante Adrián Czornomaz (de quem falamos na semana passada), que se consagrou como artilheiro na segundona. Venceu-a pelo Banfield em 1993 e foi artilheiro da de 1996 pelo Los Andes. Que também teve seus momentos, ainda que esporádicos, na elite.

O primeiro acesso à elite foi obtido com o título da segundona em 1960, deixando o próprio rival (terceiro colocado) para trás, vencendo na campanha os dois clássicos: 3-1 em casa e 2-1 fora. O clube foi lanterna da elite em 1961, mas voltou em 1967 através de um torneio-repescagem entre os seis piores da elite e os quatro melhores da segundona. A quarta colocação foi o suficiente para o acesso.

O futuro gremista Obberti, destaque do melhor ano do Los Andes na elite (1968). E a última participação nela, na temporada 2000-01

Em 1968, veio a melhor campanha das Mil Listrinhas: um 6º lugar em um dos grupos do Torneio Metropolitano, a artilharia deste campeonato para Alfredo Obberti (futuro jogador do Grêmio) e invencibilidade no clássico (2-1 e 1-1) e 8º lugar no Torneio Nacional, com Obberti na vice-artilharia. Dentre os momentos mais marcantes, um 3-1 sobre o River dentro do Monumental. Mas a venda do goleador ao Huracán representou o rápido declínio. O time foi último em 1969 e 1970, escapando do rebaixamento por liderar novos torneios-repescagens como aquele que o havia promovido.

Mas em 1971 o torneio-repescagem já havia acabado. A penúltima colocação – uma atrás do Banfield – decretou a queda. O Los Andes ainda teve uma nova e última participação na elite na temporada 2000-01. O acesso contou com novos capítulos saborosos no clássico, que ocorreu na semifinal. As Milrayitas venceram por 2-0 em jogo encerrado antes dos 45 do segundo tempo por causa de incidentes das torcidas. Mas o folclore lomense não se resume a isso. Abaixo, republicaremos nota de 2014:

“Ontem fez vinte anos a data de 3 de julho de 1994. Nela, a Argentina se entristecia com a eliminação da seleção na Copa de 1994, em jogo eletrizante entre os colegas de Maradona (expulso do mundial no dia 30 anterior) e a sensação Romênia. Mas a cidadezinha de Lomas de Zamora, ao sul da capital federal, se dava ao direito de festejar, mesmo que uma reles promoção de seu clube à segunda divisão. Ingredientes extras ajudaram.

O clube em questão é o Los Andes, que é o rival original do Banfield, da mesma municipalidade de Lomas de Zamora. Mas o enfraquecimento das Milrayitas (“Mil Listrinhas”, em alusão à camisa de finas listras alvirrubras) fez com que os torcedores do Banfield redirecionassem o ódio a um antigo amigo, o também vizinho Lanús, cujos hinchas por razões parecidas retribuíram mutuamente, fazendo o Clásico del Sur: seu rival original é o Talleres da cidade de Remedios de Escalada, outro sumido – ele não joga a elite desde 1938 e hoje o principal Talleres do país é o da cidade de Córdoba.

Os Da Graca: avô negro, pai mulato e filho branco

Quando a realidade ainda não era essa, o Los Andes chegou pela primeira vez à segunda divisão, e com uma campanha arrasadora: de 30 pontos possíveis, os lomenses somaram 28 e se sagraram campeões da terceirona. O artilheiro do torneio foi um certo Manuel Da Graca. Em 1960, sem ninguém da linhagem, o time venceu a segundona e chegou à elite pela primeira vez. Curiosamente, o jogo do acesso foi um 2-1 no Talleres de Escalada. Em 1961, quando a equipe esteve na primeira divisão e o Banfield, não, foi logo rebaixada – junto com o Lanús, por sinal.

A volta à elite veio em 1967, de forma incomum: os quatro primeiros da segundona jogaram um “torneio reclassificação” com os seis últimos da elite. Os seis primeiros do torneio jogariam a primeira divisão em 1968. Isso fez com que o Defensores de Belgrano, melhor colocado na segundona, ficasse de fora da elite em 1968 (foi o mais perto que chegou dela na era profissional). Já o Los Andes, com um suado quarto lugar, conseguiu, marcando a 5 minutos do fim o gol da vitória por 2-1 sobre o Unión. E aí foi a vez de Abel Da Graca brilhar: com 10 gols, o filho de Manuel foi o artilheiro do minitorneio.

Da Graca filho não marcou naquele dia, mas deu o passe para o primeiro gol. O técnico era Jim Lopes, que havia acabado de treinar a Argentina vice da Copa América naquele ano. Ele fizera carreira no futebol brasileiro, com títulos por Portuguesa, São Paulo e Palmeiras. O Los Andes seguiu na elite até 1971 e não tornou a ter uma década tão boa. Para a temporada 1993-94, estava na terceirona outra vez.

Aquela edição da Primera B Metropolitana foi ainda mais confusa que a dos acessos de 1967: haveria Apertura e Clausura e o título seria definido entre os vencedores de ambos, caso fossem diferentes. A taça ficou com o Chacarita Juniors, que derrotou o Tigre na final. Mas o Tigre não subiu junto, apesar do vice: ele se juntaria nas semifinais de um “torneio reduzido”, travado em mata-mata pelos clubes que, fora ele e o Chaca, ficaram do terceiro ao oitavo lugar na tabela unificada dos dois turnos. Por um ponto a mais que o nono colocado, o Los Andes se garantiu nesse torneio.

“Cem anos, Mil Listrinhas”, slogan do centenário

A grande revelação dos alvirrubros foi o atacante Esteban Bichi Fuertes, que passaria pelos gigantes Racing, Independiente (é talvez o mais célebre a fracassar na dupla rival de Avellaneda) e River mas que brilharia especialmente no Colón, onde é quem mais jogou e mais marcou gols – já veterano e ainda nesse clube, aos 36 anos, se tornou em 2009 o mais velho estreante na seleção argentina. E foi Fuertes o herói do primeiro mata-mata, marcando em ambos os jogos contra o Defensa y Justicia: vitória em casa por 2-0 e fora por 1-0.

Mas no segundo mata-mata, uma semifinal justo contra o Tigre, a estrela que passou a brilhar nas Milrayitas foi a de Hernán Da Graca Guerra, filho de Abel e neto de Manuel. Em casa, 0-0. Fora, ambos empataram em 1-1 e na prorrogação cada um fez mais um, com Hernán deixando o seu ali. Nos pênaltis, ele converteu a sua e, embora Fuertes tenha errado, o Los Andes avançou por 4-3 para a final, contra o Deportivo Armenio. Em casa, o Los Andes venceu por 1-0. E fora abriu a contagem com somente 15 segundos de jogo. O gol? Foi de Hernán. O Armenio só conseguiria empatar e a partida ficou no 1-1.

“Quando entrávamos em campo pela porta atrás do gol, e nos aproximávamos da plateia, os torcedores do Los Andes iam parando para aplaudir o velho, que baixava a cabeça envergonhado, enquanto eu o olhava orgulhoso. (…) Quando logramos o acesso à primeira divisão, senti o lisonjeio e o carinho dos torcedores do Milrayitas em suas inumeráveis mostras de apreço”, já escreveu Abel Da Graca sobre a experiência própria e com o pai nos acessos com o clube de Lomas.

Já sobre aquele 3 de julho de 1994, Abel assim relatou: ‘nesse dia fui ao campo com meu pai e ambos nos abraçamos chorando quando Hernán fez o gol e essa foi a alegria mais grande que me deu o futebol; em pouco tempo o velhinho nos deixou, mas pôde ver seu neto ganhar um acesso igual ao que eu e ele ganhamos’. A família Da Graca também retrata bem como muitos dos argentinos de pele clara e cabelos lisos podem ter sangue africano, embora os hermanos negros sejam hoje mais raros“.

Hernán Da Graca é o primeiro agachado na foto que abre essa matéria. Feliz centenário, Los Andes!

Hernán Da Graca celebrando o gol de 1994 e hoje na festa no estádio Eduardo Gallardón

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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