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Há 35 anos, o Independiente era campeão sobre o rebaixado rival Racing

Giusti abrindo o placar acossado por Campos Aquino na saída de Carlos Rodríguez: foi justamente seu único gol em clássicos. Valeu título contra o rebaixado rival

O desfecho da Libertadores 2018 lançou um debate na Argentina, promovido por Riquelme: segundo ele e outros xeneizes inconformados, o jogo mais importante da história do River não poderia ser outro que não aquele em que foi rebaixado, em 2011. “Lutar por uma Copa é diferente que brigar para não cair”, dizem. Feliz é a torcida do Independiente, que já saboreou a mistura de ser campeão (ainda que do campeonato argentino) sobre um Racing rebaixado. Ainda mais quando a conquista nacional foi o trampolim para os últimos troféus do Rojo na Libertadores e Mundial.

Após tocar os céus blanquicelestes em 1967, quando se tornou o primeiro time argentino campeão mundial, a derrocada do Racing foi gradual. Continuou a brigar por títulos, disputando o triangular-final de 1968 (ganho pelo Vélez) e as semifinais de 1969 (eliminado pelo campeão Chacarita) até o vice-campeonato de 1972. Quando esse último elenco desmanchou-se, a crise acelerou. Especialmente quando se olhava a grama vizinha. Ainda em 1967, a faixa de campeão mundial do Racing foi carimbada pouco mais de um mês depois da conquista. O Independiente recebeu com pompa o rival na rodada final do Torneio Nacional, em tempos de rivalidade civilizada. Mas a partida terminou em massacre: 4-0, com dois gols do torcedor alviceleste Luis Artime, e título vermelho.

Em 1970, novamente o Clásico de Avellaneda decidiu o campeonato em favor do Rojo, que em pleno Cilindro arrancou uma virada com o gol do título saindo a dez minutos do fim, desferido pelo ex-juvenil racinguista Héctor Yazalde. Em 1971, o Independiente conseguiu novo título argentino, aproveitando-se da derrota inesperada do goleador Vélez em casa para o instável Huracán. A partir dali, construiu um domínio jamais visto na Libertadores, coroado em 1973 com a primeira conquista mundial direcionada aos armários da Doble Visera. Em 1974, o treinador que dava nome à Equipo de José campeã internacional em 1967, Juan José Pizzuti, voltou ao Racing. Conseguiu um desempenho até respeitável: ficou a um ponto do quadrangular-final do Metropolitano e finalizou em 3º no Nacional, mas o rival enfim passou a ter mais vitórias no clássico.

Em 1975, veio o tetra na Libertadores no mesmo dia em que o Racing perdia por 4-3 para o Boca em dia que vencia por 3-0. Em 1976, o Independiente não renovou o ciclo continental. Mas os mais (ou nem tanto…) psicóticos desfrutavam em ver o Racing brigando pela primeira vez para não cair. Nove anos após o auge, a Academia livrou-se do rebaixamento por apenas um ponto. A reação do presidente recém-eleito foi trazer de volta para 1977 os ídolos Agustín Cejas e Rubén Díaz, daquele time campeão mundial, assim como Alfio Basile, dessa vez treinador. E contratar figuras carimbadas da seleção argentina que brilhavam no interior: o beque Daniel Killer, do Rosario Central, e Ricardo Villa, do Atlético Tucumán.

Mario Rizzi chora o descenso racinguista na penúltima rodada. O clube, que não podia usar a arquibancada superior, usou a camisa reserva. Por ironia, o algoz foi o Racing de Córdoba

Villa e Killer integrariam a Argentina campeã da Copa de 1978, sendo exatamente os dois únicos vencedores de Copa como jogadores do Racing. Mas passaram longe de virar ídolos. A despesa de 80 milhões de pesos apenas na contratação de Villa foi inclusive vista como outra irresponsabilidade que catalisaria a crise racinguista. Nem em campo se viu justificativa: o time outra vez brigou para não cair. Para o Nacional, o time até ficou em segundo no grupo, mas só o líder avançava. O líder foi o Talleres, que chegou à decisão. E a perdeu para o Independiente…

Os veteranos Cejas e Roque Avallay e os garotos Julio Olarticoechea, Juan Barbas e Gabriel Calderón eram os nomes que sustentavam uma campanha razoável do Racing em 1978, sob as ordens de Omar Sívori, quando o time foi às quartas-de-final do Nacional – só que o torneio seria novamente conquistado pelo rival. Em 1979, novamente o máximo alcançado foram as quartas-de-final do Nacional. O time ainda tinha cacife para buscar no Boca seu treinador Juan Carlos Lorenzo, o técnico que levara o Boca às finais de 1977, 1978 e 1979 da Libertadores, ganhando as duas primeiras. Toto Lorenzo, porém, não conseguiu nada memorável em Avellaneda.

Após o título de 1978, o Independiente, por sua vez, iniciou uma entressafra. Entre as vítimas, o técnico José Omar Pastoriza, campeão ali e em 1977, além de ex-jogador do clube entre 1966 e 1972. El Pato havia chegado em 1966 em negociação direta com o Racing. Em 1981, ele fez o caminho de volta ao Cilindro e no embalo do craque uruguaio Juan Ramón Carrasco, vindo de um tri seguido no River, conseguiu boas partidas no Metropolitano: a um ponto do pódio, mas sem brigar pelo título. E isso sem poder usar o Cilindro desde abril. A montanha de dívidas fez o time concluir que lucraria mais alugando seu campo como depósito de batatas. Mesmo assim, a Academia era seriamente cogitada no Nacional. Mas ficou em última na chave.

A crise não se afastava e o clube entregou Olarticoechea ao River e Calderón ao grande rival. Até buscou soluções, como o centroavante da seleção de 1978, Leopoldo Luque. Ele já não era o mesmo, nem o Racing, novamente lanterna na fase de grupos do Nacional de 1982. Quem mais fazia jus à grife racinguista era o Racing de Córdoba: vice do Nacional de 1980, o clube homônimo fora precisamente o líder do grupo que tinha o “original” em 1982. Em 1981, o San Lorenzo havia se tornado o primeiro rebaixado entre os cinco grandes argentinos. A comoção foi tamanha que o Metropolitano de 1982, embora ainda rebaixasse seus dois lanternas (Quilmes e Sarmiento), já serviria também para a pontuação de 1983, através dos famigerados promedios.

Capas seguidas de dezembro de 1983 envolvendo o Racing: a da esquerda é após a derrota para o San Lorenzo, postulante à taça. Ao mesmo tempo, acabava oficialmente a ditadura argentina com a posse de Alfosín, mas a repressão seguiu no dia da queda racinguista

Mesmo com essa alerta, o Racing não engatou. Só venceu a partir da 12ª rodada, mas ainda pôde salvar-se do descenso na antepenúltima rodada, com um 5-3 sobre o concorrente direto Sarmiento. Quatro dos gols foram de Roberto Ropero Díaz, maior artilheiro do clube nos últimos 40 anos. Pouco após o Metropolitano, o Racing elegeu como presidente o contador Enrique Taddeo, de reputação ilibada. A curto prazo, o time pareceu acordar no Nacional de 1983. Eliminou o Boca e só caiu para o campeão, o Estudiantes. Ainda no primeiro semestre, seu time juvenil ganhou o Torneio “Projeção 1986”, que visava a descobrir talentos capazes de figurar na próxima Copa do Mundo. Mas em vez de simbolizar uma nova era, o que os juvenis causaram foi uma ciumeira no time adulto, especialmente diante de pedidos da torcida para serem escalados. Poucos tiveram chances e nenhum vingaria.

E o Independiente? Bom, o Rojo não era campeão desde aquele Nacional de 1978, uma enormidade para quem praticamente tinha um troféu por ano de 1970 e 1979, seja na Libertadores, no Argentino (o título de 1978 foi ganho já em janeiro de 1979) ou até na finada Copa Interamericana, tira-teima entre Libertadores e Concacaf cuja edição de 1975 fora travada já em 1976. O Rojo vinha de um bivice para o Estudiantes no Metropolitano de 1982 e no Nacional de 1983. Seu treinador? José Omar Pastoriza, de volta. Ele ainda é o único vira-casaca em Avellaneda como jogador e técnico. Nas cinco primeiras rodadas do Metropolitano de 1983, o Racing não venceu, provocando a queda do técnico Rogelio Domínguez, ídolo do clube como goleiro nos anos 50 (onde brilharia ainda no Real Madrid penta europeu). Àquela altura, o time já estava em último nos promedios.

Na tragédia que nem Shakespeare escreveria, a isso sucedeu-se em treino a lesão do zagueiro Gustavo Costas – que não era fora da série, mas um apaixonado desde a infância a ponto de virar o jogador com mais partidas pelo clube. O clube resolveu apostar novamente no mítico Juan José Pizzuti, que estreou na 7ª rodada. Viu-se forçado a usar um moleque do “Projeção 86”, o goleiro Juan Carlos Zubczuk, terceira opção de gol, diante da lesão prévia do titular Carlos Rodríguez (titular do Boca maradoniano campeão em 1981) após o reserva imediato Alberto González, trocado por dez bolas com o clube Renato Cesarini, falhar nos três gols da derrota de 3-2 para o Vélez.

Com quatro vitórias e dois empates nos nove jogos seguintes, o time de Pizzuti respirou ao fim do primeiro turno (estava uma posição acima dos dois rebaixados, Nueva Chicago e Temperley), embora não o torcedor Roberto Basile, morto no 2-2 na visita ao Boca na Bombonera por um disparo da torcida local. A missa realizada, porém, foi para o próprio Racing: na terceira rodada do returno, a Academia enfim voltou ao Cilindro, após mandar partidas no estádio do rival ou no do Huracán. A reabertura (que não liberou o anel superior da arquibancada) foi benta pelo pároco de Avellaneda, mas o time não saiu do 0-0 com o Estudiantes. Em paralelo, o Independiente, sem vencer nas três primeiras rodadas, engrenou, com quatro triunfos nos seis jogos seguintes. Após novo período sem vitórias, venceu três vitórias entre a 16ª e a 19ª rodadas, incluindo um 3-0 no Talleres e um 2-1 no clássico, pela última rodada do primeiro turno.

Outro ângulo do gol de Giusti na rodada final do Metropolitano de 1983

Uma nova série roja invicta, com quatro vitórias, veio entre a 21ª e a 26ª, encerrada com derrota em casa para seu concorrente: o surpreendente San Lorenzo, que voltava com tudo à primeira divisão e faturou em Avellaneda um 2-0. O Racing, por sua vez, não se reerguia. No segundo jogo em casa, até bateu por 1-0 o concorrente Chicago, mas na rodada seguinte, em outro confronto direto contra a queda, foi surrado por 3-0 pelo Temperley fora. Pizzuti não usava a garotada do “Projeção 86” pela justificativa de que quem deveria tirar o Racing do abismo eram os experientes que haviam permitido que a situação chegasse àquele ponto. Mas também não se furtava em suspender entre estes quem julgava não demonstrar profissionalismo, casos de Félix Orte e Carlos Sosa. Até o goleador Roberto Díaz preferiu se mandar dali, acertando com o futebol chileno.

Por um momento, porém, o idealismo de Pizzuti e do presidente Taddeo pareceu premiado. Após aqueles 3-0, a Academia bateu o Vélez por 2-1, segurou em Córdoba um 0-0 com o Talleres e em seguida bateu Rosario Central (3-1) e o Platense (1-0). O jogo seguinte foi recebendo o Boca e logo no início o talismã Mario Rizzi, autor de três gols naquele sequência, marcou outro. Mas os xeneizes viraram para 3-1, já pela 31ª rodada. O Independiente, por sua vez, batia por 2-1 o River no Monumental. Desde a derrota por 2-0 em casa para o San Lorenzo na 28ª rodada, o Rojo não perderia mais no torneio. Diferentemente do vizinho.

Após o balde de água fria do Boca, o Racing iniciaria em dezembro uma maratona de sete jogos em vinte dias, começando pela visita ao Ferro. Àquela altura, o Chicago já parecia irremediavelmente condenado, com o Temperley visto como o concorrente, e o Racing de Córdoba correndo por fora após passar dezoito rodadas sem vencer. A Academia perdia de 1-0 em Caballito, em partida suspensa a 15 minutos do fim após um objeto arremessado pela torcida local, descontente com a anulação do segundo gol, ferir o bandeirinha.

O próximo jogo do Racing era uma visita ao Huracán, e um suborno alviceleste foi especulado, mas afastado pelo presidente Taddeo: “o Racing ganha em campo as partidas. Se for pela grana, eu entro e jogo de goleiro pois sempre foi meu sonho”. O oponente ganhou por 3-1. Venceu o jogo seguinte, por 1-0 sobre o Instituto, mas nem ali havia tranquilidade: por perder um gol sem goleiro com o jogo ainda empatado, Juan José Meza chegou a ser agredido no intervalo pelo colega Rodolfo Rodríguez. Em 11º de dezembro, a torcida progressista do Racing mal pôde festejar o fim da ditadura argentina, na posse do presidente civil Raúl Alfonsín: o San Lorenzo ganhou-lhes por 1-0 e mantinha sua perseguição ao outro time de Avellaneda.

Trossero era torcedor do Racing na infância e a princípio parecia que não comemoraria seu gol. Ledo engano: farto de dois vices seguidos, logo vibrou com Giusti

Para piorar, o Temperley vencera por 3-2 o Newell’s dentro de Rosario. A sobrevida racinguista veio na disputa dos 15 minutos finais contra o Ferro: a Academia foi capaz de empatar, com Carlos Caldeiro. 48 horas depois, recebeu o Unión, outro time ameaçado. Empatava em 1-1 quando conseguiu um gol a cinco minutos do fim. Em paralelo, o Temperley só empatava em casa com o San Lorenzo. Mas houve tempo para o Unión buscar o empate, com o veterano Miguel Brindisi aproveitando falha geral da defesa alviceleste para ficar livre diante de Carlos Rodríguez. Assim, a chance de rebaixamento ainda na penúltima rodada ficava real. A ironia é que o jogo seria contra o Racing de Córdoba. Como tragédia pouca é bobagem, pouco antes do jogo o goleiro Rodríguez soube que sua esposa estava internada após assalto na casa deles…

Os cordobeses abriram 1-0, mas em vinte minutos o Racing original conseguiu a virada e manteve o 2-1 até o intervalo. Mas o visitante contra-virou em gols relâmpago, aos 8 e 11 do segundo tempo. Ainda assim, a derrota não bastava para o Racing cair, pois o Temperley só empatava com o River. Mas então Néstor Scotta, o ex-gremista ídolo da Academia nos anos 70, fez o gol da vitória do Gasolero ante o Millo. O Racing caía com isso e ainda sofreu um quarto gol. A plateia já deixava o Cilindro quando o clube diminuiu faltando cinco minutos e reascendeu alguma esperança por um empate salvador. O refluxo da torcida assustou as forças de segurança ainda acostumadas com o aval estatal para repressão. Seguiu-se um confronto de cadeiras e gases lacrimogêneos nas arquibancadas.

O jogo seguiu, mas ficou no 4-3, com os jogadores descendidos desconsolados e um deles, Rizzi, chegando a vomitar com a crise nervosa. Um dos torcedores presentes naquele clima de funeral relataria que “Enrique Taddeo foi o único presidente íntegro que o clube teve. Tentei xinga-lo na tarde do rebaixamento e quando me dei conta que seu crime foi a honradez, fui chorando para casa”. O rebaixamento antecipado fez com que os titulares não fizessem a menor questão de jogar o clássico para a rodada seguinte. Com o San Lorenzo na cola, o Independiente não deu margens para o azar e bateu o cachorro morto representado enfim pelos juvenis. Que tiveram brio: no primeiro tempo, o goleiro rojo Gustavo Moriconi trabalhou mais do que Carlos Rodríguez, um dos poucos titulares racinguistas com ânimos em participar.

Mas aos 43 minutos Rodríguez foi vencido com classe por Ricardo Giusti, aproveitando passe açucarado do maestro Ricardo Bochini, único remanescente do time tetra da Libertadores. E aos três minutos do recomeço, Enzo Trossero – torcedor racinguista na infância – deixou a defesa sem ser incomodado, andou, andou, arriscou de longe e marcou, permitindo que o Independiente segurasse tranquilamente o resultado e a torcida parodiasse o “ya lo ve, ya lo ve, El Equipo de José” dos anos 60 para “a la B, a la B, El Equipo de José“. Trossero declararia que sentia alguma pena na ocasião, “mas mas nós vínhamos de dois vices e queríamos ganhar um título sim ou sim”, a ponto de socar um torcedor que invadiu o campo para inibir outros, ao ouvir ameaça do juiz de que o jogo poderia ser suspenso. Nada mais grave sucedeu e não houve Papai Noel mais Rojo na história do que o festejado naquele 22 de dezembro de 1983.

Para mais detalhes do rebaixamento racinguista, recomendamos esta nota de Carlos Aira, fonte primordial dessa matéria.

https://twitter.com/Independiente/status/1076583807464206336

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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