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Há cem anos, o Boca era, pela 1ª vez, campeão argentino

José Ortega, Mario Busso, Alfredo Elli, José Alfredo López, Américo Tesoriere e Antonio Cortella; Pedro Calomino, Pablo Bozzo, Alfredo Garassini, Alfredo Martín e Pedro Miranda, os titulares dos bicampeões de 1919 e 1920

Em tempos em que o uniforme sequer era padronizado, como se vê na imagem acima, o clube que busca espaços em seu escudo para acrescentar estrelas de cada título oficial hoje festeja o centenário da inauguração de um hábito: ser campeão. Era apenas a oitava partida do campeonato argentino de 1919, que já adentrava o ano de 1920. Ainda estavam programadas mais duas rodadas. Mas em 4 de janeiro os xeneizes já estavam matematicamente insuperáveis na tabela, levando o próprio conselho superior da associação argentina a cancelar, duas semanas depois, as partidas restantes. E, na mesma esteira, o time também logo ganhou outras taças, incluindo seu primeiro título internacional.

Por que somente oito partidas? Por uma politicagem similar à que já havia colocado o clube na elite. Embora se orgulhe de ser o único clube incaível na Argentina, o Boca já esteve sim na segundona. Afinal, ela foi criada ainda em 1899, ao passo que os auriazuis foram fundados já em 1905. Após limitar-se a torneios amistosos, a equipe enfim afiliou-se na AFA (na época, AAF) em 1908. Curiosamente, os dirigentes podiam escolher entre inscrevê-lo na segunda ou na terceira divisão. Os novatos foram longe, chegando às semifinais, caindo para outro futuro gigante – o Racing, que assim impediu nada menos que uma final em Superclásico. Pois o outro finalista foi justamente o River, que terminou campeão. Eliminado na fase de grupos da segundona de 1909, o Boca voltou a triscar título e acesso em 1910. Chegou à final, mas outra vez viu no Racing um algoz, com o time de Avellaneda sagrando-se campeão; demoraria muito para o vice também ser contemplado com o acesso.

Em 1911, o time foi reforçado com a figura do ponta Pedro Bleo Fournol, mais conhecido pelo sobrenome da família que o adotou, Calomino. Seria um dos primeiros ídolos azul y oro eternos: lembrado pelas pedaladas, ficou até 1924 no time, defendendo a seleção no período, e seus 96 gols fizeram dele o maior artilheiro do clube até os anos 30. Mas nem ele evitou que a equipe simplesmente brigasse com o rebaixamento até a rodada final, quando respirou em Núñez com um 6-1. Não, claro, contra o River, ainda um clube vizinho no bairro de La Boca (esse foi o fator que criou a rivalidade, ainda denominada de Clásico Boquense em meados dos anos 30 antes de virar o Superclásico). E sim sobre o obscuro Comercio.

Em 1912, então, veio o primeiro dos três grandes cismas do futebol argentino. A cobrança de ingresso nos jogos do Gimnasia y Esgrima de Buenos Aires mesmo em desfavor de seus sócios foi o estopim para que esse clube liderasse um cisma contra a AFA e criasse um órgão dissidente, a Federação Argentina de Futebol. Outros clubes aderiram, sendo o Independiente (então na segunda divisão, o Rojo também subiu via escritório) o de futuro mais proeminente – chegou a ser vice do certame inaugural da FAF. O Boca terminara o torneio de 1912 em terceiro, abaixo do campeão Ferro Carril Oeste e Platense. Mas, pela canetada, foi posto na elite da AAF. Em reação aos dissidentes, o órgão oficial inchou sua primeira divisão com todos os demais clubes da segundona.

Isso assim propiciou que o ano de 1913 rendesse o primeiro Superclásico na elite, e as primeiras convocações xeneizes à seleção (as de Francisco Taggino e Donato Abbatángelo). Essas convocações tinham credenciais: o Boca tratou de justificar a medida política, terminando na segunda colocação de seu grupo no torneio de 1913, embora só o líder (San Isidro) avançasse para a final, na qual o Racing terminou pela primeira vez campeão da elite. Em 1914, os xeneizes ficaram em terceiro, atrás fechando o pódio com o Racing bicampeão e o Estudiantes de Buenos Aires. A AAF e a FAF, então, se reunificaram, convalidando inclusive alguns jogos de combinados da FAF como da própria seleção argentina – caso do primeiro duelo da Albiceleste contra o Brasil, naquele mesmo ano de 1914.

Calomino, um dos inventores da pedalada, foi o primeiro grande ídolo do Boca

No certame de 1915 e 1916, o Boca foi o time de meio de tabela até recobrar força com dois terceiros lugares seguidos, em 1917 e 1918. O Racing vinha sendo campeão em todos esses anos, ao passo que o River fora bivice em 1917-18. Para 1919, o Boca reforçou-se com antiga peça daquele Racing já hexacampeão: Zoilo Canaveri, que inclusive vinha do Independiente após já tê-lo integrado no elenco vice de 1912 na FAF. Outro reforço proeminente foi Mario Busso, do Atlanta. Ambos, curiosamente, estão entre os estrangeiros que defenderam a Argentina – Canaveri era uruguaio (e seus dois jogos foram justamente contra a terra natal…) e Busso, italiano.

Os reforços incluíam ainda José Ortega, defensor do Argentino de Quilmes, e Antonio Cortella, do Defensores de Belgrano. Remanesciam dos anos anteriores boa parte dos ídolos dos primórdios xeneizes: além de Pedro Calomino, também o goleiro Américo Tesoriere e o lateral Alfredo Elli (que defenderam o time de 1916 a 1927) foram lembrados em 2010 na edição especial na qual a revista El Gráfico elegeu os cem maiores ídolos bosteros. Tesoriere, inclusive, foi o primeiro jogador a ser personagem de capa da quase centenária revista, já em 1922.

Calomino, Elli e Tesoriere já haviam sido listados entre os cem ídolos do Boca no livro oficial do centenário, em 2005 – juntamente com o meia Alfredo Martín (1918-21 e 1923) e o atacante Alfredo Garassini (1916-20 e 1922-28), que também defenderam a seleção como jogadores do Boca, e o citado Mario Busso. Canaveri não virou ídolo histórico, mas esse livro mostra que sua figura nas vestes auriazuis estamparia a capa do disco de um tango que inspirou na época. O torneio começou em março, mas logo foi pausado para a Copa América. Calomino, Alfredo Martín e Cortella foram convocados do clube, assim como Enrique Brichetto – um defensor que marcara em 1918 o gol do primeiro triunfo xeneize em Superclásicos na elite e que era sobrinho exatamente do ex-presidente em cuja gestão adotou-se as icônicas cores suecas (Juan Rafael Brichetto).

Com a pausa para a competição continental, a quarta rodada só ocorreu já no fim de junho. Em julho, em paralelo ao campeonato, deu-se início à Copa Competencia, que desde 1900 opunha clubes das associações argentina, rosarina e uruguaia. Após passar por Gimnasia LP (2-0) e Eureka (2-1), o Boca foi eliminado por 2-0 pelo poderoso Racing, em 17 de agosto. Tudo em meio a um surto da letal gripe espanhola acentuado no inverno – a própria Copa América recém-finalizada ocorreria originalmente em 1918 e terminou adiada por conta do surto inicial da pandemia. Mas pouco após a retomada depois eclodiu a crise que levou a um segundo cisma na década, mais por politicagem do que pela doença: em agosto, a Associação rejeitou as nomeações de representantes de alguns clubes, que ignoraram a postura. Ela então os suspendeu provisoriamente as afiliações deles: nada menos que o multicampeão Racing, o bivice River, o já tradicional Independiente (que liderava o certame), além de Platense, Tigre e Estudiantil Porteño.

Embora a medida tivesse caráter temporário e não fosse uma expulsão definitiva, os clubes receberam solidariedade: Atlanta, Defensores de Belgrano, Estudiantes de Buenos Aires, Gimnasia LP, San Isidro, San Lorenzo e Sportivo Barracas insistiram que a penalidade fosse revista. Aí, sim, a AAF reagiu expulsando a todos eles, que então criaram a dissidente Associação de Amadores (ainda que o amadorismo já começasse a ser de fachada). Os dissidentes puderam concluir ainda em 1919 um campeonato à parte, reiniciado do zero entre setembro e dezembro, no qual o Racing emendou seu recordista heptacampeonato seguido. Única reconhecida perante a FIFA, AAF não deu o braço a torcer e também reiniciou do zero o torneio de 1919, a partir de setembro também, embora só seis clubes restassem-lhe fiéis: Boca, Estudiantes de La Plata, Huracán, Eureka, Almagro e Porteño, na ordem final da tabela.

Foto da estreia, contra o Porteño, a única que o excelente Historiadeboca possui do torneio de 1919. O ponta Canaveri marcou três e, embora não seguisse titular na concorrência dura com Calomino, virou tango

Em 28 de setembro, o Boca começou com tudo: em 14 minutos, já fazia 3-0 no Porteño (Alfredo Martín aos 10 e Canaveri aos 11 e 14) e em meia hora já ganhava de 4-1, em jogo finalizado em 5-1; os outros gols saíram aos 23, no desconto adversário com Pascual Polimeni, Canaveri alcançou aos 30 seu hat trick e faltando sete minutos Pedro Miranda assinou o quinto. Em 5 de outubro, foi a vez de visitar o Huracán, o clube que viraria o principal rival do Boca até 1926, quando as duas associações se reunificaram (só eles puderam ser campeões na AAF durante o cisma), convalidando-se os títulos dissidentes como oficiais também. Busso, aos 15, e o meia Pablo Bozzo, aos 42, definiram ainda no primeiro tempo um importante 2-0. O compromisso seguinte tardou até 26 de outubro, contra o Eureka: aos 25, Calomino abriu o placar, empatado aos 35 por um certo Lucarelli. O mesmo Calomino, de pênalti, assinalou aos 43 o 2-1 definitivo. Em paralelo, a tal Copa Competencia também foi retomada do zero, com o Boca reestreando em 9 de novembro, vencendo por 3-0 o Estudiantes e depois eliminando o Porteño por 3-2 em 16 de novembro.

Pelo campeonato, o compromisso seguinte após aquele triunfo sobre o Eureka tardou até 23 de novembro. Na ocasião, a força boquense foi confirmada: o Estudiantes abriu o placar aos 15, com Calandra. Aos 33, então, o Boca foi contemplado com um penal inexistente. Os platenses protestaram, com o goleiro Barcus inclusive posicionando-se de costas para o arremate. Calomino então desperdiçou de propósito a penalidade, para o aplauso da própria torcida xeneize. A atitude foi recompensa com uma virada-relâmpago ainda no primeiro tempo: Calomino igualou aos 40 e aos 42 a virada veio com Alfredo Martín. Ainda não se havia concluído um primeiro turno, mas o oponente seguinte foi novamente o Eureka, em 30 de novembro. Garassini marcou, aos 11 e aos 33, os dois gols de uma vitória fora de casa, em partida de 45 minutos; as fortes chuvas suspenderam e a associação decidiu por manter o resultado sem que o jogo fosse complementado ou recomeçado do zero.

Em 14 de dezembro, enquanto o Racing lograva seu hepta seguido na liga dissidente, o Boca ainda encerava sua sexta partida na liga “oficial”. Reencontrando o Porteño, saiu atrás no placar, com Polimeni marcando logo aos 8 minutos. Mas o primeiro tempo se encerraria com goleada auriazul, em gols de Bozzo (13), Calomino (20), Bozzo (32) e Elli (43). Calomino ainda desperdiçara pênalti aos 39, mas o quinto gol boquense saiu. Foi com Alfredo Martín, aos 30 do segundo tempo. Aos 43, Carlos Izaguirre (homem de dois gols no primeiro Brasil x Argentina, em 1914) diminuiu a goleada para 5-2. Resultado sucedido por outro muito mais sonoro: em casa, o Boca liquidou o Huracán. Em grande exibição, Garassini tornou-se o primeiro xeneize a marcar quatro vezes em um só jogo, comemorando aos 4, aos 39, aos 49 e aos 83. Seu quarto gol inclusive abriu ainda mais a torneira, com Calomino marcando aos 84 e Alfredo Martín, aos 85. O placar, de 7-0, foi completado no primeiro tempo com um gol de Bozzo, aos 14.

Após os 7-0, o Boca entrou em campo no dia 28 de dezembro pelas semifinais da Copa Competencia, triunfando por 2-0 sobre o Belgrano de Roesario. Na liga, o Almagro era o único clube ainda não enfrentado pelo Boca e foi justamente esse o duelo de cem anos atrás. Foi um 4-0 com Miranda (aos 19 e aos 70) e Alfredo Martín (aos 44 e 62) dividindo as autorias. Faltando quinze minutos, então, veio uma polêmica: o árbitro Profumo deu a partida por encerrada, relatando agressões aos adversários C. Adet, J. Adet e Vieyro. Nada que revertesse o resultado e o título assegurado por antecipação: o Boca, afinal, somava dezesseis pontos, contra sete do segundo colocado, o Estudiantes. Supremacia reforçada ao longo de 1920: em 18 de janeiro, o time protagonizou uma reviravolta na final nacional da Copa Competencia.

O 0-0 com o Rosario Central forçou prorrogação, com Tesoriere salvando um pênalti no 12º minuto extra para Calomino converter outro no minuto seguinte e dar a vitória mínima aos auriazuis da capital. Em 8 de fevereiro, a dupla se reencontrou, agora pela Copa Ibarguren, um tira-teima entre o campeão da liga argentina (que, apesar do nome, era restrita à Grande Buenos Aires e La Plata) com o da liga rosarina, que moralmente definia o melhor time do país. Repetiu-se uma vitória de 1-0, agora garantida já com dez minutos de jogo, gol de Miranda. Em março, começou o campeonato de 1920, com o Boca conciliando-o em maio com dois jogos contra o Nacional de Montevidéu: no dia 16, o duelo valeu pela Copa Ricardo Aldao, um tira-teima entre o campeão argentino e o uruguaio para definir a melhor equipe do Rio da Prata.

Em jogo único em sua casa, os tricolores venceram por 3-0. Mas levaram o troco no dia 25, agora pela final da Copa Competencia. No estádio do Sportivo Barracas, o Boca, mesmo jogando com um a menos desde os 15 minutos após lesão de Busso (não se permitiam substituições), triunfou por 2-0, gols de Miranda aos 32 e de Bozzo aos 75. Os xeneizes cederiam Calomino, Cortella e Tesoriere à Copa América e em dezembro faturariam, na liga, o seu primeiro bicampeonato. Títulos em série que não deixaram de respingar em todo o bairro de La Boca: ainda sediado lá, o River reagiu faturando em paralelo seu primeiro título argentino também, no certame dissidente de 1920. Mas essa já é outra história, contada nesse outro Especial – assim como a do terceiro cisma, em meio a outro bicampeonato boquense, em 1930-31.

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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