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Luto por Carlos Barisio, o goleiro dos mil minutos

De camisa azul claro, abraçado por colegas e até adversários quando quebrou o recorde anterior

Nos anos 60, o sóbrio Antonio Roma e o irreverente Amadeo Carrizo eram os goleiros da dupla Boca e River. A rivalidade dos clubes se expandiu a seus arqueiros, com o mais renomado Carrizo não tendo na seleção o mesmo protagonismo de Roma (até hoje o jogador do Boca mais usado pela Albiceleste), cujo clube cansou-se de ser campeão em ralis contra o rival naquela década. Foi como quarentão que Carrizo, em meio à campanha semifinalista de 1968, alegrou o país ao chegar a um recorde profissional de minutos sem tomar gols, 730. Pois Roma o superou com 783 já no ano seguinte, detendo a marca por doze anos. Desde 1981, ela foi quebrada pelos 1.075 minutos em que Carlos José Barisio segurou os arcos. Embora tenha defendido a própria dupla Boca e River, seu feito foi ainda maior, pois alcançado quando protegia uma camisa modesta, a do Ferro Carril Oeste. Que iniciaria seu auge com o goleiro falecido ontem.

Nascido em 3 de janeiro de 1951 em San Fernando, ao norte da Grande Buenos Aires, Barisio formou-se no River. Chegou em 1968 a tempo de pegar exatamente o final da Era Carrizo. A lenda despediu-se de Núñez não muito depois daquele recorde de 1968, seguindo carreira na Colômbia. Até a vinda de Ubaldo Fillol no início de 1974, o clube viveu uma entressafra para encontrar um substituto à altura, especialmente porque dispensou o ainda mais espivetado Hugo Gatti (dono da carreira mais longeva do futebol argentino) também ao fim de 1968. Só em 1969, três goleiros diferentes atuaram no Superclásico: Hugo Carballo, Alfredo Gironacci e José Alberto Pérez, o que por mais tempo pôde permanecer; só saiu em 1975, perdendo a disputa com Fillol, mas chegando para ser titular no quarto título seguido do Independiente na Libertadores.

El Perico Pérez ainda revezava-se com Carballo em 1971 quando Barisio teve então sua chance. E que fogueira: os atletas profissionais fizeram greve. O campeonato não parou, com os clubes usando então seus juvenis. Os protestos acabaram ainda antes de um Superclásico em novembro, disputado no campo neutro do Racing pelo Torneio Nacional. O Boca atuaria com o time completo, mas a diretoria millonaria não quis conversa: manteve internamente suspensões aos astros que aderiram ao movimento. Em um duelo dos mais famosos da rivalidade, a garotada riverplatense bancada pelo técnico brasileiro Didi bailou por 3-1 as estrelas rivais. Barisio realizou duas boas defesas com o placar ainda em 1-0 (gol de Joaquín Martínez, tio de Juan Manuel Martínez, ex-Corinthians, Vélez, Boca e Independiente) e só foi vencido em uma cobrança de pênalti. “Foi uma vitória histórica. Foi um dos jogos que se todos que disseram que estiveram lá de fato estivessem, teria sido o clássico com maior presença de gente. Foi um jogo em que os jogadores contarão a seus netos que estavam lá”, escreveu o comentarista Diego “Chavo” Fucks.

Com camisa verde no River juvenil que venceu o time principal do Boca em 1971, o grande momento de Barisio como millonario

Só que Barisio não demorou a ir do céu ao inferno no Superclásico. No duelo seguinte, já em março de 1972, pelo Torneio Metropolitano, foi ele o goleiro que sofreu um 4-0 aplicado pelo Boca em pleno Monumental. O concorrente Pérez logo retomou a posição e, com a chegada de Fillol em 1974, Barisio foi repassado ao Gimnasia LP em 1975. Pôde enfim ter uma sequência de partidas, ao menos até outubro, embora não bastasse para levar o Lobo além do 12º lugar no Metropolitano – no Nacional, o titular passou a ser Eduardo Dallovere e o time de La Plata contratou para 1977 o astro Carlos Buttice, ex-Corinthians. Entre 1976 e 1978, Barisio então defendeu os arcos do All Boys, experimentando a dureza de três torneios seguidos onde o clube da Floresta escapou por pouquíssimo do rebaixamento: só um ponto impediu o descenso do Albo em 1976 e 1977, e a distância “subiu” para dois em 1978. Em paralelo, o Ferro Carril Oeste foi campeão da segunda divisão de 1978, tendo como arqueiro o veterano Rubén Sánchez – ex-seleção, Sánchez era exatamente o goleiro do Boca naquele famoso Superclásico de 1971.

O Ferro terminou em outubro sua participação na segundona, a tempo de disputar ainda em 1978 o Torneio Nacional, iniciado em novembro. O homem que salvava o All Boys foi requisitado pelos verdolagas e estreou pelo novo clube em 10 de dezembro, em visita ao poderoso Talleres da época (só o River fora mais representado que La T na seleção recém-campeã mundial, e os cordobeses venceram por 3-2). Inicialmente, o Ferro segurou-se na elite com campanhas de meio de tabela tanto naquele Nacional como no Metropolitano de 1979. Bem reforçada com o curinga brasileiro Rodrigues Neto, titular da canarinho na Copa do Mundo de 1978, a equipe do bairro de Caballito deu uma primeira mostra de superação no Nacional: dividiu em seu grupo a segunda colocação com o Unión. Protegido pelo jovem Nery Pumpido, o clube da cidade de Santa Fe, recém-vice do Metropolitano de 1979, avançou pelo critério de desempate.

Em 1980, o Ferro decaiu para 13º no Metropolitano, mas esteve novamente no páreo em seu grupo no Nacional; ficou em 3º na chave, perdendo a classificação por dois pontos. Um presságio do que estava por vir. Para 1981, o Boca sacudiu o mercado com a vinda de Maradona, e o River respondeu trazendo Kempes. A aposta em Maradona logo se cumpriu, com os auriazuis voltando a ser campeões argentinos depois de meia década. Mas não foi fácil: a taça veio na rodada final, com um só pontinho a mais… do que o Ferro de Barisio. Os verdolagas já haviam sido capazes de bater fora de casa o Independiente em Avellaneda, o rival Vélez, o Estudiantes,(todos por 1-0), o Instituto de Córdoba (em 7-3 sob aplausos da própria torcida adversária) e o Huracán (2-0). Na 20ª rodada, ganharam em casa do San Lorenzo por 2-1, contribuindo para o posterior rebaixamento azulgrana, o primeiro de um gigante na Argentina.

Entre Carrizo e Roma, os donos anteriores do recorde que segue sendo de Barisio no futebol profissional

Então veio a sequência mágica para Barisio e seu muro defensivo com Mario Gómez, Héctor Cúper, Juan Rocchia e Oscar Garré, completados pelo volante Gerónimo Saccardi: ficaram intransponíveis pelos dez jogos seguintes. Garré, inclusive, acabaria indo à Copa de 1986. A sequência começou com outro 1-0 fora de casa, no Newell’s. Seguiu-se um 0-0 em Caballito contra o Independiente, um 1-0 sobre o River em Núñez, um 3-0 no Clásico del Oeste com o Vélez (normalmente dominante no dérbi, La V Azulada viraria freguesa só naqueles dourados anos 80 do rival, premiado até pela UNESCO na época), 1-0 no Argentinos Jrs em La Paternal, 0-0 com Estudiantes e Colón até o recorde de Roma cair em alto estilo: sem revanche, o Instituto levou de 4-0 em Caballito, o que não impediu fair play do lado goleado nos aplausos ao recordista Barisio a partir dos 23 minutos do segundo tempo, quando o recorde foi assegurado – o próprio goleiro adversário Rubén Guibaudo atravessou o campo para também lhe cumprimentar. A invencibilidade foi estendida com um 2-0 no Rosario Central, um 1-0 como visitante do Racing até o time empatar em 1-1 em casa com o Talleres, em gol sofrido quando só faltavam dois minutos para acabar a partida.

A sequência serviu para que o Ferro se igualasse na liderança ao vibrante Boca maradoniano, mas a quebra aparentemente gerou certa ansiedade. O jogo seguinte foi justamente um duelo direto em La Bombonera, já pela antepenúltima rodada, com a empolgada torcida visitante preenchendo as duas arquibancadas fornecidas. Afinal, a diferença de camisas não se fazia sentir tanto nos confrontos diretos, onde o Boca simplesmente não conseguiu vencer em Caballito nenhum deles entre 1974 e 1991. A muito custo, o talismã Hugo Perotti (pai de Diego Perotti, hoje na Roma) achou o único gol da partida, em favor dos auriazuis. Aquela foi apenas a terceira derrota do Ferro no torneio, e a última. O Boca ficou então dois pontos na frente (valor da vitória na época, que não era três), mas foi derrotado na rodada seguinte em Rosario para o Central – com direito a Maradona perdendo pênalti. E o Ferro deixou escapar uma oportunidade de ouro para reigualar-se: abriu 3-0 no Huracán, mas o adversário, enervado com zombarias a seu declínio como grande, simplesmente buscou o empate em 3-3 dentro de Caballito. Na rodada final, Barisio e colegas até mantiveram o 3-0 aberto diante do Atlanta, mas o empate em 1-1 do Boca com o Racing serviu-lhe para coroar Dieguito, que dessa vez não perdeu o pênalti assinalado.

O vice-campeonato, com 50 gols marcados e só 20 sofridos, era ainda assim a melhor colocação do Ferro até então, e ele soube manter a boa fase para o Nacional: liderou o grupo que tinha o River de Kempes, vencido nos dois duelos diretos. Nos mata-matas, eliminou San Lorenzo, Gimnasia de Jujuy e, especialmente, o rival Vélez nas semifinais. Mesmo sob reforço de seu maior matador, o ainda atacante Carlos Bianchi, os fortineros (que haviam eliminado o Boca maradoniano no mata-mata anterior) perderam por 2-1 em casa e não passaram do 1-1 em Caballito. O adversário na final? O River, que, em campanha acidentada, cresceu na hora certa e venceu por 1-0 os dois jogos, coroando o irregular Kempes como ídolo – o atacante voltou de longa suspensão exatamente para o jogo derradeiro e marcou o gol. Em depoimento ao livro do centenário do Ferro, Barisio admitiu que o bivice seguido foi mais amargo do que doce a um clube que não era acostumado a brigar por títulos no futebol: “na pré-temporada desse ano, nos perguntávamos se poderíamos voltar a fazer 1981, quando nos acotovelamos com os maiores e arranhamos o título. E por sorte não só repetimos, e sim superamos aquela campanha”.

Uma tarde na campanha enfim campeã do Ferro: Arregui, Gómez, Garré, Cúper, Rocchia e Barisio; Saccardi, Juárez, Cañete, Jiménez e Crocco

Recolhendo os frutos da experiência, o elenco demonstrou em alto estilo como aprendera a lidar melhor com a pressão dos momentos decisivos: não só foi campeão no primeiro semestre de 1982. Foi campeão invicto, algo só visto duas vezes no profissionalismo argentino até então. Enigmático para os grandes e devastador para os pequenos, aquele Ferro de 1982 foi criticado como um time que ganhava jogando feio. Fama um tanto injusta a quem soube vencer por 4-0 fora de casa tanto o Independiente como o rival Vélez em meio às duas fases de grupos. Nas semifinais, mais quatro gols nos dois jogos: 4-0 em casa sobre o Talleres e 4-4 em Córdoba, antes da coroação frente o Quilmes – embora Barisio já não se fizesse presente na tarde da festa. Eduardo Basigalup era o arqueiro na escalação que ficou para a história lograda em 27 de junho, mas as estatísticas mais apuradas também mostram que o concorrente figurou em seis jogos contra os dezoito em que Barisio atuou na campanha histórica: nem River e Boca haviam conseguido uma taça invicta na era profissional. O Millo só conseguiu isso uma vez, já em 1994, com o rival conseguindo em 1998 (no primeiro troféu da Era Bianchi) e em 2011.

O “clube dos profissionais invictos” só reúne esses elencos e dois do San Lorenzo, o do Metropolitano de 1968 (eliminando o recordista Carrizo nas semifinais) e o do Nacional de 1972. E a ressaca foi grande em Caballito, com o Ferro terminando em 9º no torneio do segundo semestre. Mas o cartaz seguia fresco para Barisio. Se seus 32 anos já poderiam pesar contra uma oportunidade na seleção, jamais defendida por ele a despeito do recorde, ele foi contratado em 1983 pelo Boca. O superlongevo Hugo Gatti, agora xeneize, já tinha 39 anos, mas o reforço não conseguiu impor-se à lenda: só foram três partidas oficiais pelo campeonato argentino, entre abril e dezembro, além de cinco amistosos, que incluíram derrota de 2-1 para seleção saudita. Gatti seguiria firmemente na posição até os 44 anos e o reserva seguiu carreira pelas divisões de acesso já a partir de 1984. Enquanto seus ex-colegas eram novamente campeões, no segundo e último título do Ferro (suficiente para o clube ter mais troféus que o Vélez por nove anos…), Barisio trabalhava no Deportivo Armenio e passaria ainda pelo Chacarita até pendurar as luvas em 1988. Seguiu insuperável até seu falecimento.

Em 2014, quando o Ferro fez 110 anos, preferimos escalar no time dos sonhos o citado Antonio Roma em seu lugar – afinal, El Tano pudera chegar à seleção ainda como protagonista verdolaga antes de colecionar glórias no Boca. Uma das últimas entrevistas de Barisio foi justamente em tom de humildade em relação ao recorde que tirara de Roma, compartilhando o sucesso pessoal como um êxito também dos colegas de defesa. Foi em julho de 2019, ao ser abordado pelo Infobae: “estava tudo tão bem sincronizado e trabalhado que nos entendíamos quase sem nos olhar entre os cinco. O Ferro era um pequeno, mas com espírito de grande. Um goleiro de time pequeno recebe muitas situações de gol por jogo. A defesa era tão boa que quase não chegavam em mim, mas tinha que estar atendo e não falhar nesses momentos. Era muita concentração durante os 90 minutos. Chegava à minha casa e parecia que um trem me havia passado por cima”.

Rara imagem no Boca, entre Pablo Comelles e Juan José López, ambos também ex-River. E em imagem recente, contemplado com uma entre tantas homenagens do Ferro

A marca de Barisio não é um recorde absoluto por pouco: em 1926, ainda na era amadora, Pedro Isusi, do Independiente, acumulou 1.101 minutos em meio ao título argentino (o segundo do clube). Marca ofuscada como tantas outras com o advento oficial do profissionalismo a partir de 1931. Ao Infobae, Barisio diria mais: “no dia do jogo contra o Instituto, fiz a melhor defesa da minha vida, antes de bater o recorde. Saccardi foi cobrir Garré, que havia ido ao ataque, e ganhou do ponta-direita Rodolfo Rodríguez. Ao ter a bola, quis mudar de frente para sair com Mario Gómez, nosso lateral-direito, mas a pôs no peito de Juan José Meza, o excelente camisa 10 deles, que estava na meia-lua. A dominou e chutou forte, abaixo da minha direita. Voei e salvei por pouco”.

“Eu não sabia nada do recorde. Só me inteirei ao acabar o 0-0 com o Colón em Santa Fe, na rodada anterior, quando um jornalista me disse: ‘sabias que no próximo jogo poderás quebrar a marca de Antonio Roma? Desde o dia seguinte (segunda-feira) até a quinta-feira que era o encontro com os cordobeses, me martelaram o telefone, da rádio e da televisão. Sou absolutamente sincero: não cheguei ao campo do Ferro pensando nisso e joguei como um jogo mais, porque a meta era poder alcançar o Boca. Feito que se deu três dias depois e ali tomamos consciência de que podíamos ser campeões”. 

“Foi algo muito emocionante, compartilhado com os rapazes do Instituto, que vieram me abraçar. Me convidaram ao Polémica en el Bar (o programa mais visto). Estava mais nervoso no momento de entrar em cena do que quando bati o recorde. O mais emocionante foi chegar em minha casa em San Isidro, subir até o apartamento do décimo andar e ver toda a porta cheia de mensagens dos vizinhos com as felicitações. Esse foi o melhor prêmio, porque se referiam primeiramente a mim como pessoa. A ficha só caiu no outro dia, quando cheguei ao treino e estavam Amadeo Carrizo e Antonio Roma, duas glórias do arco, que haviam sido citados para que fizéssemos uma reportagem os três juntos para a revista Estadio. Eu havia estado no dia em que Amadeo havia batido o recorde, porque eu estava no time sub-19 do River. Incríveis as voltas da vida”.

Barisio também lembrou-se do cumprimento com Maradona após aquela final antecipada de 1981: “lembro que Diego nos disse: ‘vocês têm um timaço. Lhes felicito'”.

Torcida do Ferro com cartazes pelo recorde do ídolo
https://twitter.com/FerroOficial/status/1225103325579894786
https://twitter.com/FerroOficial/status/1225110880179904513
https://twitter.com/afa/status/1225125559715487746
https://twitter.com/MuseoRiver/status/1225118117707354113

Caio Brandão

Advogado desde 2012, rugbier (Oré Acemira!) e colaborador do Futebol Portenho desde 2011, admirador do futebol argentino desde 2010, natural de Belém desde 1989 e torcedor do Paysandu desde antes de nascer

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